7. Da Responsabilidade Civil dos Notários e Registradores
O artigo 22 da lei 8935/94 diz: "Os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, na prática dos atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros o direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos".
O dispositivo revogou o artigo 28 da Lei de Registros Públicos que determinava: "Além dos casos expressamente consignados, os oficiais são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que, pessoalmente, ou pelos prepostos ou substitutos que indicarem, causarem, por culpa ou dolo, aos interessados no registro".
Como se vê, o sistema da lei anterior, pelo menos no tocante aos registradores, era o da responsabilidade baseada na culpa latu sensu. Note-se que o artigo 28 falava em culpa dos "oficiais". Assim sendo a responsabilidade só poderia ser mesmo subjetiva, pois aqueles recebiam, pela ordem constitucional vigente, tratamento de funcionários públicos, cujo regime era (e ainda é) o da responsabilidade com culpa.
A lei 8935/94, que unificou a responsabilidade dos notários e registradores, veio preencher uma lacuna provocada pela promulgação da CR/88, que, conforme já dito, alterou completamente a situação dos titulares das serventias extrajudiciais. Entretanto, mais um a vez a imprecisão do legislador leva para a doutrina uma discussão que já deveria estar superada: qual é, afinal, a natureza da responsabilidade civil dos notários e registradores?
O referido artigo 22 diz apenas que notários e registradores respondem pelos danos que, nesta qualidade, causarem a terceiros. Não esclarece ele em nenhum momento, se há ou não a necessidade de prova da culpa dos titulares, como fazia o artigo 28 da lei 6015. Está criada a confusão.
Na verdade esta questão não está ainda solucionada porque a sua definição passa necessariamente por uma outra divergência já notada aqui neste trabalho, acerca da natureza jurídica do vínculo que liga o notário e o registrador ao Estado.
Sendo o notário e o registrador considerados servidores públicos, sujeitos à aposentadoria compulsória e concurso público, como já opinou o STF, a natureza da sua responsabilidade é subjetiva e, portanto, deve restar provada a ocorrência de culpa em qualquer das suas modalidades: imprudência, imperícia, negligência ou dolo.
Assim se dá porque o funcionário público é visto como uma extensão do próprio Estado e se, nessa qualidade, ele vem a causar dano a alguém, o Estado tem o dever de reparar diretamente, para que a vítima não tenha prejuízo ainda maior. Tem porém a obrigação de propor ação regressiva contra o servidor havendo prova de sua culpa, pois também não pode a Administração tratar com desleixo o patrimônio público.
Nesta hipótese, o sistema de responsabilização dos titulares das serventias extrajudiciais volta a ser o mesmo previsto pela Constituição anterior e pelo artigo 28 da Lei de Registros Públicos. O prejudicado que desejar acionar o Estado pelo dano causado por um titular de serventia extrajudicial, poderá fazê-lo objetivamente, mas se decidir por acionar diretamente o "servidor" deverá fazer a prova da sua culpa. A responsabilidade tem então duas faces: objetiva para o Estado e subjetiva para o titular.
Entretanto, se entendermos que notários e registradores são particulares que atuam em caráter privado, em colaboração com o Poder Público através de delegação estatal, o tratamento dado à sua responsabilização será outro, completamente diferente.
Não seriam os tabeliães e registradores funcionários públicos, mas sim, agentes delegados, muito embora exerçam função tipicamente pública. É ponto pacífico que o desempenho de atividade pública não é exclusividade dos funcionários dos três poderes. Há funções que podem e efetivamente são exercidas por pessoas jurídicas ou físicas sem que estas sejam empregadas do Estado. É caso do que ocorre com as empresas prestadoras de serviço público, concessionárias ou permissionárias.
Estas pessoas desenvolvem atividade de índole pública, que deveriam ser prestadas pela própria Administração. Mas esta, para não se desviar de sua verdadeira finalidade – a busca do bem comum – delega a terceiros o desempenho de algumas tarefas, o que não faz com que estes terceiros se tornem seus funcionários, pois não há entre eles relação de subordinação ou hierarquia.
O titular da serventia, ao receber a delegação, passa a executar o seu serviço por sua conta e risco. Ele é quem vai arcar com todas as despesas, do aluguel prédio ao pagamento de pessoal, é ele que vai contratar empregados de sua confiança para o trabalho, é ele, portanto que vai assumir todos os riscos do negócio, substituindo totalmente o Estado naquela atividade. Com os riscos, o delegado assume também todas as responsabilidades e conseqüências decorrentes daquele serviço. É ele quem deve, pois, responder pelos danos que eventualmente venha a causar a terceiros, bem como satisfazer as obrigações impostas pela lei.
Dada a natureza do serviço, essencialmente pública, e o disposto no artigo 37 parágrafo 6º, a responsabilidade civil do notário e do registrador seria objetiva, não cabendo perquirição relativa à existência de culpa, em qualquer das suas modalidades. Provada a ocorrência do dano, caberia ao titular apenas a sua reparação, a menos que se prove culpa exclusiva ou concorrente da vítima. Responde então o delegado nos mesmos termos em que responderia o Estado se o serviço fosse por ele diretamente realizado, persistindo a teoria do risco administrativo quanto ao serviço delegado. O que importa, mais uma vez, é a natureza pública do serviço prestado, independentemente da pessoa que o preste.O agente delegado assume o risco da atividade que desenvolve e, perante o usuário, responde como se fosse o próprio Estado.
Ocorre que, justamente pelo fato de a responsabilidade do delegado ser objetiva, o Estado só vai ser obrigado a reparar o dano subsidiariamente. Não existe uma responsabilidade solidária ou concorrente; o Poder Público só será chamado a indenizar se a vítima provar que o notário ou registrador não é capaz de satisfazer a obrigação. Assim, num primeiro momento, a vítima deverá buscar o ressarcimento pelo seu prejuízo diretamente do agente delegado, que responderá objetivamente. Somente na hipótese de este provar a sua insolvência é que o prejudicado poderá buscar a reparação junto ao Estado, pois não obstante a delegação do serviço, a responsabilidade do Estado deve persistir, afinal a ele é destinada uma considerável parcela dos emolumentos percebidos pelo delegado.
Na lição do professor José dos Santos Carvalho Filho, citando o mestre Celso Antônio Bandeira de Melo (2001, p 443): "Nem sempre, entretanto, a responsabilidade do Estado será primária. Como já vimos anteriormente, há muitas pessoas jurídicas que exercem sua atividade como efeito da relação jurídica que as vincula ao Poder Público, podendo ser variados os títulos jurídicos que fixam essa vinculação. Estão vinculadas ao Estado as pessoas de sua Administração indireta, as pessoas prestadoras de serviços públicos por delegação negocial (concessionários e permissionários de serviços públicos) e também aquelas empresas que executam obras e serviços públicos por força de contratos administrativos".
E continua: "Em todos esses casos, a responsabilidade primária deve ser atribuída à pessoa jurídica a que pertence o agente autor do dano. Mas, embora não se possa atribuir responsabilidade direta ao Estado, o certo é que também não será lícito eximi-lo inteiramente das conseqüências do ato lesivo. Sua responsabilidade, porém, será subsidiária, ou seja, somente nascerá quando o responsável primário não mais tiver forças para cumprir a sua obrigação de reparar o dano".
Neste ponto devemos apontar a grande diferença em relação à hipótese em que titulares das serventias extrajudiciais são considerados servidores públicos. Naquele caso o Estado poderia ser acionado diretamente pela vítima, sem a necessidade de se buscar primeiro a responsabilidade do titular, diante do vínculo hierárquico que liga a Administração aos seus funcionários. Ao contrário, estes só deverão responder pelo dano, se o prejudicado fizer a prova da sua culpa.
8. Conclusão
O direito é uma ciência que, mais que qualquer outra, está em constante evolução, razão pela qual nunca se pode dizer que esta ou aquela discussão está definitivamente superada. O problema que estamos a discutir desde o início deste trabalho, como se vê, está longe de apresentar uma solução definitiva. Como já dito, a questão ainda gera muitas divergências na doutrina e na jurisprudência.
Até mesmo dentro do Poder Legislativo, do qual emanam as leis, o assunto ainda causa polêmica. Foi recentemente aprovado no Congresso Nacional o projeto de lei 86/1996, do Senado Federal, que altera o parágrafo 1º do artigo 39 da lei 8935/94. A proposição 86/96 tinha por objetivo acabar com a aposentadoria compulsória dos notários registradores aos setenta anos alegando que, a sua aposentadoria nessas circunstâncias acarretaria uma grande despesa para os cofres públicos, posto que deveria ser correspondente à totalidade da remuneração do serventuário.
Entretanto, seguindo a linha de interpretação definida pelo STF, o presidente Fernando Henrique Cardoso vetou integralmente o referido texto, acompanhando pareceres dos Ministérios da Justiça e Assistência Social que opinaram pela sua inconstitucionalidade. Na exposição de motivos enviada ao Congresso, o Presidente se refere várias vezes a decisões do STF que consideram notários e registradores funcionários públicos.
Como se pode perceber, tudo está a indicar que a tendência da jurisprudência, bem como dos estudiosos do Direito é de considerar mesmo notários e registradores como funcionários públicos, submetendo-os à responsabilidade direta e objetiva do Estado. Sua responsabilização então, seria supletiva, dependendo da comprovação de culpa pelo Estado, que teria contra ele o direito de regresso, como ocorre com qualquer funcionário público.
É certo que a Constituição Federal de 1988 teve a intenção, sim, de mudar o regime jurídico ao qual eram submetidos as serventias extrajudiciais e seus funcionários, o que conseguiu com relativo sucesso. Hoje a atividade deve ser desenvolvida por profissional especializado, que ingressa na serventia por meio de concurso, o que, com certeza, já está se refletindo na melhora da qualidade do serviço prestado, o que por sua vez, acarreta uma maior satisfação do consumidor.
A grande questão porém está em se definir o verdadeiro alcance de tais mudanças.Diante do quadro de incertezas analisado neste trabalho, é de se concluir que a edição da lei 8935/94 que regulamentou o artigo 236 da CF/88 não foi suficiente para definir este limite. É preciso que o legislador nacional atente para este problema, pois só uma lei - ou quem sabe até uma emenda constitucional – clara e direta será eficiente para a definição da verdadeira situação dos notários e registradores brasileiros.
Referência bibliográfica:
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