A concretização das necessidades públicas por meio do orçamento: algumas linhas sobre o dever fundamental de pagar tributos.

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O presente trabalho buscará apresentar a despesa pública como meio de satisfação dos direitos fundamentais, em especial, a despesa fiscal. Para tanto, partiu-se da concepção do Estado como ser instrumental, o qual tem por escopo satisfazer as necessidade

  1. Introdução

A República Federativa do Brasil, em sua Carta Política, assume um papel central de provedora das necessidades públicas[1], - frise-se que todo Estado, enquanto organização político-social, tem como razão de sua existência prover as necessidades públicas, ou seja, sua existência é primordialmente instrumental – e, por isso, se comprometeu a prestar/garantir uma gama de direitos aos seus cidadãos por meio de serviços públicos.

Entretanto, para que seja possível o cumprimento desses deveres assumidos, o Estado carece de um lastro financeiro para fazer frente aos custos advindos do fornecimento desses bens/direitos, haja vista que, sob o prisma financeiro, não há direitos sem custos. Por isso, o Brasil carece de um sólido sistema tributário e, por conseguinte, financeiro, para, por meio deles, obter recursos que façam frente às necessidades públicas.

Nessa linha, pode-se asseverar que o Estado tem seus deveres para com os seus súditos – como, por ex., educação, saúde, segurança etc. – os quais são adimplidos por meio das despesas públicas. E, em contrapartida, tem direito de se apropriar de parte das riquezas produzidas pelos contribuintes para custear os referidos direitos. É dizer, o Estado dispõe de um poder advindo de sua soberania – o poder tributário –, para obter receitas, estas como meio imprescindível para cumprir o fim estatal: satisfazer as necessidades públicas.

Destarte, o presente trabalho buscará demonstrar a coerente assertiva de Celso Antônio Bandeira de Mello, quando assevera que quem dá os fins, deve dar os meios, ou seja, já que o ente estatal deve prestar/garantir uma gama de direitos, deve ele possuir os meios para tanto, por isso, adotar-se-á o dever de pagar tributos como fundamental para que o Estado alcance seus fins.

  1. Desenvolvimento

É sabido que o surgimento do Estado está ligado à satisfação das necessidades públicas, carecendo, porém, de uma atividade financeira, arrecadação de receitas suficientes para fazer frente aos serviços que ele se propõe a prestar. É o que assevera o professor Manoel Cavalcante, quando afirma que:

(...) para atingir os seus fins o Estado precisa de receitas, sendo certo que a sua principal fonte de recursos decorre da instituição de tributos. A atividade financeira, portanto, não configura um fim em si mesmo, mas tem natureza instrumental, representando um meio para a consecução de fins. (grifos no original)

 

Nesse diapasão, após o abastecimento dos cofres públicos, o Estado, por meio do orçamento, escolherá quais bens públicos irá prestar, interligando-se às despesas públicas. “Por isso o discurso de proteção e implementação dos direitos passa por uma análise orçamentária que avaliará como e de que forma o Estado pode efetivar tais direitos.” [2]

No caso do Brasil, com a Constituição de 1988, o Estado brasileiro ampliou o rol de bens que devem ser prestados pelo Estado, como os do art. 6º da CF/88. Sem olvidar, é claro, outros tantos direitos que requerem sua concretização por meio de despesas públicas, na medida em que não há direitos sem custos, independentemente da geração/dimensão a que pertençam.

Ademais, a análise orçamentária, em especial a realização/autorização de despesas, permite a identificação política do próprio Estado – como uma espécie de identidade estatal –, haja vista que se pode conhecer, por meio dela, as opções políticas dominantes, como também dimensionar a própria extensão estatal, ou seja, se um Estado Liberal – meramente regulador, e um tanto quanto espectador da vida social – ou se um Estado Social/Provedor – o qual intervêm de forma ativa no meio social, tomando para si a prestação de diversos Bens Públicos, com o escopo de satisfazer as necessidades da sociedade civil.

Ressalte-se que “a realização dos objetivos escolhidos pelos instrumentos políticos e jurídicos, em especial a concretização de direitos, possuem como lastro a arrecadação de tributos” [3], ou seja, a obtenção de receitas suficientes, e, indissociavelmente, a realização de despesas públicas para prover as necessidades as quais o Estado se obriga perante escolhas políticas prévias. Por isso, a satisfação das necessidades públicas[4] passa, necessariamente, pelo Orçamento Público, com a previsão de receitas e a autorização de dispêndios para tanto.

Nesse ínterim, os custos dos direitos se revelam não apenas nos direitos prestacionais (2ª geração/dimensão),[5] haja vista que para o Estado garantir a propriedade e a liberdade (direitos típicos negativos ou de 1º geração), por exemplo, ele precisa dispor de um aparato na segurança pública, no Poder Judiciário – visto que, salvo poucas exceções, qualquer violação desses direitos terá que ser estancado por este poder –, além de investimentos em vias públicas (liberdade de locomoção), etc. Ora, toda essa estrutura requer recursos, não só para instituí-las, como também para mantê-las em funcionamento e, portanto, necessitando de um fazer estatal. Assim, no que concerne aos custos, todos os direitos são positivos e, por isso, demandam gastos pelo poder público. Da mesma forma é o escólio de José Casalta Nabais:

Pois bem, centrando-nos nos custos financeiros dos direitos, a primeira verificação, que devemos desde já assinalar a tal respeito, é esta: os direitos, todos os direitos, porque não são dádiva divina nem frutos da natureza, porque não são autorealizáveis nem podem ser realisticamente protegidos num estado falido ou incapacitado, implicam a cooperação social e a responsabilidade individual. Daí decorre que a melhor abordagem para os direitos seja vê-los como liberdades privadas com custos públicos.[6]

 

E continua o autor lusitano:

Na verdade, todos os direitos têm custos comunitários, ou seja, custos financeiros públicos. Têm portanto custos públicos não só os modernos direitos sociais, aos quais toda a gente facilmente aponta esses custos, mas também têm custos públicos os clássicos direitos e liberdades, em relação aos quais, por via de regra, tais custos tendem a ficar na sombra ou mesmo no esquecimento. Por conseguinte, não há direitos gratuitos, direitos de borla, uma vez que todos eles se nos apresentam como bens públicos em sentido estrito.[7]

 

Com base nisso, calha destacar que o tributo tem papel central nos estados contemporâneos, na medida em que representa meio da atividade fiscal que se obtém recursos para fazer frente às necessidades públicas. Assim o que era antes retirado dos súditos para custear despesas do rei, passou a ser o instrumento para satisfação das necessidades públicas, e, por isso, ocorreu uma mutação semântica no termo tributo – a antes entendido como exação indevida – passou a ser compreendido como um dever fundamental, haja vista que significa o meio para se contribuir com o gasto público.[8]

É dizer, o Estado tem deveres para com seus cidadãos que legitimam sua existência e, em sua outra face, possui o direito de tributar o patrimônio de seus súditos, na medida de sua capacidade contributiva[9]. Por isso, pode-se afirmar que, como consectário dos direitos fundamentais, que o Estado tem por obrigação de assegurar, tem-se o dever fundamental de pagar tributos, visto que:

Para remunerar os indivíduos que estão a seu (do Estado) serviço e para manter os serviços públicos que lhe compete realizar, o Estado precisa de recursos regulares, que somente pode obter dos cidadãos, mediante contribuições diversas: são os impostos e as taxas. O Estado não tem direito de propriedade sobre os bens dos indivíduos, nem direito de domínio. Mas, os cidadãos devem o imposto, e é uma dívida de justiça, porque representa a cota de cada um nas despesas que o Estado realiza para o bem de todos.[10]

 

Conforme feliz expressão de Celso A. Bandeira de Mello, quem dá os fins, tem que oferecer os meios. Assim, deve-se compreender que sua finalidade (dos tributos), em última análise, é atender à despesa pública (meio pelo qual o Estado supre as necessidades públicas), sendo essa limitada ao que a coletividade desejava, e estivesse dentro da limitação de receita. E por isso, todo o cidadão deve obediência a esse dever cívico: o de pagar tributos. Com isso, quer se demonstrar que o dever de pagar tributos é forjado sob natureza instrumental do Estado, ou melhor, seria um consectário dos fins estatais, o meio pelo qual ele obtém receitas para satisfazer as necessidades públicas.

Enfatizando que pagamento de tributos é um dever fundamental, Manoel Cavalcante afirma que:

Para justificar o pagamento de impostos, seguindo a linha doutrinária citada pensamos que guarda pertinência com o nosso sistema a teorização de dever fundamental. O dever de contribuir representa uma situação jurídica passiva, decorrente do poder de tributar, juridicamente controlado, que está lastreada num Estado Fiscal que tem sua principal fonte de receita nos tributos e se apóia na liberdade de atividade econômica e no direito de propriedade, servindo esses direitos, por excelência, de limitação ao poder tributário. Esse dever não se acha definido expressamente na Constituição, mas consta implicitamente nas normas que detalham o Sistema Tributário Nacional. (itálico consta do original; negrito não consta do original)[11].

 

Por conseguinte, pode-se afirmar que o pagamento de tributos é a contrapartida a qual os súditos estão submetidos para que o Estado cumpra com seus deveres, ou seja, por meio deles, os tributos, “o Estado exerce suas finalidades, de ordem complexa, com vistas à realização do bem comum que importa no cumprimento dos objetivos fundamentais da república”.[12] Daí, fazendo um paralelo entre os direitos e deveres fundamentais, anota Gabriel Ivo que “correlato ao dever fundamental de pagar tributos, está o direito a tributação adequada constitucionalmente”[13], ou seja, “do princípio da tipologia tributária, extraí-se o dever fundamental de pagar tributos, porquanto direito e dever são reflexos.”[14]

Em apertada síntese, o Estado brasileiro se compromete a uma gama de obrigações, positivadas em diversos instrumentos normativos, em especial na Constituição Federal de 1988. E para a efetivação dessas obrigações, o Estado carece de um lastro financeiro, o qual é obtido, principalmente, por meio da tributação, contrapartida necessária e justa dos cidadãos frente às prestações que dispõem, sem olvidar, por certo, dos limites traçados pelo constituinte no exercício de tal direito estatal, como respeito à capacidade contributiva, à isonomia tributária, proibição de efeito confiscatório etc.[15]

Por isso, é possível afirmar que há o dever fundamental de pagar tributos, o qual se encontra inserido no Sistema Tributário Nacional instituído pela Constituição Federal de1988[16]. Em que pese não haver no texto constitucional brasileiro essa previsão, como há na constituição espanhola[17], o dever de pagar tributos é consectário dos direitos e garantias, haja vista que quem dá os fins tem que dá os meios, ou seja, “el hecho de que toda organización política necesite medios económicos para su supervivencia y para o cumplimiento de sus fines.”[18](negrito não consta do original) Endossando o dito, Rosita de Sousa afirma que:

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O estreito relacionamento povo e governo cria direitos e deveres recíprocos, se o governo tem o dever de promover o bem comum a que o povo tem direito, este, por sua vez, tem o dever de contribuir para o erário público, a fim de que aquele possa realizar todo um programa de trabalho em geral e de todas as obras públicas necessárias ao cumprimento da finalidade que dele se espera, e às quais se obrigou.[19]

 

Assim, deve-se compreender que os tributos decorrem de um dever fundamental, e que, portanto, não podem ser considerados nem como um sacrifício para os cidadãos nem como uma simples relação de poder, em que o Estado faz meras exigências discricionárias aos súditos, mas sim como uma contrapartida necessária para a consecução dos seus fins: o Bem Comum, e, por conseguinte, seu fundamento reside em ser o meio necessário para lastrear a subsistência do Estado como ser instrumental, que presta serviços públicos e redistribuí renda, pois se a este é dada a missão de buscar o bem-estar social, cabe aos cidadãos contribuir para que seja alcançado o objetivo colimado.

  1. Conclusão

Conforme visto, o Estado possui com fim intrínseco a realização das necessidades públicas – estas com um conteúdo cambiante, variando tendo em vista o momento e o lugar. Nesse diapasão, com uma análise da Constituição Federal de 1988, a República Federativa do Brasil alargou o rol das necessidades públicas, isto é, se obrigou prestar/garantir um vasto rol de direitos.

Para tanto, com demonstrado, o Brasil carece de sólido lastro financeiro, haja vista que, sob a ótica estatal, não há direitos sem custo, isto é, sob a ótica financeira não cabe o discurso liberal-conservador de que há direitos que carecem apenas de abstenções estatais – os de primeira geração – enquanto outros careceriam de um fazer – os de segunda geração – tendo em vista que no orçamento todos os direitos garantidos e prestados pelo Estado carecem de dispêndio.

Ressalte-se que o orçamento é o meio pelo qual o ente público se personifica, haja vista que é por meio dele que cumpre seus fins. É por meio dele que reafirma para si e para seus súditos sua existência.Assim, em contrapartida aos direitos aos quais faz jus os cidadãos brasileiros, há o dever pagar tributos, dever fundamental, ressalte-se. Partindo dessas premissas, a despesa pública pode ser vista como meio fundamental para que os entes públicos cumpram com seus fins colimados.

[1] Nesse sentido, ver: BUCCI, Maria Paula Dallari. Buscando um Conceito de Políticas Públicas para a Concretização dos Direitos Humanos. São Paulo: Pólis, 2001.

[2]CHRISTOPOULOS, Basile. Despesa Pública: Estrutura, função e controle judicial. Maceió: edUFAL, 2011, pag. 34.

[3]LIMA NETO, Manoel Cavalcante de. Função Social dos Tributos: ICMS e Segurança. Artigo produzido como extrato de Palestra proferida no VIII Congresso Nacional de Direito Público, em Maceió – AL, no dia 01/05/2009.

[4] Conforme Régis Fernandes de Oliveira, “a decisão de gastar é fundamentalmente uma decisão política. O administrador elabora um plano de ação, descreve-o no orçamento, aponta os meios de disponíveis para seu atendimento e efetua os gastos. A decisão política já vem inserta no documento solene de previsão de despesas. Dependendo das convicções políticas, religiosas, sócias, ideológicas, o governo elabora seu plano de gastos. Daí a variação que pode existir de governo para governo, inclusive diante das necessidades emergências. As opções podem variar: hospital, maternidade, posto puericultura, escolas, rodovias, aquisição de veículos, contratação de pessoal, etc.” OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 3ª ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 2010, pag.275.

[5]Nesse sentido, ver GALDINO, Flávio. Introdução à Teoria do Custo dos Direitos. Direito não nascem em árvores. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005, pag. 205.

[6]NABAIS, José Casalta. Reflexões sobre quem paga a conta do estado social. Disponível em: <http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/Casalta2008.pdf>. Consulta em 03 mar. 2012.

[7] Op. Cit. Consulta em 03 mar. 2012.

[8] IVO, Gabriel. O Princípio da Tipologia Tributária e o Dever Fundamental de Pagar Tributos. In ALENCAR, Rosmar A. R. Cavalcante de (org.). Direistos Fundamentais na Constituição de 1988. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2008, pag. 41.

[9] Realizar o princípio da capacidade contributiva quer significar, portanto, a opção a que se entrega ao legislador, quando elege para antecedente das normas tributárias fatos de conteúdo econômico que, por terem essas natureza, fazem pressupor que as pessoas que dele participem apresentem condições de colaborar com Estado mediante parcela de seu patrimônio. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, Linguagem e Método. 3ª Ed. São Paulo: Noeses, 2010, pag.329.

[10] AZAMBUJA, Darcy, Teoria Geral do Estado. 41ª ed. São Paulo: Globo, 2001, pag. 384.

[11] LIMA NETO, Manoel Cavalcante de. Direitos fundamentais dos contribuintes: limitações constitucionais ao poder de tributar. Recife: Nossa Livraria, 2005. p. 49

[12] LIMA NETO, Manoel Cavalcante de. Função Social dos Tributos: ICMS e Segurança Pública. Artigo produzido como extrato de Palestra proferida no VIII Congresso Nacional de Direito Público, em Maceió – AL, no dia 01/05/2009.

[13] IVO, Gabriel. O Princípio da Tipologia Tributária e o Dever Fundamental de Pagar Tributos. In ALENCAR, Rosmar A. R. Cavalcante de (org.). Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2008, pag. 42.

[14] Op. Cit., pag. 42.

[15] COSTA NETO, Joaquim Cabral. Despesa Fiscal (Benefícios Fiscais): Requisitos e Limites Estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal para Sua Realização. Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade Federal de Alagoas. Faculdade de Direito de Alagoas. 2012, p. 26.

[16]Op. Cit.

[17]Constituição da República da Espanha. Art.31, iten 1, in verbis: Todos contribuirán al sostenimiento de los gastos públicos de acuerdo con su capacidad económica medianta un sistema tributario justo inspirado en losprincipios de igualdad y progresividad que, en ningún caso, tendrá alcance confiscatorio.

[18]CHULVI, Cristina Pauner. El Deber Constitucional de Contribuir al Sostenimiento de los Gastos Públicos. Madrid: Cntro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001, pag. 03.

[19] SANTOS. Rosita de Sousa. Importância da Inscrição da Dívida Ativa. São Paulo: Resenha Tributária, 1977, pag. 5.

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Sobre os autores
Joaquim Cabral da Costa Neto

Procurador Federal.<br>Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Alagoas.<br><br>

Caroline Maria Costa Barros

Mestranda em Direito na Universidade Federal de Alagoas. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Alagoas

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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