O Presidente da República sancionou duas leis no apagar das luzes de 2001, alterando sobremaneira o cotidiano dos operadores do direito, ambas com entrada em vigor 3(três) meses após sua publicação. Tratarei, apenas, das mudanças efetuadas no art. 475 do CPC, relativas ao duplo grau de jurisdição. Diz a lei 10.352 de 26 de dezembro de 2001 :
Art. 1º Os artigos da Lei n.º 5869, de 11 de janeiro de 1973, que instituiu o Código de Processo Civil, a seguir mencionados, passam a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:
I – proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público;
II – que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública (art. 585, VI).
§ 1º Nos casos previstos neste artigo, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação; não o fazendo, deverá o presidente do tribunal avocá-los.
§ 2º Não se aplica o disposto neste artigo sempre que a condenação, ou o direito controvertido, for de valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos, bem como no caso de procedência dos embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor.
§ 3º Também não se aplica o disposto neste art. quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente.
Não se submete mais ao crivo automático do Tribunal, a sentença que anular casamento (como previa o antigo art. 475,I do CPC). Andou bem a modificação, em assunto que já não tem a relevância de outrora. Já é forte, inclusive, a corrente doutrinária que entende que vários aspectos relacionados ao casamento devem ficar restritos a procedimentos administrativos, saindo da esfera judicial.
Ampliou-se no art. 475,I do CPC o leque de sujeitos que, ao não lograram êxito na sua pretensão, têm direito à confirmação da sentença pela instância superior, independente de recurso. A medida serve mais para pacificar a jurisprudência, pois os beneficiários incluídos (DF, autarquias e fundações públicas) já eram detentores desta prerrogativa, pelo entendimento majoritário.
No art. 475,II do CPC foi disciplinado o regramento da execução da dívida ativa da Fazenda Pública em relação ao duplo grau de jurisdição, surgindo interessante questão a ser dirimida na jurisprudência.
Antes, não obtendo sucesso a Fazenda Pública, haveria o reexame necessário para confirmação(...que julgar improcedente a execução de dívida ativa da Fazenda Pública). Agora, se os embargos à execução forem julgados procedentes, teremos, obrigatoriamente, a revisão. Parece a mesma coisa mas, rigorosamente, não é.
Primeiro, importante segmento da doutrina entende que o termo embargos à execução diz respeito, apenas, aos embargos do devedor (arts. 736/747 do CPC), não envolvendo, portanto, os embargos de terceiro (arts. 1046 e ss. do CPC). Uma decisão, por conseguinte, em embargos de terceiro, contra a Fazenda Pública, não sofreria o duplo grau. Note-se, entretanto, que no §2º do novo art. 475 do CPC, o texto menciona, expressamente, o termo embargos do devedor, o que sugere que a terminologia no inciso II tem sentido amplo. Em segundo lugar, já é largamente aceita, hodiernamente, a defesa do executado nos próprios autos da execução, via exceção de pré-executividade, por exemplo, e não via embargos à execução, inobstante a interpretação dada por outros ao art. 16,§ 3º da Lei 6830/80. Pela nova regra, se a Fazenda Pública é derrotada em processo de execução da dívida ativa, sem a necessidade de embargos à execução, não haveria necessidade de duplo grau de jurisdição.
No tocante à remessa dos autos, o legislador retirou a menção à parte vencida(...haja ou não apelação voluntária da parte vencida..). Entendo despicienda a modificação. Antes, como hoje, inerte ou não a parte vencida, haveria remessa dos autos, quaisquer que fosse a conduta da parte vencedora.
O legislador, de forma inovadora, relacionou quatro situações em que não teremos a aplicação da remessa por duplo grau:
1. se a condenação ou direito controvertido for de valor certo não excedente a 60 salários mínimos;
2. na procedência de embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor;
3. se a sentença for fundada em jurisprudência do plenário do STF;
4. se a sentença for fundada em súmula do STF ou do tribunal superior competente
O primeiro caso diz respeito, basicamente, ao art. 475,I do CPC e o operador do direito deve observar que o quantum deve ser de valor certo, não superior a 60 salários mínimos. O termo valor certo deve ser entendido na esteira do art. 604 do CPC: não exige nada mais que o cálculo aritmético na sua apuração ou já está definido de forma líquida. A limitação a 60 salários mínimos é mais uma a ocupar o nosso cotidiano: 20 salários mínimos para procedimento sumário (art. 275,I do CPC), 40 salários mínimos nos juizados especiais (art. 3º da lei 9099/95)...
Observe se que tanto não haverá duplo grau se o litígio envolver pedido menor do que 60 salários mínimos, como em pedido acima deste valor, desde que a condenação ou discussão, neste caso, fique situada dentro do teto cabalístico. Em síntese : o pedido pode ser maior do que 60 salários mínimos mas a parte litigiosa ficar dentro do limite ou a condenação se adstrir ao teto legal. Em ambos os casos não acontecerá o duplo grau.
O segundo caso, incluído, provavelmente, para ressaltar a situação do art. 475,II do CPC, acaba por levantar certa contradição com a primeira parte do §2º do referido artigo.
Imaginemos que a Fazenda Pública execute um suposto devedor pela quantia de 70 salários mínimos e que este oponha embargos a esta execução pelo valor total da dívida, sendo que a sentença reconheça a procedência parcial dos embargos, restringindo a dívida a 40 salários mínimos. Entendendo a sentença como condenatória, fato digno de embates doutrinários, enquadra-se na primeira parte do §2º (condenação, mesmo que parcial, de trinta salários mínimos, dentro do limite de 60 salários mínimos), ainda que a dívida executada, seja superior a 60 salários mínimos(exigência da segunda parte do §2º).
A distribuição dos textos leva à interpretação de que o §2º consta de duas partes: uma para o inciso I e outra para o inciso II. Não foi feliz, porém, a redação dada ao dispositivo, sem mencionar que, ao explicitar embargos do devedor, não contemplou a hipótese de embargos de terceiro.
O terceiro caso oferece mais espaço para discussões, pois o legislador empregou a expressão jurisprudência do plenário do STF. Não usou a terminologia jurisprudência dominante, ou mesmo decisões reiteradas. À letra fria da lei, embora não tenha sido esta, no meu entender, a intenção do legislador, se a sentença se fundamentar em uma única decisão do plenário do STF, não ensejaria o duplo grau de jurisdição, motivando, provavelmente, uma série de agravos, a abarrotar ainda mais nossos tribunais.
O último caso trata de decisão sumulada do STF ou do Tribunal Superior competente. O termo competente não me parece um ter sido a melhor escolha. Sob a ótica técnica, os tribunais superiores a nível federal (STF ou STJ, por exemplo) são sempre competentes para avaliar, em casos específicos e em grau recursal, uma causa ocorrendo em uma pequena comarca de primeira instância. O legislador, provavelmente, quis referir ao tribunal superior imediato( Tribunal de Alçada ou da Justiça Estadual, por exemplo).
São estes os comentários, em breve síntese, que entendi pertinentes às alterações efetivadas em tão importante artigo do nosso Código Processual Civil.