O homem não é senão o seu projeto e só existe na medida em que se realiza. (voltaire)
Lecionava no 2º semestre do curso de Direito, turnos diurno e noturno. O turno diurno tinha uma característica peculiar: todos os estudantes eram adolescentes e tinham a idade entre 16 e 20 anos.
Ao iniciar um novo semestre, tive uma grata surpresa. No meio das adolescentes, havia uma senhora cujas marcas da vida indicavam a idade de 80 anos.
Em minha mente, passava um pensamento preconceituoso: “deve ser uma avó que ainda não cortou o cordão umbilical da neta”. Contudo, ao fazer a frequência, li o nome – Maria (...) e ela disse: – presente.
Parei e, meio desconcertado, afirmei:
– A senhora está matriculada neste curso?
Ela respondeu:
– Com muito prazer, é a concretização de um grande sonho.
A minha perplexidade logo se transformou em admiração, porque sempre admirei pessoas que lutam intensamente por um ideal.
Fiz amizade com Vovó Maria, um apelido que as adolescentes colocaram. Era uma pessoa única, admirável e que sempre apresentava um sorriso quando falava das dificuldades que tinha enfrentado na vida. Nos intervalos das aulas, eu sempre queria saber e aprender um pouco mais sobre a sua bela história de vida.
Logo na sua adolescência, Dona Maria formulou um sonho – ser advogada dos pobres. Nascida no interior do Brasil, enfrentava longas estradas em um carro de boi, para estudar na única escola da região.
Ela me confidenciou que sua família era muito pobre, mas ela tinha, ainda quando adolescente, a plena consciência de que só por meio dos estudos poderia retirar seus pais daquela condição de miséria.
Estudava muito e tinha certeza de que um belo dia iria concretizar o seu sonho, mas por uma destas ironias do destino, Dona Maria viu seu sonho ser frustrado, quando foi praticamente obrigada a casar com o filho de um fazendeiro.
Eu indaguei perplexo:
– Obrigada a casar, Dona Maria?
– Sim, meu filho. Bons tempos são estes em que a mulher tem liberdade de opção...
Aos 16 anos, seu pai praticamente vendera sua filha a um fazendeiro. Com o casamento, o sofrimento dos pais de Dona Maria foi amenizado, mas uma imensa dor por ter que suspender a realização de seu ideal perseguiu Dona Maria por imensos anos.
O marido, totalmente ignorante, criado em uma fazenda e em um sistema em que criar bois era melhor que estudar, não permitiu que Dona Maria continuasse seus estudos.
Dona Maria teve cinco filhos e, durante 52 anos, adiou seu sonho e apenas se dedicou a criar e educar seus filhos. Com a morte de seu marido e com todos os seus filhos formados, Dona Maria resolveu ressuscitar o seu ideal: terminou o 1º e o 2º graus, fez cursinho pré-vestibular e, só aos 72 anos, passou no vestibular para o curso de Direito.
Era um grande prazer ter Dona Maria como aluna, pois eu sempre passava para os adolescentes o quanto era importante cultivar a capacidade de sonhar e Dona Maria era um exemplo vivo que me ajudava a demonstrar o quanto é importante ter um ideal e um sonho a conquistar.
Por ter várias atribuições, Promotor de Justiça, Escritor, Professor Universitário e de Cursos de Pós-graduação – tive que estabelecer prioridades e deixei de lecionar no curso de Direito. Assim, após o término do período letivo, perdi o contato com Dona Maria.
O tempo passou e, no ano de 2002, encontrei uma ex-aluna da faculdade. Fui logo perguntando:
– E Dona Maria? Já terminou o curso?
– Ah ... O senhor não soube?
– O que?
– Dona Maria, no oitavo semestre da faculdade, teve um acidente cardiovascular, perdeu os movimentos do corpo e não voltou mais para o curso ...
– Meu Deus !!!
Fiquei perplexo. Teria que fazer algo para ajudá-la...
Consegui o telefone da unidade hospitalar em que Dona Maria tinha sido internada, falei com o diretor do hospital e ele relatou que a paciente, há seis meses, havia tido alta, e que foi aconselhada a procurar um centro especializado para tratamento.
Insisti para que o diretor me fornecesse o endereço, mas fiquei com a sensação de que estava falando com uma máquina, pois o médico relatou com a maior frieza:
– Tudo bem. Vou fornecer o endereço da paciente ... Se ela ainda estiver viva, você a encontrará no endereço xy...
Eu estava desesperado e queria ajudá-la de alguma forma. As páginas amarelas da lista telefônica pareciam eternas. Depois de passar várias vezes pelo endereço, enfim encontrei o telefone. A alegria foi contagiante até que enfim eu teria um contato direto com Dona Maria e, eu tinha certeza, a minha amiga iria vencer mais uma batalha, pois foi justamente ela que me ensinou que:
Após idealizado;
O sonho jamais poderia ser abandonado.
O telefone tocava eternamente e ninguém atendia até que finalmente alguém disse:
– Alô...
– Preciso falar com Dona Maria ...
A notícia não poderia ser pior.
– Amigo, ela não mora mais aqui ... Ela vendeu esta casa para fazer um tratamento no Rio ou São Paulo ...
– Mas ... Você não tem alguém para indicar onde ela está exatamente?
– Não, amigo. Eu comprei esta casa há três meses e não conheço nenhum dos seus familiares ...
O tempo passou e não tive mais notícias de Dona Maria, mas algo me dizia que minha amiga batalhadora iria superar mais este obstáculo, que impedia a concretização do seu sonho.
O tempo passa e, com ele, a saudade das pessoas de quem gostamos é amenizada, mas a esperança permanece sempre renovada para aqueles que têm uma fé inabalável. Eu nunca perdi a esperança de um dia encontrar a guerreira sonhadora, cujo sonho ficou longos anos guardado e sempre aquecido, mas nunca adormecido.
Certo dia, estava lecionando em um curso de pós-graduação em Direito Penal quando, em pleno fervor do debate, ouvi a voz de alguém que acabava de entrar na sala de aula.
– Posso entrar, menino sonhador?
Eu estava de costas para a porta, mas aquela voz era inconfundível. Só podia ser ela! Virei-me aos poucos. A emoção estava me contagiando e ninguém entendia por que. Parei tudo, corri até a porta e dei um grande abraço em minha amiga.
Em minha mente, as ideias eram conclusivas. O curso era de pós-graduação, ou seja, só era frequentado por, no mínimo, advogados. Logo, ela havia conseguido!
A aula de Direito simplesmente, acabou e o que os alunos presenciaram foi algo que não existe nas faculdades – “uma aula sobre a vida”.
Quando eu recuperei o fôlego, disse-lhe:
– Meus Deus, que felicidade! Você conseguiu ... E está fazendo especialização?
– É ... Como você disse uma vez, “o direito e a vida é como andar de bicicleta, se pararmos de andar, se pararmos de aprender, fatalmente cairemos”.
– Hei ... Eu tentei ensinar Direito, mas mensagens de vida eu aprendi com você...
– Que nada ... Você sabe o que eu acabei de ler?
– Não ...
– Aquele livro que você escreveu com o Juiz Federal...
– William Douglas?
– Sim, sim ... Um livrinho maravilhoso, mas eu tenho algumas sugestões... Faltou você contar pelo menos 10 histórias que você sempre contava na sala de aula... Lembra do segredo guardado a sete chaves? da teoria do degrau? e da síndrome da metralhadora giratória?
– Ah... Então vamos conversar ...
– Você lembra do dia em que você desistiu de fazer Direito?
– Sim, sim ...
– Pois é o primeiro assunto da primeira aula que profiro no curso de Direito. Aviso de forma antecipada: se um dia vocês quiserem desistir do curso, lembrem-se que o professor Dirceu também desistiu. E conto a história do “fenômeno psicológico das frases”. Lembra?
– O que? Você é professora universitária?
– Sim. Voluntariamente. E a culpa é sua ...
– Minha?
– Sim. Você nos ensinou que, se o objetivo ficasse difícil, deveríamos idealizar um maior. Pois bem. Passei por algumas “pequenas dificuldades”. Ficou difícil ser advogada. Então, nos momentos difíceis, eu comecei a idealizar ser advogada, professora universitária e especialista em Direito Penal. Como você está percebendo, o sonho continua ... Hei ... Você sabe o que tem escrito na parede em frente a minha cama?
– Não.
– Os versos de um tal professor Dirceu:
Sonho não é pra ser sonhado;
E sim,
Para ser realizado.
Conversamos por mais de três horas, fiz várias anotações e saí do diálogo diretamente para o computador. Estava tão contagiado, tão empolgado, que escrevi durante 18 horas, quase consecutivas. A história de Dona Maria, deveria ser registrada e o livro Carta aos Concursandos, que escrevi com o amigo William Douglas, deveria continuar com Os Segredos do Sucesso nos Concursos Públicos.