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A transcedência como requisito de admissibilidade do recurso de revista na Justiça do Trabalho

01/04/2002 às 00:00
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Antes de iniciarmos o tema propriamente dito, penso ser interessante descrever a estrutura do Poder Judiciário Trabalhista e as modalidades recursais, para que se possa melhor compreender a questão em debate.

Integrante do Judiciário Federal, a Justiça do Trabalho é ramo especializado, tendo sua competência firmada pelo art. 114 da CF/88, desta forma existem três graus de jurisdição: as Varas do Trabalho que passaram a partir de EC 24 a funcionarem somente com a presença do juiz togado, ante a extinção da representação classista; os Tribunais Regionais do Trabalho, com limite de atuação a região estadual prevista e o Tribunal Superior do Trabalho com sede em Brasília e jurisdição sobre todo o território Nacional.

O contingente que atua na Justiça do Trabalho é o seguinte:

- 1.109 Varas: compostas de 1.109 cargos de Juízes Titulares e 1.179 Juízes Substitutos.

- 24 TRT: 315 juízes.

- TST: 17 Ministros.

Nas Varas existem 218 cargos vagos e nos Regionais 28 cargos vagos.

Tal estrutura se faz ainda necessária ante o conflito existente entre o capital e o trabalho, considerando que em nosso País há alta rotatividade da mão-de-obra; há um excessivo número de empregados não registrados; abuso de contratos simulados sob a égide da terceirização ou de cooperativas de trabalho, com o intuito de camuflarem as relações de emprego; o incremento da conscientização dos direitos pela classe trabalhadora, em especial os rurais e os domésticos; excesso estrondoso de leis e medidas provisórias; complexas regras processuais e procedimentais; falta da cultura da mediação e da arbitragem e a existência de baixo custo para recorrer das decisões trabalhistas, conforme bem definido pelo Ministro aposentado do TRT e Presidente honorário da Academia Nacional de Direito do Trabalho Arnaldo Süssekind, em artigo publicado no jornal dos trabalhadores no comércio do Brasil de fevereiro deste ano.

Aponto, ainda, para o incremento da demanda a feliz atuação do Ministério Público do Trabalho, que passou a partir da Carta Política de 88 a ter uma efetiva atuação na Justiça do Trabalho, com a utilização em larga escala da Ação Civil Pública e da Ação Anulatória, afora os recursos utilizados em defesa da ordem social e do patrimônio público.

Aliados a esses fatores, desde 1986 diversos planos econômicos fracassaram, impondo à classe trabalhadora perda salarial significativa, o que motivou milhares de ações trabalhistas.

Com efeito, temos que no período de 1960 a 2000, os órgãos de primeiro grau da Justiça do Trabalho receberam mais de 36 milhões de reclamações, sendo que somente na década de 90 este número ultrapassou a casa dos 17 milhões.

Dados ainda preliminares apontam que no ano de 2001 foram ajuizadas quase dois milhões de novas reclamações no Brasil.

Comparando-se os dados no Pará, temos que a Justiça do Trabalho local recebeu no ano de 2001 mais de 60 mil reclamações, enquanto a Justiça Federal comum 14.228 processos.

Em atenção ao duplo grau de jurisdição, temos que das decisões terminativas e definitivas proferidas pelas Varas do Trabalho cabe Recurso Ordinário ao TRT; das decisões proferidas em fase de execução cabe o Agravo de Petição; além da utilização de embargos de declaração e do agravo de instrumento, sendo que este último só é utilizado para destrancar qualquer outro recurso que foi negado seguimento por falta de algum pressuposto processual.

Das decisões proferidas pelos Tribunais Regionais cabe a utilização de Recurso de Revista para o Tribunal Superior do Trabalho, que além de obedecer aos pressupostos gerais de tempestividade, preparo, adequação, etc..., deve ainda se lastrear nas condições estabelecidas no art. 896 da CLT, isto é, deve ser baseado em três hipóteses:

- Demonstrar divergência jurisprudencial quanto à interpretação de lei federal em cotejo com outras emanadas de TRT´s diferentes, da Seções que julgam litígios individuais no TST ou de súmula desta mesma Corte;

- Quando for dado a mesmo dispositivo de lei estadual, normas coletivas ou regulamento empresarial de observância obrigatória em área territorial que exceda à jurisdição do regional.

- Violação a lei federal e afronta direta e literal à Constituição Federal.

Neste sentido, o TST possui as seguintes atribuições: uniformizar a jurisprudência nacional; controlar a aplicação de leis estaduais; controle de normas coletivas de trabalho; controle de regulamentos empresariais; controle da legislação federal e da Constituição Federal.

Assim sendo, o TST é o único Tribunal Superior no Brasil que tem competência para apreciar questões quanto à observância do texto constitucional.

Portanto, os outros Tribunais Estaduais, quer comum, especializado ou federal, ao proferirem seus Acórdãos, o tema constitucional deve ser de imediato atacado via Recurso Extraordinário ao STF.

Esta situação faz com que na Justiça do Trabalho tenhamos em alguns casos quatro instâncias de julgamento onde a matéria constitucional por ser debatida: as Varas, os TRT´s, o TST e por fim o Supremo.

Convém declinar que o Recurso de Revista era primitivamente denominado de recurso extraordinário, porém, dada à confusão com igual apelo junto ao STF, decidiu o legislador trocar a nomenclatura, cabendo a esta modalidade recursal apenas e tão somente a matéria de direito versada no processo, sendo que a matéria fática encerra sua discussão nos Tribunais Regionais, onde tais decisões são soberanas.

Porém, mesmo que a instância de segundo grau tenha admitido o RR, o Ministro a quem couber relatar o feito do TST pode desconsiderar tal decisão e não conhecer da Revista.

Desta feita, os juízos de admissibilidade do RR são observados distintamente pelo Regional e também pelo TST.

Assim, os TRT ao receberem os Recursos de Revista procedem duas análises, uma quanto aos pressupostos gerais, a segunda quanto à demonstração de ocorrência das questões dispostos no art. 896 consolidado, isto é, o próprio órgão prolator da decisão atacada faz um juízo de mérito sobre o apelo, fato que se repete nos demais Regionais quando da apreciação de Recurso Especial ao STJ e de Recurso Extraordinário ao STF.

Diante do excesso de recursos na esfera trabalhista, o Governo Federal instado por alguns integrantes da Magistratura Laboral, tenta desde o ano de 2000 instituir um critério prévio de admissibilidade dos Recursos de Revista, denominado de "transcedência".

Com efeito, temos inicialmente o Projeto de Lei nº 3.267/2000 oriundo do Poder Executivo, onde previa que o TST somente conheceria de Recursos de Revista se a matéria de fundo transcender o processo, quanto aos seus reflexos gerais de natureza jurídica, política, social ou econômica.

Com este projeto, a parte recorrente deveria demonstrar a denominada transcedência da matéria, salvo tendo havido violação direta a CF e se o tema estiver pacificado na jurisprudência, cabendo sempre ao TST regulamentar o procedimento de seleção dos recursos e a uniformização dos critérios de transcedência.

A questão tramitou em regime de urgência na Câmara dos Deputados, sendo que a Comissão de Constituição e Justiça daquele parlamento, diante do voto da Relatora Zulaiê Cobra do PSDB de SP, concluiu pela inconstitucionalidade e injuricidade do projeto, opinando pela rejeição do mesmo, argumento ser difícil sua aplicação jurídica, pois de amplo conceito quanto à definição do que é transcedência e que cabe somente ao Congresso Nacional dispor sobre a matéria.

Perdida a questão, o Governo baixou a MP nº 2.226 de 04/09/2001, onde dispõe que o TST no recurso de revista apreciará previamente se a causa oferece transcedência com relação aos seus reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica, cabendo ao órgão máximo trabalhista regulamentar a matéria quanto ao seu processamento, respeitando o princípio da publicidade, com direito a sustentação oral e a fundamentação da decisão.

Até a presente data o TST ainda não regulamentou a questão, pelo que tal requisito ainda não tem aplicação prática.

Aponta-se que a transcedência disposta na MP apresenta os seguintes vícios: seria inconstitucional; dá ao julgador um subjetivismo na decisão de todo indesejável e por fim que em vez de tornar mais célere o julgamento, atravancaria ainda mais o sistema recursal trabalhista.

No que diz respeito à inconstitucionalidade, penso, ser a mesma existente, pois é vedada a utilização de MP sobre aspectos processuais, bem como que para o capital será fácil demonstrar o reflexo da questão, pelo menos no aspecto econômico, porém para o trabalhador que postula direitos individuais muitas das vezes não complexos, entendo ser quase impossível que o mesmo consiga demonstrar que a questão supera tal obstáculo, em clara afronta ao princípio da igualdade inserto no art. 5º.

Tem-se, ainda, que a matéria não se coaduna nos critérios de relevância e urgência, dispostos no art. 62, matéria que pode ser enfrentada pelo STF diante do precedente contido na ADIN 1.753.

Quanto ao subjetivismo, temos que essa não deve ser a nossa maior preocupação, pois de fato o caráter subjetivo das decisões judiciais é inerente a função jurisdicional, pois por mais que se tente dar uma feição apenas técnica e formal do ato de julgar, enquadrando o juiz como aplicador de leis, creio ser impossível distanciar a carga subjetiva do julgamento.

Mas uma vez vislumbra-se a pseudo certeza da segurança jurídica, pois a técnica legislativa não é lógica, pois eminentemente ideológica, apesar de alguns teimarem em não ver, Platão já observava: "E ao estabelecer estas leis, mostram os que mandam que é justo para os governos o que a eles convém e aos que delas se afastam castigam como violadores das leis e da justiça".

Neste sentido, quando o julgador interpreta o ordenamento jurídico, faz com sua carga subjetiva, isto é, aplica mesmo sem perceber sua experiência social, sua percepção do conflito, suas práticas do dia-a-dia, suas concepções ideológicas.

Mesmo atualmente, não há como se afastar tal critério, a título de exemplo se descreve o posicionamento do TST quanto aos dissídios coletivos, ao adotar tese no sentido de que o suscitante do litígio geral prove exaustivamente a observância do prévio requisito da negociação, adotando postura política para afastar a Justiça do Trabalho ao exercício do seu poder normativo e para impor à solução extrajudiciais dos conflitos.

O TST editou súmula entendendo cabível a reposição salarial atinente ao Plano Bresser e ao Plano Verão, mas por pressão do Executivo primado na falência das contas públicas revogou a mesma e mais ainda tem dado provimento a Ações Rescisórias por este episódio, criando, assim uma nova categoria.

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Enfim, diversos são os exemplos que expõem a subjetividade do julgador.

Superada a questão da inconstitucionalidade, creio, ainda, que a MP em nada acelerará ou desafogará o TST, ao contrário irá criar mais entraves.

Assim, o julgamento prévio no que diz respeito à observância da transcedência terá que ser obrigatoriamente debatido em sessão pública, com direito a sustentação oral, o que inevitavelmente causará um atropelamento no espaço físico.

Indeferida a transcedência, e em observância aos princípios do contrário, da ampla defesa e do manejo recursal, deve haver a possibilidade da parte prejudicada com a decisão interpor agravo para um outro órgão, a fim de reexaminar a questão.

Temos, ainda, que se revogou por incompatibilidade a possibilidade do Ministro Relator decidir a questão monocraticamente, nos termos do § 5º, do art. 896 da CLT, quando a decisão recorrida estiver em consonância com súmula do TST, sendo que reputo esta possibilidade como avanço significativo, como bem alertado pelo advogado Ives Grandra Martins.

A hermenêutica é talvez o caminho menos seguro, mais impreciso da ciência do Direito; porque partilhada da sorte da linguagem, porém é necessária, já que o intérprete é o renovador inteligente e cauto, o sociólogo do Direito. O seu trabalho rejuvenesce e fecunda a fórmula prematuramente decrépita, e atua como elemento integrador e complementar da própria lei escrita, entretanto, pensando em termos macros a magistratura constitui um elemento conservador por excelência: o pretório é a última cidadela que as idéias novas expugnam. A jurisprudência afasta-se dos princípios com freqüência maior do que a doutrina, pois é analítica, já que examina as espécies uma a uma, ao generalizar, pode incorrer em erro grave o estudioso, além disso, o fato impressiona e apaixona mais do que a teoria pura.

Estamos vivendo um verdadeiro fanatismo pelos acórdãos, a respeito do assunto Maximiliano comenta: "dentre os freqüentadores dos Tribunais, são muitos os que se rebelam contra uma doutrina; ao passo que rareiam os que ousam discutir um julgado, salvo por dever de ofício, quando pleiteiam a reforma do mesmo. Citado um arresto, a parte contrária não se atreve a atacá-lo de frente, prefere ladeá-lo, procurar convencer de que não se aplica à hipótese em apreço, versara sobre caso diferente". Assim, copiam-se, imitam-se, contam-se os precedentes, mas de pesá-los não observam, já que se desprezam os trabalhos diretos sobre os textos; prefere-se a palavra dos profetas às tábuas da lei, pois os arrestos se tornaram a ciência daqueles que não têm outra ciência; pois a jurisprudência é uma ciência facílima de se adquirir: basta um bom índice das matérias, porém a jurisprudência auxilia tão somente do intérprete, não o substitui, nem dispensa, assim têm valor relativo, pois deve ser observada quando acorde com a doutrina.

Verifica-se, então a obra renovadora e constante realizada pelos Juízes de primeiro grau, por isso mesmo, não há motivo para impor aos magistrados obediência compulsória à jurisprudência superior, como faziam diversos Tribunais mediante advertências e censuras, e felizmente o Congresso Revisor sequer chegou a apreciar a proposta do Deputado Nelson Jobim, no sentido de vincular as decisões as Súmulas das Cortes Superiores, pois aniquilaria o poder do Juiz de primeira instância, que em regra geral é o que está mais atento aos anseios populares, já que integrante da sociedade conflitante que está demandando, entretanto a matéria surge novamente com toda força na reforma do Judiciário.

A reiterativa das decisões figura em alto grau de importância basta citarmos que na França, a jurisprudência criadora precedeu a legislação; daí o prestígio da frase de Celice: "o legislador é antes uma testemunha que afirma a existência do progresso do que um obreiro que o realiza".

No Brasil aconteceu o mesmo: o STF impediu por meio de habeas corpus, durante o estado de sítio, o degredo para lugares sem sociabilidade; a Constituição de 1934 converteu às conclusões dos Acórdãos em regra suprema (Art. 175, § 1º; art. 209, III, da CF de 1946).

Apesar de muitos magistrados acharem meritório não terem suas sentenças reformadas, prova apenas sua subserviência intelectual, já que seguem de modo absoluto e exclusivo a orientação ministrada pelos Acórdãos dos Tribunais Superiores, Pessina recorda o verso de Horário: "os demasiados cautos e temerosos da procela não se alteiam ao prestígio, nem à glória: arrastam-se pela terra, como serpentes ".

O Juiz - apregoa Cappelletti - deve adaptar os instrumentos hermenêuticos com a finalidade de operar uma dinâmica interpretação evolutiva e decisivamente construtiva e criativa, o fim social deve ser o bem maior do direito, que não pode ser traduzido única e exclusivamente na lei, carregada de fatores dominadores da sociedade, há de existir um maior anseio libertador aos juizes, que em muitas das vezes, por vícios adquiridos ao longo da vida e reforçados nos bancos universitários, esquecem do seu verdadeiro mister: de distribuidor de Justiça, não de leis.

O que ameaça o juiz, numa democracia, é o perigo do hábito, da indiferença burocrática, a irresponsabilidade anônima. Nós queremos - pedia Calamandrei - juizes com almas, engagés, e que saibam levar com humano e vigilante desempenho o grande peso que implica a enorme responsabilidade de fazer justiça, neste sentido, é imenso o desafio da Justiça do Trabalho, pois como o juiz deve enfrentar a questão da função social da Justiça do Trabalho nesse país dividido, contraditório e explosivo?

José Eduardo Faria aponta algumas soluções: um amplo processo de renovação hermenêutica e de oxigenação doutrinaria; o espancamento definitivo da "pseudo" neutralidade do juiz e por fim uma justiça não exclusivamente técnica, assim estes são os nossos desafios como operadores do direito, já que assumimos a defesa intransigente da Justiça, dar ao justo o que lhe é justo, sem receio do opressor, para ir contra o mesmo opressor, pois, conforme Hegel: o que é dado por sabido, exatamente porque é sabido, não é efetivamente conhecido."

Em resumo, podemos afirmar, que a jurisprudência contribui amplamente para a construção do Direito, como alicerce fundamental para o seu aprimoramento, entretanto jamais pode ser vinculativa, devendo servir única e exclusivamente como amparo à pesquisa doutrinária, porém jamais em substituição à mesma, sob pena de nós transformamos em máquinas aplicadoras da mesma, retirando-se o livre convencimento, a interpretação, enfim a autonomia e a liberdade do julgamento, fazendo, então ruir o pilar básico do Estado de Direito.

Finalizo com o seguinte:

O bom juiz põe o mesmo escrúpulo no julgamento de todas as causas, por mais humildes que sejam. É que sabe que não há grandes e pequenas causas, visto a injustiça não ser como aqueles venenos a respeito dos quais certa medicina afirma que, tomadas em grandes doses, matam, mas tomadas em doses pequenas, curam. A injustiça envenena, mesmo em doses homeopáticas. (Piero Calamandrei).

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Sobre o autor
Carlos Zahlouth Júnior

juiz do Trabalho em Belém (TRT da 8ª Região), vice-presidente da Amatra VIII, professor de Direito na UFPA e na UNAMA, pós-graduado em Processo Civil pela Universidade de Coimbra (Portugal)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZAHLOUTH JÚNIOR, Carlos. A transcedência como requisito de admissibilidade do recurso de revista na Justiça do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 56, 1 abr. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2863. Acesso em: 24 abr. 2024.

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