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Considerações acerca da exigência prévia de lei complementar para a instituição do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores

01/04/2002 às 00:00
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Introdução

Prenuncia a Constituição Federal, no inciso III do art. 146, que cabe à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos nela discriminados, a dos respectivos fatos geradores, base de cálculo e contribuintes; b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários; e c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.

Grande controvérsia surgiu em nossos meios doutrinários e jurisprudenciais acerca da necessidade de edição prévia da aludida lei complementar para a instituição de tributos. A respeito, duas correntes surgiram: uma pugna por sua imprescindibilidade e a outra sustenta a plenitude da competência dos Estados-membros, na hipótese de inação do legislador complementar federal.

Aqui interessa, por critérios práticos, a aplicação desse comando constitucional ao Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores - IPVA, cuja disciplina geral ainda não foi assentada no âmbito federal.


I. Ipva

A origem do IPVA remonta a uma estranha Taxa Rodoviária Única – TRU. Em essência não era taxa, pois gravava a propriedade dos veículos em razão de seu valor e de sua procedência. Foi dita exação concebida em nosso sistema tributário, nos moldes atuais, com a edição da Emenda Constitucional nº 27, de 28 de novembro de 1985, que o inseriu na competência dos Estados e do Distrito Federal. Àquela época não se exigia a edição de uma lei complementar que trouxesse as correspondentes normas gerais. Daí porque tais entes, nos lindes de seu poder legislativo, definiram as normas gerais e específicas do IPVA e logo as puseram em prática.

O artigo 155, inciso III, da vigente Carta Política manteve-o na esfera de competência dos Estados e do Distrito Federal. Todavia, em virtude da inexistência de disciplina específica no Código Tributário Nacional – CTN, quedou-se obscura a questão da exigência prévia de lei complementar para sua instituição.

Cada Estado edita a legislação própria sobre o IPVA. As alíquotas variam e apresentam, às vezes, feitio extrafiscal, sobretudo quando privilegiam utilitários ou veículos nacionais. Grandes frotistas são atraídos por aliciantes fiscais a emplacar carros em outros Estados. Repudia-se, no particular, a malsinada a guerra fiscal, inclusive os expedientes manejados por certos Municípios para forçar o emplacamento dos veículos em seu território.

Vários são os pontos de conflito, as diferenças e as omissões emergentes dos vários sistemas normativos estaduais do IPVA. A edição de um lei complementar com normas gerais a respeito de seus principais elementos e pontos controvertidos contribuiria na resolução de tais problemas. Por exemplo, veja-se que a almejada unificação permitiria a incidência da exação sobre a propriedade das aeronaves, cujo registro é nacional.


II. posição jurisprudencial

O Supremo Tribunal Federal, no Informativo nº 157, de 18 de agosto de 1999, assim anunciou seu primeiro pronunciamento sobre a matéria, através de sua Primeira Turma:

"IPVA e Competência Legislativa

Deixando a União de editar as normas gerais disciplinadoras do IPVA, os Estados exercem a competência legislativa plena (CF, art. 24, § 3º) e ficam autorizados a editarem as leis necessárias à aplicação do sistema tributário nacional previsto na CF (ADCT, art. 34, § 3º). Com esse entendimento, a Turma, por unanimidade, manteve acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que rejeitara a pretensão de contribuinte do Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores - IPVA de eximir-se do pagamento do tributo, sob a alegação de que o Estado de São Paulo não poderia instituí-lo, dado que não possui competência para suprir a ausência de lei complementar estabelecendo as normas gerais (CF, 146, III, a). Precedente citado: AG (AgRg) 167.777-DF (DJU 09/05/1997).

RE 236.931/SP, rel. Min. Ilmar Galvão, 10/08/1999."

Por oportuno, traz-se à colação a ementa do acórdão em referência, julgado por unanimidade:

"TRIBUTÁRIO. ESTADO DE SÃO PAULO. IMPOSTO SOBRE PROPRIEDADE DE VEÍCULOS AUTOMOTORES. LEI Nº 6.606/1989, COM AS ALTERAÇÕES DAS LEIS Nº 7.002/1990 E 7.644/1991. PRETENSA INCOMPATIBILIDADE COM AS NORMAS DOS ARTS. 24, § 3º; 150, II E IV; E 146, III, A, DA CONSTITUIÇÃO.

Descabimento da alegação, tendo em vista que o constituinte de 1988, como revela o art. 34 do ADCT, autorizou a edição, pelos Estados, das leis necessárias à aplicação do sistema tributário nacional nela previsto (§ 3º), que entrou em vigor em 1º de março de 1989 (caput).

Ficaram os Estados, portanto, legitimados a ditar as normas gerais indispensáveis à instituição dos novos impostos, o que foi cumprido, em relação ao IPVA, no exercício da competência concorrente prevista no art. 24 e em seu § 3º, da Carta, com vigência até o advento da lei complementar da União (§ 4º), ainda não editada.

A única exceção foi relativa ao novo ICMS, cujas normas gerais foram estabelecidas, em caráter provisório, por meio de convênio celebrado pelos Estados (§ 8º).

Diversidade de alíquotas em razão da natureza do combustível (álcool e gasolina) que por contemplar coisas distintas, não ofende o princípio da isonomia, nem configura tributo progressivo.

Recurso não conhecido."

(STF. Primeira Turma. RE nº 236.931-8/SP. Rel. Min. Ilmar Galvão. Publicado no DJU de 29/10/1999)

Convém, ainda, trasladar o precitado precedente da Corte Suprema:

"IMPOSTO SOBRE PROPRIEDADE DE VEÍCULOS AUTOMOTORES. DISCIPLINA. Mostra-se constitucional a disciplina do Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores mediante norma local. Deixando a União de editar normas gerais, exerce a unidade da federação a competência legislativa plena - § 3º do artigo 24, do corpo permanente da Carta de 1988 -, sendo que, com a entrada em vigor do sistema tributário nacional, abriu-se à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, a via da edição de leis necessárias à respectiva aplicação - § 3º do artigo 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta de 1988."

(STF. Segunda Turma. AGRAG nº 167777/SP. Rel. Min. Marco Aurélio. Publicado no DJU de 09/05/1997, p. 18.134)

Tal orientação é perfilhada, de forma uníssona, no Superior Tribunal de Justiça e nos Tribunais Estaduais, a saber:

"TRIBUTÁRIO. IPVA. LEI Nº 6.606/1989, DO ESTADO DE SÃO PAULO. 1. Validade independentemente de lei complementar que defina o fato gerador do imposto. A União, Estados, Distrito Federal e Municípios só podem instituir os impostos previstos na Constituição Federal depois da definição, em lei complementar, dos respectivos fatos geradores; excepcionalmente, a partir da promulgação da Constituição, vige regra provisória que autoriza a elaboração das leis necessárias a aplicação do Sistema Tributário Nacional, enquanto essa lei complementar não for editada (ADCT, art. 34, § 3)º. 2. Capacidade contributiva. No regime do IPVA, tal como disciplinado na Lei nº 6.606/1989, do Estado de São Paulo, a base de cálculo do imposto é o valor venal do veículo, onerando o contribuinte segundo a grandeza do seu patrimônio; observado está, assim, o principio da capacidade contributiva. Recurso Ordinário improvido." (STJ. Segunda Turma. ROMS nº 6462/SP. Rel. Min. Ari Pargendler. Publicado no DJU de 06/05/1996, p. 14.339)

"IPVA. FATO GERADOR. BASE DE CÁLCULO. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA DO ESTADO. VEÍCULOS NACIONAIS CLASSIFICADOS PELO MODELO, E ESTRANGEIROS PELA POTÊNCIA. ALTERAÇÃO DE FAIXA IMPLICANDO MAIOR ONEROSIDADE. UTILIZAÇÃO DE DECRETO.

1. O IPVA tem como fato gerador a propriedade e como base de cálculo o valor venal.

2. A Lei-RS nº 8115/85, que instituiu o IPVA, foi recepcionada pela CF/88, tendo em conta o art. 34, § 5º, do ADCT. Ainda, inexistindo Lei Complementar Federal, a competência legislativa do Estado é plena (CF, art. 24, § 3º), inclusive para definir fato gerador, base de cálculo e contribuinte.

3. Distinguem-se o ato de definir a base de cálculo, que é conceituado abstratamente, tarefa afeta ao legislador, do ato de determinar, em concreto, a sua quantificação em termos pecuniários, com base em itens fixados pela lei, tarefa afeta ao administrador. 4. Procedimento administrativo que classifica os veículos por faixas de valores. Veículos nacionais classificados pelo modelo, e estrangeiros pela potência, gerando tributação mais pesada a estes. Inadmissibilidade por caracterizar discriminação em razão da procedência (CF, art. 152).

5. Ampliação do numero de faixas de valores para dar maior especificidade ao sistema, provocando reclassificação e, por decorrência, aumento da base de calculo, implicando elevação do imposto a índice superior ao da inflação havida no ano-base. Aprovação por decreto. Inadmissibilidade por caracterizar aumento de imposto, matéria de reserva legal (CF, art. 150, I; CTN, art. 97, II).

6. Apelo desprovido e sentença confirmada em reexame."

(TJRS. Primeira Câmara Cível. AC nº 597137058. Rel. Rel. Des. Irineu Mariani. Julgado em 23/12/1998)

"IPVA. Instituição por lei ordinária estadual sob a égide da CF/67. Ausência de lei complementar que não invalida a norma se esta é compatível com a nova ordem jurídica. Somente a superveniência de lei complementar paralisa ou suspende a eficácia da lei tributária estadual ou municipal, mas se é ela inexistente, viável que a lei local persiste eficaz, pois não seria jurídico invalidar lei ordinária inibindo os Estados de exercerem sua competência legislativa, até a edição de lei complementar para dar novo regramento ao imposto."

(TJMG. Segunda Câmara Cível. AC nº 000.128.113-8/00. Rel. Des. Sérgio Lellis Santiago. Publicado no DJ de 26/05/1999)

"INSTITUIÇÃO DO IPVA. COMPETÊNCIA CONCORRENTE DO DISTRITO FEDERAL. LEI DISTRITAL Nº 223/91. CONSTITUCIONALIDADE. ART. 24, § 3º, DA LEI MAIOR.

1. Não há inconstitucionalidade na Lei Distrital nº 223/1991, que, ao instituir o IPVA no âmbito local, exerceu a competência concorrente do distrito federal para legislar sobre Direito Tributário, prevista no art. 24, § 3º, da Carta Política.

2. Recurso improvido. Unânime."

(TJDF. Quinta Turma Cível. AC nº 19980110139768. Rel. Des. Adelith de Carvalho Lopes. Publicado no DJ de 31/05/2000, p. 36)

"INSTITUIÇÃO DO IPVA. LEGALIDADE. REGULAMENTAÇÃO POR LEI COMPLEMENTAR. DESNECESSIDADE. ARTIGO 24, §§ 2º E 3º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. LEGÍTIMA EDIÇÃO DA LEI ESTADUAL Nº 6.606/1989. RECURSO NÃO PROVIDO.

Ante o silêncio da União o Estado de São Paulo editou a Lei nº 6.606/1989, que criou o IPVA, não extrapolando os limites traçados na Lei Magna, prescindindo a instituição do imposto em discussão de lei complementar tributária prevista no artigo 146, III, a, da Constituição da República."

(TJSP. Oitava Câmara Cível. AC nº 270.733-2/SP. Rel. Des. Celso Bonilha. Julgado por unanimidade em 20/12/1995)

"IPVA. TRIBUTO. BASE DE CÁLCULO. VALOR VENAL DO VEÍCULO. LEGALIDADE DA COBRANÇA. LEI ESTADUAL Nº 948, DE 1985. AÇÃO ORDINÁRIA. REPETIÇÃO DE INDÉBITO.

A Lei nº 948/1985 acha-se em simetria com o sistema tributário constitucional, sabido que o § 3º do art. 24 da Constituição permite que os Estados membros exerçam competência legislativa plena para atender suas peculiaridades, face à inexistência de lei federal sobre normas gerais. Lícito pois estabelecer a base do cálculo do tributo (IPVA) o valor venal do veículo automotor, em função dos preços mensalmente praticados no mercado. Apelação desprovida."

(TJRJ. Segunda Câmara Cível. AC nº 7440/96. Rel. Des. Lindberg Montenegro. Julgado por unanimidade em 28/01/1997)

Nessa linha, decidiu a Suprema Corte, em caráter cautelar, a favor da possibilidade de os Estados diretamente disporem sobre o "adequado tratamento tributário do ato cooperativo", inscrito no âmbito material da lei complementar reverenciada no artigo 146, inciso III, da Carta Política. É oportuna a leitura da ementa ora aludida:

"AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA CAUTELAR. DISPOSITIVOS DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO CEARÁ QUE DISCIPLINAM TRATAMENTO TRIBUTÁRIO DE ATO COOPERATIVO E CONCEDEM ISENÇÃO DE ICMS EM HIPÓTESES QUE ESPECIFICAM. 1) A falta de lei complementar da União que regulamente o adequado tratamento tributário do ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas, (CF, art. 146, III, c), o regramento da matéria pelo legislador constituinte estadual não excede os lindes da competência tributária concorrente que lhe é atribuída pela Lei Maior (CF, art. 24, § 3º). 2) Isenção fiscal beneficiando o restrito universo dos portadores de deficiência física: prejuízo que não seria irreparável, quer por seu vulto, quer pela impossibilidade de futura recuperação. 3) Se já editado o convênio a que alude o art. 34, § 8º, do ADCT da CF/88, a suspensão cautelar das normas da legislação estadual que disponham em sentido contrário encontra fundamento em precedentes do Supremo Tribunal Federal em situações análogas (ADIN nº 84 e ADIN nº 286). Liminar deferida em parte para suspender a eficácia do art. 193 e seu parágrafo único, art. 201 e seu parágrafo único, parágrafo único do art. 273 e inciso III do art. 283 da Constituição do Estado do Ceará. (STF. Tribunal Pleno. ADIMC nº 429/DF. Rel. Min. Célio Borja. Julgado em 04/04/1991. Publicado no DJU de 19/02/1993, p. 2.031)

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Entrementes, a Excelsa Corte firmou posição diametralmente oposta quando julgou inconstitucional a instituição do extinto Adicional do Imposto de Renda – AIR por lei ordinária dos Estados. Confira-se abaixo a ementa do respectivo decisum:

"TRIBUTÁRIO. ADICIONAL AO IMPOSTO DE RENDA (LEI Nº 6.352/1988 DO ESTADO DE SÃO PAULO) INCONSTITUCIONALIDADE DE SUA INSTITUIÇÃO. AUSÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR NACIONAL (CF, ART. 146). IMPOSSIBILIDADE DO EXERCÍCIO, PELO ESTADO MEMBRO, DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA PLENA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. É inconstitucional a Lei nº 6.352/1988, que editada pelo Estado de São Paulo, instituiu o adicional do imposto de renda no âmbito daquela unidade da Federação. Os Estados-membros não podem instituir, mediante ato legislativo próprio, o tributo a que se refere o artigo 155, II, da constituição (adicional ao imposto de renda), enquanto não for editada, pela União Federal, a Lei Complementar Nacional prevista no artigo 146 da Lei Fundamental da República. A existência deste vacuum legis não confere aos Estados-membros a possibilidade de exercerem, com base nas regras inscritas no artigo 24, § 3º, da Constituição, no artigo 34, § 3º, do ADCT/88, competência legislativa plena, eis que as recíprocas interferências que se estabelecerão, obrigatoriamente entre o imposto de renda, sujeito à competência legislativa da União, e o adicional ao imposto de renda, incluído na esfera da competência impositiva dos Estados-membros, reclamam a edição de Lei Complementar Nacional que indique as soluções normativas necessárias à superação de possíveis conflitos de competência entre essas entidades políticas. O poder de tributar deferido às pessoas estatais investidas de capacidade política não deve ser exercido com desrespeito aos direitos públicos subjetivos dos contribuintes ou com ofensa às limitações constitucionais que restringem o desempenho, pelas entidades tributantes, de sua competência impositiva (STF. Tribunal Pleno. RE nº 149.955-9/SP. Rel. Min. Celso de Mello. Julgado por unanimidade em 19/08/1993)"


III. Posição Doutrinária

Afigura-se-nos coerente a tese argüida nos meios forenses para a sustentação da constitucionalidade da instituição do IPVA sem a prévia edição da lei complementar pertinente. A doutrina nacional também corrobora dito entendimento, adiante melhor explicitado.

Preliminarmente, convém ressaltar que a aludida lei complementar, ao editar normas gerais, funciona como instrumento de atuação e desdobramento de nosso sistema constitucional tributário e fator de sua harmonização em todo o território nacional.

É imperioso que se reconheça a vantagem disso: seja o tributo federal, estadual ou municipal, o fato gerador, a obrigação tributária, as técnicas de lançamento, a prescrição, a decadência, a anistia, as isenções etc. obedecem, em termos conceituais, a uma mesma disciplina normativa. Evitam-se, a um só tempo, conflitos na cobrança e na arrecadação dos impostos e o recrudescimento da insidiosa guerra fiscal entre Estados e Municípios.

Em realidade, parece-nos impossível examinar tal quaestio sem discorrer sobre o perfil federalista brasileiro, delineado na Carta Política vigente: normativamente centralizado, financeiramente repartido e administrativamente descentralizado. No campo tributário, em específico, o instrumento formal da lei complementar e o conteúdo material das normas gerais reafirmam a tese do federalismo legiferante concentrador.

Sem embargo, cumpre impedir que tal preceito sirva como um canal de livre ingerência da União nos interesses jurídico-tributários das demais pessoas políticas. Isso não significa impor sua absoluta autonomia, mais reconhecer um razoável conteúdo semântico no Federalismo brasileiro.

Ora, é deveras desarrazoado condicionar o exercício da competência tributária conferida constitucionalmente aos Estados ao livre arbítrio do legislador complementar federal, com significativos prejuízos aos seus orçamentos e, por conseguinte, à prestação de seus serviços, à execução de suas obras públicas e às suas folhas de pagamento.

Por seu turno, a máxima satisfação dos valores e postulados constitucionais, por força do princípio da proporcionalidade, reclama a aplicação suplementar de outros dispositivos maiores: o artigo 24, inciso I e seus parágrafos, e o artigo 34, § 3º, do ADCT.

A tese ora expendida tem fulcro, essencialmente, no postulado da competência legislativa dos Estados, traçado na Constituição. Dispõe seu artigo 24, inciso I, que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre Direito Tributário. Elucidam a temática os seguintes parágrafos desse preceito:

"§ 1º. No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.

§ 2º. A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.

§ 3º. Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades."

Sobre o tema, é esclarecedor o comentário de Alexandre de Moraes, in verbis:

"A inércia da União em regulamentar as matérias constantes no art. 24 da Constituição Federal não impedirá ao Estado membro ou ao Distrito Federal a regulamentação da disciplina constitucional (competência supletiva). Note-se que, em virtude da ausência de Lei Federal, o Estado membro ou o Distrito Federal adquirirão competência PLENA tanto para a edição de normas de caráter geral quanto específico. Em relação à inércia legislativa da União, em sede de competência concorrente, decidiu o STF que "enquanto não sobrevier a legislação de caráter nacional, é de admitir a existência de um espaço aberto à livre atuação normativa do Estado membro, do que decorre a legitimidade do exercício, por essa unidade federada, da faculdade jurídica que lhe outorga o art. 24, § 3º, da Carta Política." (Direito Constitucional, 6ª ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 280)

Roque Antônio Carrazza, a propósito, ensina:

"Nas competências concorrentes a União pode editar apenas normas gerais. Mas o Estado pode suplementar essa atividade da União. Ou seja: o Estado pode – em atenção, naturalmente, às suas peculiaridades locais – legislar sobre normas gerais nos claros deixados pelo legislador federal. E, inexistindo lei federal sobre tais normas, o Estado as expedirá sem limitação, plenamente."

(Curso de Direito Constitucional Tributário, 11ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 101)

Há quem questione a aplicação desse sistema geral de competência à matéria tributária discriminada no artigo 146 da Carta Maior. Entretanto, a mais renomada doutrina apregoa não caber o intérprete distinguir onde a lei não o faz. Digno de menção é o magistério de Sacha Calmon Navarro Coêlho, ipsis litteris:

"Quid, de diante do art. 146, III, ‘a’, não edita o Congresso Nacional lei complementar a respeito do fato gerador, base de cálculo e contribuintes de dado imposto discriminado na CF? Fica a pessoa política titular da competência paralisada pela inação legislativa? A resposta é negativa. É o caso de se dar aplicação ao art. 24 e §§ 1º a 4º. E onde se lê União, leia-se Congresso Nacional, e onde se lê lei federal, leia-se lei complementar, ao menos em matéria tributária." (Curso de Direito Tributário, 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 108)

É de bom alvitre consignar, ainda, o comando inserto no § 3º do artigo 34 do ADCT, qual seja: "promulgada a Constituição, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão editar as leis necessárias à aplicação do sistema tributário nacional nela previsto".

Corrobora essa tese, com análogo raciocínio, o julgamento da constitucionalidade da disciplina do ato cooperativo por leis estaduais. Em lapidar lição, discorre Roque Antônio Carrazza que "com lei complementar ou sem ela, parece-nos evidente que as pessoas políticas devem dispensar ‘adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas’. Entretanto, é a própria Constituição, sistematicamente interpretada e aplicada, que determina em que consiste tal tratamento tributário adequado. O legislador complementar não está mais autorizado do que o legislador ordinário das várias pessoas políticas tributantes a captar, também nesse passo, o desígnio constitucional" (Curso de Direito Constitucional Tributário, 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 581).

Conforme demonstrado no tópico precedente, noutrora posicionou-se paradoxalmente a Corte Excelsa acerca da constitucionalidade da cobrança por lei ordinária dos Estados do extinto Adicional Imposto de Renda – AIR. Também sob diversa ótica, sublinhe-se a conclusão extraída por mais de duas centenas de tributaristas brasileiros no XV Simpósio Nacional de Direito Tributário, realizado em São Paulo, em 1990, sob a coordenação de Ives Gandra da Silva Martins: "nenhum tributo poderá ser instituído por lei ordinária sem que seu perfil esteja traçado antes em lei complementar" (apud in MARTINS, Ives Gandra da Silva (Org.). Curso de Direito Tributário, 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 615).

Grande parte da doutrina, é fácil notar, vacila em curvar-se, sem critério algum, à "última palavra" ditada pela Corte Suprema. É lamentável, contudo, que não perceba o espírito político que também guia seus julgamentos, por vezes em superposição à ordem jurídica.

Uma cuidadosa leitura dos fundamentos do julgamento da instituição do AIR faz emergir o vazio de uma concepção rigorosamente formalista. Diga-se de passagem, ainda, talvez suspeita, haja vista que o Supremo Tribunal pronunciou-se quando dita exação já estava condenada, ex vi da Emenda Constitucional nº 3, de 17 de março de 1993, a esvair-se do sistema tributário brasileiro.

Acrescente-se que, independentemente dessa problemática, os diplomas cuja matéria, a partir da Constituição Federal de 1988, passou a sujeitar-se à disciplina qualificada, foram material e formalmente recepcionados. Exemplo bastante óbvio disso é o CTN, lei ordinária recepcionada com o status de lei complementar.

Por seu turno, compartilha fervorosamente a tese ora acolhida Paulo de Barros Carvalho, que cognomina de extravagantes as palavras da alínea a do inciso III do precitado artigo 146. É esse seu pronunciamento, ipsis litteris:

"Qual a compreensão que devemos ter do papel a ser cumprido pelas normas gerais de direito tributário no novo sistema?

"O primeiro passo é saber que são as tão faladas normas gerais de direito tributário. E a resposta vem depressa: são aquelas que dispõe sobre conflitos de competência entre as entidades tributantes e também as que regulam as limitações constitucionais ao poder de tributar. Pronto: o conteúdo está firmado.

"E como fica a dicção constitucional, que despendeu tanto verbo para dizer algo bem mais amplo? Perde-se no âmago de rotunda formulação pleonástica, que nada acrescenta." (Curso de Direito Tributário, 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 208)

Por fim, faz-se essencial trazer à colação o primoroso discurso Roque Antônio Carrazza sobre o alcance das normas gerais em matéria de legislação tributária. Apregoa, num primeiro plano, que a lei complementar sob comento possui natureza simplesmente preventiva, ou seja, orientada a evitar conflitos entre os entes federativos e entre estes e os contribuintes. Em seqüência, demonstra sua natureza declaratória. Assim condensa seu raciocínio:

"No rigor da verdade científica, pensamos que a lei complementar veiculadora de normas gerais em matéria de legislação tributária, sem suprir a Constituição, nem limitá-la ou retificá-la, pode validamente (porque o sistema jurídico a tanto a autoriza) revestir seu arcabouço com detalhes que escapam à pena – não ao espírito – do constituinte. Cingindo-se a estas providências, segundo entendemos, para que a lei maior, em matéria de conflitos de competência tributária e de limitações a seu regular exercício, seja melhor compreendida e aplicada." (Obra citada, p. 593)


Conclusão

A partir dos argumentos expendidos ao longo deste estudo e com a primordial consideração do princípio da proporcionalidade, em suma se conclui que o artigo 146, inciso III, da Constituição Federal deve ser compreendido em perfeita consonância com outros dispositivos maiores, sobremaneira os seguintes:

- artigo 155, inciso III, que conferem competência tributária privativa aos Estados e ao Distrito Federal para instituir o IPVA;

- o artigo 24, inciso I e seus parágrafos, que conferem competência legislativa suplementar para editar normas gerais sobre direito tributário, quando inerte o legislador federal; e

- o artigo 34, § 3º, do ADCT, que permite a edição pelos Estados dos instrumentos normativos necessários à perfeita aplicação de suas competência tributárias.

A Constituição outorgou aos Estados competências tributárias privativas, inampliáveis e indelegáveis, cuja eficácia não poderia, em absoluto, quedar-se condicionada aos critérios de conveniência ou oportunidade do Congresso Nacional.

Também não se deve, nesse contexto, exacerbar a funcionalidade da aludida lei complementar federal, que tem como objetivo precípuo suprimir eventuais conflitos de competência tributária entre as pessoas políticas. Ademais, sua superveniência por certo suspenderá os efeitos dos preceitos gerais estaduais, naquilo que lhes for contrário.

Ao final, tem-se por constitucional a instituição do IPVA por lei estadual, independentemente de prévia edição de lei complementar federal.


Bibliografia

1. CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

2. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

3. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

4. MARTINS, Ives Gandra da Silva (Org.). Curso de Direito Tributário. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

5. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 1999.

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Sobre a autora
Marina Câmara Albuquerque

acadêmica de Direito da Universidade Federal do Ceará

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALBUQUERQUE, Marina Câmara. Considerações acerca da exigência prévia de lei complementar para a instituição do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 56, 1 abr. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2823. Acesso em: 18 nov. 2024.

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