O Legado
Quais foram, assim, as consequências advindas do chamado “precedente Pinochet” para o direito internacional? No que se refere, inicialmente, à aplicação do principio de jurisdição internacional (o objetivo desse artigo) o caso Pinochet foi considerado inovador[46] , além de um ponto de inflexão para o entendimento do princípio e da aplicação das demais normas de direito internacional penal. [47] Talvez a maior consequência seja, contudo, a maior recorrência ao uso do conceito, utilizado anteriormente somente no caso Eichmann, em 1961, como afirma Diane Orentlicher (2003).
Nesse sentido, tal caso se insere em um grande movimento de transformação dos rumos do Direito Internacional no referente à aplicação do conceito de jurisdição universal, pautado em três traços principais. O primeiro deles, referente especificamente ao precedente Pinochet,se refere à possibilidade de prender ditadores em viagem por conta dos crimes que cometeram[48], inspirando ativistas pelos direitos humanos a pressionarem seus respectivos governos a prenderem os ditadores considerados “criminosos” em visita a outros países, como o fizeram as vítimas de violações aos diretos humanos ao apresentarem no Senegal em 1999 uma queixa criminal contra o antigo ditador do Chade Hissène Habré[49]. Outros casos nesse sentido foram a prisão do general iraquiano Nizar Khazraji, em 2003, e os julgamentos de junho de 2001 contra quatro ruandeses na Bélgica, por suas participações em crime de genocídio naquele país. Tal característica obteve novo vigor com a criação do Tribunal Penal Internacional, ao qual algumas legislações nacionais já permitem levar à julgamento cidadãos nacionais[50].O segundo traço pode ser definido como repercussão (backlash)[51], ou seja, representou uma forte mudança nos rumos da política global, que a muito defendiam os princípios do mútua limitação (restraint) e retenção (deterrence) nas relações interestatais. Já o terceiro traço se refere à proliferação e diversificação de Tribunais empoderados para julgar questões relativas ao direito humanitário[52] - tribunais estes que incluem, não apenas o Tribunal Penal Internacional, mas também os tribunais mistos de Ruanda e da ex-Iugoslávia.
Dessa forma, observou-se à um novo revigoramento do Direito Internacional, marcado pela confirmação da possibilidade levar à julgamento antigos chefes de Estado – o cargo máximo dos sistemas políticos modernos e tradicionalmente imbuídos da prerrogativa de imunidade, prerrogativa agora passível de ser questionada. Também contribuiu, nesse sentido, para o processo de limitação da soberania estatal, processo este que culminou em iniciativas como a intervenção da OTAN no Kosovo em 1999, alegando razões humanitárias[53]. Ademais, tal caso pôs em evidência a seguinte questão, apresentada por Ruth Wedgwood (2000): Poderia uma corte estrangeira sustentar os princípios de jurisdição universal e de limitação da imunidade para atos oficiais baseada no de direito internacionalcostumeiro e no princípio do jus congens? Ou isso necessita de um tratado ex ante assentido pelo Estado onde a crime ocorreu e pelo Estado detentor da nacionalidade do acusado? Poder-se-ia aplicar um mesmo tratado para as duas questões?[54] Aparentemente tais questões ainda estão em aberto e são passíveis de serem respondidas em futuros casos.
Outra relevante consequência desencadeada pelo caso, que também afeta consideravelmente a aplicação do princípio da jurisdição universal em outros casos, é o duplo processo, que Sebastian Brett (2008) chamou de “efeito Pinochet” e “efeito Garzón”. O primeiro se refere ao processo desencadeado, especialmente na América Latina, pela prisão de Pinochet (que ficou por 503 dias em prisão domiciliar na Inglaterra enquanto aguardava os rumos do processo na Câmara dos Lords) de recorrentes julgamentos e prisões de acusados de cometerem crimes contra os direitos humanos, levados comumente perante o Tribunal por suas próprias vitimas.[55] O segundo processo – o chamado “Efeito Garzón”, concebido por Garreton (apud BRETT, 2008) –, pode ser entendido como a maior recorrência de mandatos contra os acusados de cometerem “graves violações” contra a humanidade por diversos juízes ao redor do globo, a exemplo do que teria feito Baltazar Gazón com relação ao caso Pinochet. Tais efeitos, em conjunto, teriam gerado, continua Sebastian Brett, diversas reverberações ao redor do globo, tal como no já referido caso Hissène Habré, além do caso Rohr-Arriaza, acusado na Espanha pelo genocídio perpetrado contra a população maia na Guatemala entre 1960 e 1996, do Ndombasi, ministro atuante das relações exteriores do Congo levado à Corte Internacional de Justiça pela Bélgica por crimes contra a humanidade, e das acusações feitas por ministros belgas contra o ex-primeiro ministro israelense Ariel Sharon pelo massacre em campos de refugiados palestinos e contra o ex-presidente Bush Sr. pelos crimes cometidos durante a Guerra do Golfo de 1991.[56]
Assim, conclui-se que o chamado “Precedente Pinochet”, não obstante o seu desfecho, teve um significativo impacto nos rumos do direito internacional penal, incentivando a mais usual aplicação do principio da jurisdição universal (embora seja questionável a sua aplicação no que tange à decisão Pinochet 3, desenvolvida pela Câmara dos Lords inglesa) e comprovando a possibilidade de levar-se ao tribunal indivíduos tradicionalmente protegidos sobre o princípio da imunidade. Desse modo, observou-se a uma concomitante relativização do conceito de imunidade, tornando-o susceptível de questionamento face a outros princípios que visam à condenação de indivíduos acusados de terem cometido graves violações contra a humanidade – ou seja, observa-se também à um simultâneo fortalecimento dos conceitos de jus congens. Dessa maneira, o caso em evidência apresenta-se, de fato, como afirma, Davidson (2001), como um verdadeiro ponto de inflexão.
Bibliografia
BASSIOUNI, M. C. Universal Jurisdiction for International Crimes: Historical Perspectives and Contemporary Practice. Virginia Journal of International Law Association, 81 Fall (2011), p. 42
BRETT, S. “The Pinochet Effect. Ten Years on from London 1998.” Report of a conference held at the Universidad Diego Portales, Santiago, Chile (October, 2008). p. 8
BROWN, B. S. “Universal Jurisdiction. Myths, Realities, and Prospects.The Evolving Concept of Universal Jurisdiction”.New England Law Review, 35, Winter (2001). P. 383.
DAVIDSON, J. “The Pinochet Precedent. Pushing Human Rights Standards in International Law”. Working Paper prepared for the Political Science Research Group of the University of South Carolina (2001). Disponívelem: http://artsandsciences.sc.edu/poli/psrw/working.html
ENACHE-BROWN, C.; FRIED, A. “Universal Crime, Jurisdiction and Duty: The Obligation of AutDedere and AutJudicare in International Law”. McGill Law Journal, 43 (1998), p. 613
FASANO, R. R. “A Competência Repressiva Universal no Direito Internacional Penal”. Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2011
GREEN, L. C. “‘Grave Breaches’ or Crimes Against Humanity?”. United States Force Academy Journal of Legal Studies, no. 8 (1998), p. 19
PRINCETON PROJECT ON UNIVERSAL JURISDICTION.“The Princeton Principles on Universal Jurisdiction”, Princeton (NJ): Princeton University, 2001.
MALLORY, J. L. “Resolving the Confusion over Head of State Immunity: The Defined Rights of Kings”.Columbia Law Review, Vol. 86, No. 1 (Jan 1986).
NASH, K. “The Pinochet Case. Cosmopolitanis and Intermestic Human Rights.” The British Journal of Sociology, No. 58 (2007). p. 417
ORENTLICHER, D. F. “Universal Jurisdiction After Pinochet. Prospects and Perils”. Paper presented at University of California, Irvine, on Februar 21 (2003), as part of the Symposium Series “Prosecuting Perpetrators: International Accountability for War Crimes and Human Rights Abuses.”
POPOFF, E. “Inconsistency and Impunity in International Human Rights Law. Can the International Criminal Court Solve the Problems Raised by the Rwanda and Augusto Pinochet Cases?”.George Washington International Law & Economics Review, Vol. 33 (2001), p; 363
RANDALL, K. C. “Universal Jurisdiction Under International Law.” Texas Law Review, No 665, March(1988), p. 785
WEDGWOOD, R. “Augusto Pinochet and International Law”. McGill Law Journal, No. 46 (2000). p. 241
Notas
[1]Orentlcher, 2003; Wedgwood, 2000; Davidson, 2001
[2] FASANO, 2011
[3] “This is universal jurisdiction: it is jurisdiction based solely on the nature of the crime. National courts can exercise universal jurisdiction to prosecute and punish, and thereby deter, heinous acts recognized as serious crimes under international law.”” (PRINCETON PROJECT ON UNIVERSAL JURISDICTION, 2001: 23)
[4]FASANO, 2011, p. 12
[5]“The term ‘jurisdiction’ […] refers to a state's legitimate assertion of authority to affect legal interests” (RANDALL, 1988, p. 1)
[6]RANDALL, 1988
[7] NASH, 2007
[8]“This principle provides every state with jurisdiction over a limited category of offenses generally recognized as of universal concern, regardless of the situs of the offense and the nationalities of the offender and the offended” (RANDALL, 1988: 3)
[9] “The principle of universal jurisdiction, ‘assumes that every state has an interest in exercising jurisdiction to combat egregious offenses that states universally have condemned.’” (ENACHE-BROWN; FRIED, 1998)
[10] RANDALL, 1988; BASSIOUNI, 2001; BROWN, 2001;
[11] RANDALL, 1988
[12] GREEN, 1997
[13]GREEN, 1997
[14] RANDALL, 1998
[15]The jus cogens concept refers to "peremptory principles or norms from which no derogation is permitted, and which may therefore operate to invalidate a treaty or agreement between States to the extent of the inconsistency with any of such principles or norms."(RANDALL, 1998)
[16]RANDALL, 1998
[17]ENACHE-BROWN; FRIED, 1998
[18] BASSIOUNI, 2001
[19] ENACHE-BROWN; FRIED, 1998
[20] MALLORY, 1986
[21] “Each state, with the expectation of being accorded similar treatment, grants foreign heads of state at least the degree of immunity necessary for them to perform their duties within that state without being subject to detention or arrest.” (MALLORY, 1986, p. 179)
[22]“Under existing customary international law, heads of state and diplomats can still claim procedural immunity in opposition to the exercise of national criminal jurisdiction. However, if brought to trial, they cannot raise immunity as a substantive defense to the crime charged if it is one of the crimes listed above or if it is a crime for which a treaty specifically disallows such a defense”. (BASSIOUNI, 2001, p. 83)
[23] POPPOF, 2001, p. 380
[24]POPPOF, 2001, 380
[25]POPPOF, 2001; FASANO, 2011; DAVIDSON, 2001
[26]DAVIDSON, 2001, p. 6
[27] FASANO, 2011, p. 122
[28] FASANO, 2011, p. 122
[29]RANDALL, 1988, p.
[30]WEDGWOOD, 2000, p. 243
[31]DAVIDSON, 2001, p. 8
[32] POPOFF, 2001, p. 363
[33]Para este artigo, utilizar-se-á a tipologia utilizada tanto por Davidson (2001), quanto do Fasano (2011), que separa o processo de julgamento do senador Pinochet em três partes. Existem, contudo, divergências, tal como a apresentada por Brett (2008), que o divide em apenas duas partes, incorporando os eventos da segunda na primeira parte.
[34]DAVIDSON, 2001, p. 8
[35]DAVIDSON, 2001, p. 8-9
[36]WEDGWOOD, 2000, p. 243
[37]Tal entidade, além de ocupar o posto de “Câmara alta” do Parlamento britânico, possuía, até 2009, poderes judiciais, representando a mais alta corte de apelação para a maioria dos casos do Reino Unido.
[38]DAVIDSON, 2001, p. 9
[39] DAVIDSON, 2001; BRETT, 2008
[40]BRETT, 2008, p. 12-13
[41]DAVIDSON,2001, p. 10
[42]“ou você extradita ou pune”. Tal principio é semelhante ao de autdedereautjudicaree se encontra presente na Convenção contra a Tortura de 1984.
[43]DAVIDSON, 2001, p. 9
[44] POPOFF, 2001, p. 363
[45]FASANO, 2011, p. 125
[46]FASANO, 2011
[47]DAVIDSON, 2001.
[48]“First, the case opened up new possibilities for holding traveling dictators to account for their crimes.” (ORENTLICHER, 2003, p. 2)
[49]ORENTLICHER, 2003, p. 3
[50]ORENTLICHER, 2003, p. 4
[51]ORENTLICHER, 2003, p. 5
[52]ORENTLICHER, 2003, p. 9
[53]WEDGWOOD, 2000, p. 246
[54]“The case thus renewed the questions sidestepped by the law lords in Pinochet (No. 3): Can a foreign court support universal jurisdiction and limitation of official-acts immunity based upon customary international law and jus cogens? Or does it require ex ante treaty assent by the state where the offence took place and the state of the offender's nationality? Can treaty law be Applied retrospectively on these two issues (…)?” (WEDGWOOD, 2000, p. 249)
[55]BRETT, 2008, p. 8
[56]BRETT, 2008, p. 48-50