Exame da (i)legitimidade das cotas para pessoas com deficiência frente ao princípio da isonomia

27/05/2014 às 07:48
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A investigação nasce do cotejo entre o princípio da isonomia e a política de cotas para pessoas com deficiência. Para tanto, é examinado o conceito de minoria social atrelado à noção de vulnerabilidade social.

Exame da (i)legitimidade das cotas para pessoas com deficiência frente ao princípio da isonomia.

 

Wilton Santos Souza[1]

Sumário

 

1.Introdução. 2. Isonomia: conteúdo jurídico.2.1. A isonomia enquanto igualdade formal. 2.2 A isonomia enquanto igualdade material. 3. Política de cotas 3.1.Causas legitimadoras de aplicabilidade. 3.1.1. Fator de discriminação. 3.1.2 Minorias Sociais. 4. As pessoas com deficiência e a política de cotas. 5. Direito de afirmação e tratamento isonômico. 6. Considerações finais.

 

1 Introdução

 

A presente investigação nasce do corte epistemológico adiante descrito. Toma-se como referência mais remota o Estado Brasileiro. Deste se extrai uma parcela das inúmeras posturas estatais cabíveis, qual seja aquela relativa às políticas sociais de caráter afirmativo. Dentre tais mecanismos, promove-se a fixação do olhar científico diante das políticas de cotas. Face à existência de diversas minorias, promove-se a opção pelas pessoas com deficiência.

Perante o objeto em análise, coloca-se o princípio constitucional da isonomia. Faz-se, pois, o seguinte questionamento: o princípio da isonomia é mitigado pela aplicação das políticas de cotas para inserção das pessoas com deficiência? Tem-se como respostas prováveis a tal problema três hipóteses. São elas: Sim. A política de cotas em favor das pessoas com deficiência mitiga o princípio da isonomia, tendo em vista a patente violação do preceito de que todos, enquanto humanamente iguais, são merecedores de semelhante tratamento, sendo, pois, ilegítimo, qualquer critério distintivo entre cidadãos. Sim. A política de cotas em favor das pessoas com deficiência mitiga o princípio da isonomia, por desrespeitar a garantia constitucional da igualdade de todos perante a lei (Art.5º, caput da CF/88). Não. As cotas para pessoas com deficiência não mitigam o princípio da isonomia, por promoverem diferenciações legítimas, embasadas e limitadas pela maior dificuldade no acesso a bens e oportunidades, com vistas à construção de uma equiparação real.

Estas são as premissas norteadoras do estudo desenvolvido, em função do objetivo-mor de contribuição, com esta análise, no mapeamento dos pontos de afronta, ou de compatibilidade entre o princípio da isonomia e a política de cotas em favor de pessoas com deficiência.

 Para fiel cumprimento de referidas metas mostra-se necessário a análise do conteúdo jurídico da igualdade, mediante a abordagem dicotômica entre igualdade formal e igualdade material; a investigação acerca das minorias sociais (conceitos e critérios de identificação), com destaque para o grupo das pessoas com deficiência e as características passíveis de ensejar uma política afirmativa em seu favor e o estudo da temática “ações afirmativas”, mediante uma abordagem de seus princípios e fundamentos de justificação.

Uma atividade investigativa com tal temática apresenta grande relevância, ante a escassez de estudos especificamente direcionados aos grupos de pessoas com desvantagem em razão da compleição corporal, sensorial ou mental. Pode-se constatar a existência de algumas pesquisas acerca do princípio da isonomia e, em número ainda menor, outras voltadas estritamente à descrição das dificuldades enfrentadas por deficientes. Também não é incomum deparar-se com uma abordagem combinada entre igualdade e minorias raciais, ante as polêmicas nascidas com a reserva de vagas para negros e a conseqüente influência midiática. A constatação não é a mesma quando se fala em entender a relação da condição de deficiência e o preceito igualitário. Com isto, referido grupo minoritário fica relegado ao segundo plano, na condição de não merecedor de atenção por parte do meio científico, dos meios de comunicação e da sociedade.

Mantém-se em pauta, tão somente, questões afeitas à acessibilidade das pessoas com deficiência a prédios públicos, portais de internet e outros serviços comunitários. Não significa que tais discussões sejam destituídas de importância. Entretanto, esquece-se de ir além do foco assistencialista e alcançar a dimensão das políticas positivas, direcionadas à efetiva inclusão dos indivíduos.

O campo nacional de estudos jurídicos reclama trabalhos com aptidão a preencher esta lacuna, há muito tempo presente na doutrina pátria. Neste contexto é que se insere o presente artigo, na condição de alternativa à compreensão das relações entre o princípio constitucional da isonomia e o acesso aos bens sociais por meio de cotas. Abre-se ainda a oportunidade de futuros trabalhos científicos com semelhantes bases.

Para esta empreitada, opera-se uma revisão bibliográfica, mediante a consulta de sites da world wide web, livros, artigos e textos legislativos brasileiros e de organizações internacionais. Faz-se uma imersão específica no postulado constitucional de tratamento igualitário. São expostos o conteúdo jurídico da isonomia e as dimensões de igualdade formal e material.

 Adentra-se às políticas de cotas, com a manifestação das suas causas legitimadoras de aplicabilidade (minorias e fator de diferenciação) e o direito de afirmação e o tratamento isonômico. Com tal estruturação, tem-se por possibilitado àquele que entra em contato com o texto as noções necessárias à construção de uma resposta à situação-problema proposta.

2. Isonomia: conteúdo jurídico

            A igualdade é noção articulada no curso da história, em meio a reflexões eminentemente éticas e filosóficas, utilizada desde os primórdios na solução de situações controversas da vida social. Apesar de já ancorar tal fim buscado pelo direito, não se tem, até a Revolução Francesa, a expressa inclusão da isonomia em um diploma jurídico ocidental. Apenas em 1789, no artigo 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão se tem por objetivada, enquanto postulado normativo, a premissa de que todos os homens nascem em condição de plena liberdade e igualdade e apenas têm o dever de tolerância às distinções sociais fundadas na utilidade comum. A partir de então, todas as cartas políticas modernas fizeram constar, progressivamente, a necessidade de tratamento igualitário às pessoas como dispositivo constitucional (ATCHABAHIAN, 2004, p.14).

            Como se depreende do texto insculpido à referida Declaração dos Direitos promulgada em fins do século XVIII, a revolução da burguesia francesa foi também o marco inaugural da cristalização da igualdade desvinculada de privilégios pessoais ou de hierarquias entre classes sociais. O cenário da antiguidade até o renascimento tivera justamente como característica a existência dos chamados três “estados”, respectivamente correspondentes ao clero, à nobreza (ambos submetidos a regras especiais de direito) e ao povo (com relações guiadas pelo direito comum) (ATCHABAHIAN, 2004, p.14-15). É com a Revolução Francesa que se observa um gradual rompimento de um padrão de transferências de prestígios e privilégios amparados no “berço de nascimento” ou linhagem familiar, prevalentes durante a vigência do modelo absolutista de Estado (SILVA JÚNIOR, 2003, p.102).A este respeito o art. 6º da mencionada declaração é ainda mais expresso, ao trazer a afirmativa de igualdade de todos aos olhos da lei e a possibilidade de ocupação de todas as dignidades, empregos e lugares públicos segundo a capacidade de cada um. Fixa-se a impossibilidade de distinções no acesso a oportunidades, senão em razão das virtudes e dos talentos pessoais (ATCHABAHIAN, 2004, p.15). É este, pois, o primeiro marco em que a isonomia é erigida à condição de integrante constitucional e adquire uma existência jurídica além do seu conteúdo político-ideológico.

A Lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar eqüitativamente todos os cidadãos. Este é o conteúdo político-ideológico absorvido pelo princípio da isonomia e juridicizado pelos textos constitucionais em geral, ou de todo modo assimilado pelos sistemas normativos vigentes. Grifamos (MELLO, 2008,p.10)

 

Há quem afirme não ser o documento produzido pelos revolucionários franceses o primeiro diploma a objetivar a idéia da isonomia. Larga corrente de doutrinadores atribui à Constituição dos Estados Unidos da América, de 1787, o primeiro ato de objetivação do princípio da igualdade. Tantos outros pensadores reconhecem o Bill of Rights da Virgínia e a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, ambos de 1776 (MADRUGA, 2005, p. 29-30).

Outros autores reconhecem que, em verdade, foi na América que pela primeira vez os textos constitucionais consagraram o princípio da igualdade, a começar pelo Bill of Rights da Virgínia, em 1776, constando no art. 1º: Todos os homens são por natureza igualmente livres e independentes e têm certos direitos inerentes,dos quais ao entrarem em sociedade não podem, por qualquer forma, privar ou desinvestir a sua posterioridade [...]”. Também na Declaração de Independência dos Estados da América, de 4 de julho de 1776, registrou-se no art.1º: “ Todos os homens nasceram livre e iguais, e têm certos direitos naturais, essenciais, e inaliáveis, e entre eles se deve contar primeiramente o direito de gozar a vida e liberdade, e o de defender uma e outra [...]” Dessa forma, não caberia à França a consagração constitucional do princípio isonômico, restando-lhe, tão somente, o enunciado que, por ser mais conhecido, tornou-se mais influente, como sustenta Martim de Albuquerque. Grifos nossos. Aspeamento do original(MADRUGA, 2005,p.30).

 

Em que pese a existência de divergências, é cediço que o princípio da igualdade, ao ser fixado expressamente nas Cartas Magnas dos Estados Modernos, alcançou uma função dúplice de orientação aos aplicadores e elaboradores dos textos legais e de conseqüente garantia para os nacionais. Compreende-se que não somente perante a norma já construída se proporciona o nivelamento dos indivíduos, o seu processo de edição também está sujeito ao dever de tratamento equânime às pessoas (MELLO, 2008, p.9). Hans Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito, esclarece que a limitação à inserção de conteúdo contrário ao fim de igualdade é dada pelo próprio ordenamento.

[...] os órgãos aplicadores do Direito somente podem tomar em conta aquelas diferenciações que sejam feitas nas próprias leis a aplicar. Com isso, porém, apenas se estabelece o princípio, imanente a todo o Direito, da juridicidade da aplicação do Direito em geral e o princípio imanente a todas as leis da legalidade da aplicação das leis, ou seja, apenas se estatui que as normas devem ser aplicadas de conformidade com as normas. Com isto, porém, nada mais se exprime senão o sentido imanente às normas jurídicas. Uma decisão judicial pela qual uma pena prevista na lei a aplicar não é imposta simplesmente porque o delinqüente é um branco e não um negro, um cristão e não um judeu, embora a lei não tome em conta, na determinação do fato delituoso, a raça ou a religião do delinqüente, é anulável como contrária ao Direito pelo mesmo fundamento com que seria anulável uma decisão judicial na qual se aplicasse uma pena a um indivíduo que não cometeu qualquer delito determinado por lei e verificado pelo tribunal, ou pelo mesmo fundamento com que é anulável uma decisão judicial em que se imponha a um indivíduo que cometeu um delito uma pena não prescrita em lei. A inconstitucionalidade da decisão não representa, nesse caso, qualquer fundamento de anulação e de nulidade diferente do da legalidade. Grifamos (KELSEN, 2000, p.158-159).

 

A inserção da disposição isonômica na Constituição, mormente na condição de proteção ao cidadão contra condutas arbitrárias e de consecução de paridade de chances sociais, a promoveu à condição de direito humano-fundamental. Tem-se, neste contexto, uma bifurcação da igualdade em duas dimensões, a formal e a material, consolidadas em momentos históricos distintos e, portanto, ocupantes de gerações distintas, conforme o corrente critério classificatório (SARLET, 2006, p.25).

 

2.1. A isonomia enquanto igualdade formal

 

A isonomia, em sua dimensão formal, é a primeira expressão do princípio da igualdade aportada às Declarações de Direitos e às Cartas Constitucionais (MADRUGA, 2005, p.32). Diretamente influenciada pelo modelo de Estado Liberal, cuja postura se caracteriza pelo não intervencionismo nos domínios econômico, social e cultural, manifesta-se num tratamento equiparado de todas as pessoas, sem quaisquer distinções, ou seja, todos os indivíduos são abstratamente tomados de modo uniforme. Não significa que se tem por desconhecidas as desigualdades no meio social, e sim que estas não são consideradas enquanto relevantes para um tratamento jurídico diferenciado (TABORDA, 1998, p.255). Tal contexto histórico, associado à emergência da igualdade formal, é traduzido por Joaquim B. Barbosa Gomes, nos seguintes termos:

 

A sociedade liberal-capitalista ocidental tem como uma de suas idéias-chave a noção de neutralidade estatal, que se expressa de diversas maneiras: não intervenção em matéria econômica, no domínio espiritual e na esfera íntima das pessoas. [...] (GOMES, 2001, p.36).

 

            Como reflexo do cenário de desenvolvimento da igualdade formal, José Joaquim Gomes Canotilho a denomina de igualdade liberal e a define como um pressuposto para a uniformização do regime de liberdades individuais a favor de todos os cidadãos perante um ordenamento jurídico. Em seguida, sugere outra nomenclatura, a de igualdade na aplicação do direito, segundo a qual as leis devem ser executadas sem olhar aos indivíduos (CANOTILHO, 2003, p. 426). Deve-se, pois, tratar a todos conjuntamente em desconsideração de eventuais traços distintivos aferíveis em circunstâncias de fato. A lei não está autorizada a proclamar exceções, a partir do favorecimento ou privilégio a indivíduos ou grupos. O sistema jurídico é concebido como o mesmo para todos e, assim, a lei deve garantir iguais sacrifícios, proteções, recompensas e castigos (ATCHABAHIAN, 2004,p.15).

            O princípio da igualdade, enquanto reconhecido direito fundamental, reclama a sua correta contextualização como meio para o alcance de sua natureza jurídica. Os direitos fundamentais se encontram repartidos em três gerações ou dimensões, conforme o momento histórico de desenvolvimento e natureza do conteúdo que veiculam. Neste momento, é bastante a análise dos direitos de primeira geração, aqueles cuja efetivação independe de qualquer postura estatal específica, para tal fim, tendo-se como suficiente uma conduta de abstenção ou de tolerância. Caracteriza-se por ter como pano de fundo o pensamento burguês do século XVIII, que serviu de sustentação ao Estado Mínimo. É neste sentido a lição de Ingo Wolfgang Sarlet:

Os direitos fundamentais, ao menos no âmbito do seu reconhecimento  nas primeiras Constituições escritas, são o produto peculiar (ressalvado certo conteúdo social característico do constitucionalismo francês), do pensamento liberal-burguês do século XVIII, de marcado cunho individualista, surgindo e afirmando-se como direitos do indivíduo frente ao Estado, mais especificamente como direitos de defesa, demarcando uma zona de não-intervenção do Estado e uma esfera de autonomia individual em face de seu poder.São por este motivo, apresentados como direitos de cunho “negativo”, uma vez que dirigidos a uma abstenção, e não a uma conduta positiva por parte dos poderes públicos, sendo, neste sentido, “direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”(SARLET,2006,p.56).

 

A igualdade perante a lei situa-se justamente no rol de direitos de primeira dimensão, haja vista a suficiência de uma postura omissiva para a sua concretização. Não se perfaz necessário que o ente estatal atue, uma vez que se trata de um postulado já tomado como verdadeiro. Ora, se a lei toma como já existente a situação de igualdade entre todos, logicamente não é preciso qualquer postura para a sua realização. Tal compreensão é novamente ratificada com base nos pensamentos de Wolfgang Sarlet:

Assumem particular relevo no rol desses direitos, especialmente pela sua notória inspiração jusnaturalista, os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei. São posteriormente, complementados por um leque de liberdades, incluindo as assim denominadas liberdades de expressão coletiva (liberdades de expressão, imprensa, manifestação, reunião, associação, etc.) e pelos direitos e participação política, tais como o direito de voto e a capacidade eleitoral passiva, revelando, de tal sorte, a íntima correlação entre os direitos fundamentais e a democracia. Também o direito de igualdade,  entendido como igualdade formal (perante a lei) e algumas garantias processuais (devido processo legal, habeas corpus, direito de petição) se enquadram nesta categoria. Grifos nossos (SARLET, 2005,p.56).

 

A primeira oportunidade em que a ordem constitucional brasileira contemplou a igualdade em sua acepção formal foi já na primeira Carta, em 1824 (ATCHABAHIAN, 2004,p.56), quando se teve por insculpida a seguinte disposição:

 Art. 179, inc. XIII. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros , que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.[...] XIII. A Lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, o recompensará em proporção dos merecimentos de cada um. Grifamos.(BRASIL, 1824).

 

A partir de então, todas as constituições fizeram constar expressamente a garantia de igualdade formal entre os cidadãos, inclusive as produzidas durante a ditadura vivida no país. De modo que a carta suprema de 1988, ao seu art. 5º,preceitua: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...].”

 

 

2.2. A isonomia enquanto igualdade material

 

            A isonomia, enquanto igualdade material, surge com o rompimento do modelo de Estado liberal e a proclamação da necessidade de intervencionismo no domínio social. O caráter abstencionista, até então vigente, acabara por fomentar a acumulação de capitais, com uma imediata redução das possibilidades de livre concorrência, e aumento nos índices de pobreza. O pós Primeira Guerra e a Crise de 1929 se apresentam como ratificadores de tal tendência de fracasso de referido modelo estatal, alheio às inúmeras desigualdades observáveis na sociedade (MADRUGA, 2005,p.34).

             O Estado inicia uma tendência de direcionamento da economia e suprimento de muitas de suas obrigações sociais antes desconsideradas (SARLET, 2006,p.56). Tal mudança de paradigma vem retratada nas Constituições Mexicana e de Weimar, mediante a inserção de inúmeros direitos sociais, a exemplo da proteção ao trabalho, garantia de salário mínimo, desenvolvimento econômico baseado em justiça social, proteção aos menores e às mulheres, dentre outros pioneiramente objetivados em tais diplomas constitucionais. Mostra-se uma tendência de consecução de bem-estar, não somente às elites econômicas, mas, também, aos grupos menos favorecidos. Denomina-se, pois, a nova figura estatal, surgida do fracasso do liberalismo, de Welfare State ou Estado do Bem-Estar Social. O funcionamento da economia passa a se condicionar não mais apenas aos interesses estritamente individuais e sim ao postulado de construção de riqueza guiado pela finalidade de justiça social (MADRUGA, 2005,p.35).

            Além da inserção nas Cartas Políticas, os entes estatais, pressionados por movimentos reivindicatórios, compreendem a necessidade de realização, no plano concreto, de todos os direitos manifestados. Percebe-se como insuficiente, e de atuação lacunosa, a mera emissão, nas cartas políticas, de ideais para a vida em sociedade, sem qualquer atitude pró-ativa e de preocupação com a efetiva realização do quanto proferido e formalizado.

Na maioria das nações pluriétnicas e pluriconfessionais, o abstencionismo estatal se traduziu na crença de que a mera introdução nas respectivas Constituições de princípios e regras asseguradoras de uma igualdade formal perante a lei de todos os grupos étnicos da Nação, seria suficiente para garantir a existência de sociedades harmônicas (GOMES, J, 2001,p.36).

 

Não se toma por bastante a fiel execução do postulado clássico de igualdade formal, segundo o qual a todos deve ser dispensado o mesmo tratamento, diante da situação paritária de todos perante a lei. Assim sendo, não se atingiria o objetivo de correção das iniqüidades acumuladas durante o período não-intervencionista e se teria por conservada a estrutura social vigente. A este respeito, J.J. Gomes Canotilho é expresso: “Exige-se uma igualdade material através da lei, devendo tratar-se por <<igual o que é igual e desigual o que é desigual>>. Diferentemente da estrutura lógica formal de identidade, a igualdade pressupõe diferenciações.” Grifos do original (CANOTILHO, 2003, p. 427-428).

            O despertar para a igualdade substancial coincide com uma tomada de consciência no sentido de efetivação das premissas já objetivadas e ampliação do raio de atuação do Estado na garantia de direitos. Mostra-se uma tendência de retirar a igualdade da estática posição formal e conceder-lhe, progressivamente, uma feição dinâmica e atenta às dissimilitudes presentes nas relações em sociedade (ATCHABAHIAN, 2004, p.76).

Desde o pensamento aristotélico, já se tem como suscitada a necessidade de consideração das diferenças, na busca pela igualdade real. Isto decorre do postulado teórico de que a justiça reside num tratamento igualitário entre pessoas iguais e na consideração desigual de indivíduos diferentes (ARISTÓTELES,1985, p.92). Em outras palavras, representa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais (MELLO, 2008,p.10).

De todas as formas, o que se busca atualmente é um tratamento mais parificado, partindo-se do pensamento Aristotélico. Assim, procedendo caracteriza-se, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, o tratamento igualitário a todos, visto que muitas vezes o tratamento desigual acaba por equiparar situações onde a equiparação era necessária, mas não existia (ATCHABAHIAN, 2004,p.76).

 

            Ocorre que não se vai adiante com tal premissa diante do imediato questionamento: Enfim, quem são os iguais e quem são os diferentes? E segundo quais critérios? Ou, segundo Canotilho (2003,p.428): “ [...] o que é que nos leva a afirmar que uma lei trata dois indivíduos de uma forma igualmente justa? Qual o critério de valoração para a relação de igualdade?” - Disto resulta um verdadeiro vazio conceitual, visto que esta fórmula isonômica não traz consigo um juízo de valor apto a identificar a presença de igualdade ou desigualdade(CANOTILHO, 2003,p.428) e assim reclama um elemento integrador.  A resposta, sem dúvida, nasce na compreensão da igualdade enquanto algo relacional, ou seja, sempre se é igual ou diferente em relação a algo/alguém.

O princípio da igualdade é, como se viu, antes de mais puramente formal. Ele afirma tão-somente o igual dever ser tratado de forma igual e o diferente de modo proporcionalmente diferente. Não diz o que é igual ou diferente (o que é importante para configuração das previsões legais) nem como se deverá tratar o que é igual ou diferente (o que importa sobretudo para a determinação das conseqüências jurídicas. Ora acontece que nada no mundo é absolutamente igual ou diferente, sendo sempre apenas, por referência a um termo de comparação (tertium comparationis, porventura a ratio iuris”), mais ou menos semelhante e dessemelhante (por isso é sempre logicamente possível em vez da analogia a conclusão a contrario).(KAUFMANN, 2004,p.230).

 

Arthur Kaufmann entende a igualdade enquanto um ato de equiparação nascido de uma decisão racional de poder. Nada é completamente igual ou diferente no mundo e, portanto, somente se estabelecem relações de maior ou menor semelhança ou diferença, em conformidade com um dado termo de comparação. O discurso de semelhança de um objeto em relação a outro somente se mostra possível com a desconsideração das dessemelhanças naturalmente existentes. Em mesma direção, a afirmação de diferença de algo em referência a outra coisa apenas se perfaz viável com a ignorância das semelhanças (KAUFMANN,2004,p. 230).

Um exemplo. O legislador estabelece por força da sua autoridade que, em relação à capacidade de exercício, as crianças desde o nascimento até aos sete anos de idade, as dos sete até aos dezoito anos e os maiores a partir dos dezoito anos de idade são sempre iguais entre si, apesar de uma criança de sete anos se diferenciar por regra consideravelmente dum menor de dezassete [sic] anos; e na distinção entre estes três grupos também se verificam desigualdades: uma pessoa de dezassete [sic] anos um dia antes e uma outra de dezoito anos um dia depois de fazerem dezoito anos são legalmente diferenciadas. Ou:nenhum assassino é igual a outro mas todos são equiparados ao serem punidos com prisão perpétua. Ou mais um exemplo: fala-se hoje muito dos “direitos da natureza” e em especial dos animais; em que medida e sob que perspectiva (porventura, a capacidade de sofrimento) são os animais (e quais animais?) semelhante ou dessemelhantes do Homem. (KAUFMANN, 2004,p. 230-231).

 

Não é, pois, a concepção relacional da igualdade o ponto definitivo de condução à solução de mapeamento de quem são os iguais e quem são os diferentes. Em verdade, é o procedimento de adoção de critérios como meridianos de separação entre pessoas o caminho para a colmatação do critério material do prescritivo isonômico. [2]

 

3 Política de cotas

 

Atreladas à concepção material da isonomia, as condutas afirmativas, paulatinamente, se consolidam como alternativa mundial a transformações de múltiplo alcance, face à verificação de iniqüidades nas relações de gênero, idade, condições físicas, sensoriais ou mentais diferenciadas, origem nacional, dentre outras minorias de ínfima participação nas locações de poder. Entretanto, a sua montagem inicial esteve atrelada às questões raciais, quando da sua implementação pelos Estados Unidos em finais do século XX, por volta da década de 60. Ao perceber a prioridade de uma especializada política racial, o governo tomou para si a responsabilidade de impactar as estáticas estruturas étnico-econômicas do país e conceder mobilidade social àqueles, até então, em situações de absoluta exclusão (MUNANGA, 2003,p.117).

A atividade de redução a estas incorreções ou injustiças sociais, mediante práticas intervencionistas, veio a culminar com a fórmula das ações afirmativas. Consideradas técnicas jurídico-políticas de promoção de igualdade substancial, manifestam-se num conjunto de ações privadas e/ou públicas, de caráter temporário. Estão voltadas às transformações em benefício dos impossibilitados de exercer com plenitude os mesmos direitos e apresentar as mesmas conquistas daqueles cuja postura de afirmação em seu favor é dispensável (GOMES, J., 2000,p.40).

 Frise-se, todavia, que tal atitude de defesa da necessidade das ações positivas estatais não se daria num passe de magia ou de rompimento repentino da estanque separação entre negros e brancos na unidade federativa norte-americana, mas sim como reflexo das lutas dos movimentos contra a segregação racial. Como destaca Domingues (2005,p.166): “As ações afirmativas não foram dadas pela elite branca dos Estados Unidos; pelo contrário, elas foram conquistadas pelo movimento negro daquele país, após décadas de lutas pelos direitos civis.”

Como marca do despontar de um novo olhar a respeito das possíveis soluções às disparidades acumuladas durante a sua história pós-dominação e de outras delas progressivamente infiltradas, o Brasil encampa as iniciativas experimentadas por países da América do Norte (EUA e Canadá), Europa (Inglaterra e a Alemanha), da África, Ásia e da Oceania, adotando os atos de promoção social. (MUNANGA, 2003,p.117).

Ocorre que, apesar da inegável comunhão de objetivos entre a iniciativa brasileira e aquela construída pioneiramente pelos Estados Unidos, ambas tiveram caminhos de desenvolvimento divergentes, manifestados pelos específicos parâmetros de intervencionismo estatal e de independência e evolução dos grupos de pressão nacionais. (VIEIRA, 2003,p.93)

O momento histórico de pós-guerra que os estados norte-americanos atravessavam se mostrou solo fértil à utilização de instrumentos políticos de promoção, como alternativa à tarefa de tornar realidade as funcionalidades propostas pelo emergente Welfare State. Entretanto, em que pese a existência de grupos anti-racistas já organizados, estes não detinham independência na produção de transformações relevantes. “[...] Ou seja, as ações afirmativas, configuraram-se como política social, e mesmo aquelas, inativas desenvolvidas pela sociedade civil, as chamadas voluntary affirmative action, posicionavam-se sob as determinações do Estado.” – grifos do original. (VIEIRA, 2003,p.90).

Em sentido oposto, as primeiras condutas positivas levadas à concretização no Brasil em favor de minorias partiram de parcelas organizadas da sociedade civil, fomentadas pelo marasmo das manifestações estatais. Ante a predominância de posturas inertes e ignorantes do novo entendimento de igualitarismo causado, os movimentos sociais constituem-se em propulsores às mudanças neste cenário:

[...] nas últimas décadas, as ações afirmativas tomaram corpo no seio da sociedade civil, com recursos próprios e à margem do controle estatal, o que, em um limite, dá às várias experiências brasileiras de ação afirmativa perfis e características totalmente diferenciados, [...] (VIEIRA, 2003,p.90).

       

Com tal traço distintivo das iniciativas brasileiras, de serem elas previamente pensadas e efetivadas no campo de construção de alternativas extra-estatais, firmaram-se experiências para as futuras atuações oficiais. Por outro lado, é o momento de oficialização do discurso das atividades brasileiras de promoção o estopim para as confusões terminológicas entre a figura genérica, ações de caráter afirmativo, e a específica, política de cotas(SILVA C. da, 2003,p.21).

Talvez, a celeuma tenha se constituído pelo fato de ser o mecanismo de cotas a principal aposta política na minoração das injustiças agregadas, com relevante repercussão na mídia pátria, pela grande capacidade de interferência e subversão nos arranjos da sociedade. A partir daí, fez-se inevitável a construção de uma mentalidade quase que generalizada de absoluto reducionismo conceitual das ações afirmativas, tratando-as como sinônimo de uma de suas categorias sub-específicas, as cotas raciais (SILVA JÚNIOR, 2003,p.112).

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Longe de contribuir para a movimentação do debate, a confusão entre ações positivas e política de cotas gerou, no inconsciente coletivo, um aprisionamento do teórico no procedimental. É assim, de todo complicada a tradução de um instituto (ações positivas) com dada complexidade e abstração, em apenas uma de suas manifestações (as cotas) (SILVA C. da , 2003,p.17).

A política de cotas, em que pese ser espécie de política afirmativa, se caracteriza pela fixação de pisos ou tetos numéricos com vistas ao acesso a bens ou vantagens públicas por parte de minorias (CARVALHO, 2003,p.1). Mediante referido instrumento perfaz-se a reserva de um quantitativo de oportunidades do total disponível no meio social, em consideração aos diferenciados contextos de desenvolvimento das aptidões humanas (ALMEIDA, 2007,p.467).

Tal confusão tem conseqüências ainda mais marcantes, no momento em que a exclusiva fixação do olhar social sobre a cotização traz consigo a acolhida de um raciocínio simplista, de reserva de espaços, como forma de complacência e piedade com as minorias sociais. Apresentam-se, pois, críticas neste sentido:

No atual momento histórico, quando a globalização já transformou o sistema político econômico em via de mão única, notadamente marcado pela competição, aumenta a dificuldade em aceitar-se [sic] as medidas de ação afirmativa. Por desinformação ou por conveniência, muitos têm tentado confundir políticas de ação afirmativa com esmolas ou puro assistencialismo. (RAMOS, 2007,p.129).

        

Outro discurso recorrente no debate da reserva de vagas é o de que a política de cotas não tem condições de produzir as mudanças propostas de equalização social. Portanto, o meio adequado, proporcional e menos danoso para a consecução destes fins seria a execução de políticas públicas de caráter universal, mediante aumento de investimentos estatais(MADRUGA, 2005,p.239).

Em sentido oposto, diz-se possível uma convivência de ambas as intervenções. A primeira delas a exercer um papel de impacto nas seculares estruturas de restrição no domínio da renda. A segunda a promover melhorias em longo prazo, com maior amplitude e alcance. É inerente ao instituto das cotas o seu caráter temporário, transitório. Não há como se pensar na sua sobrevivência ad eternum, devendo ser previsto ou estimado um termo final, a partir do qual, reduzidas as vulnerabilidades das minorias contempladas, se repristina a anterior situação de não-intervenção pública (GOMES R., 2006,p.88). Assim, a própria concepção das políticas positivas tem como sustentação e condição para o seu sucesso, a prática de intervenções universalistas, nas quais não se faz presente o discrimen, com o escopo de produzir alterações estruturais e radiculares, capazes de permitir que não se restabeleçam as desigualdades remediadas.

Em sociedades cuja distribuição de bens e direitos já se encontra um perfil eqüitativo e homogêneo, qualquer redistribuição universal torna-se uma política possível e eficaz. No entanto, em sociedades muito desiguais, como é o caso da brasileira, as demandas trazidas pelos grupos minoritários apenas confirmam a teoria de que políticas universais de cunho liberal somente tendem a perpetuar desigualdades já distribuídas. (CÉSAR, 2007,p.17).

 

            A discussão, ganha outro desdobramento, qual seja a compreensão de abertura das portas do mercado profissional, a pessoas cujo desempenho se mostra inferior aos padrões apresentados por aqueles não contemplados pela reserva de vagas. Neste ponto é pertinente e necessário, pois, trazer à voga as bases teóricas lançadas por Daniel Sarmento em sua obra A Ponderação de Interesses na Constituição Federal, por se fazerem presentes dois interesses constitucionalmente tutelados. De um lado a garantia de livre acesso dos candidatos, com desempenhos numericamente superiores aos contemplados pela reserva de vagas (amparados no teor do art.5º, caput da CF) e d’outro o interesse público em fazer valer a política de inclusão social e oferta de oportunidades às minorias (embasado em um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, preceituado no art. 3º, inciso III da Carta Política de 1988).

Sarmento sugere, para obtenção de respostas em casos como este, que “o intérprete terá de comparar o peso genérico que a ordem constitucional confere, em tese, a cada um dos interesses envolvidos. Para este mister ele deve adotar como norte a taboa de valores subjacente à Constituição.” (2003,p.103).

Dúvidas não há de que mesmo o exercício dos direitos fundamentais deve estar orientado e pautado pelos objetivos da República. Com este substrato, se mostra solução plausível a conservação suprema do interesse público, diante da impossibilidade de, em sede de política pública, se assegurar o respeito às pretensões individualmente consideradas em detrimento do objetivo estatal de mitigação das disparidades historicamente acumuladas. Não só em matéria de quotização, mas em qualquer outra atuação oficial, seria inimaginável a existência de uma aprovação em unanimidade por todos os cidadãos.

Apresenta-se, pois, não a sugestão de encampar um ato de complacência com as minorias, mas sim a criação de nichos meritórios específicos, em consonância com os patamares de preparo prévio para a disputa das chances de ingresso no meio produtivo.

3.1.  Causas legitimadoras de aplicabilidade

 

Para a efetivação das ações afirmativas é indispensável determinar quais os indivíduos a serem atingidos pelo tratamento diferenciado. Em outras palavras, mostra-se necessária a identificação de quem é efetivamente desigual e, portanto, merece uma política de suplementação de tal situação desvantajosa. E, ainda, quais as posturas pertinentes e compatíveis com esta finalidade transformadora da estrutura social.

A premissa para catalogação dos iguais e desiguais é o estabelecimento de categorias essenciais. Ou seja, diante de inúmeros aspectos de similitude e diferenças entre pessoas, algum deles é selecionado para funcionar como parâmetro na relação de pertinência ou não pertinência a um ou outro grupo(PERELMAN, 2000,p.42).

Seja como for, a aplicação correta da justiça exige, de todo modo, um tratamento igual para os mesmos de uma mesma categoria essencial. Ora, em que é baseada essa exigência de um tratamento igual? Simplesmente na determinação da forma como será tratado qualquer um dos membros da categoria. È porque qualquer membro da categoria é obrigado a sujeitar-se à regra que, ao aplicar esta, se é levado a tratar todos da mesma forma. Se cada aluno da escola deve ganhar um brioche, Paul, Pierre, Jacques, que são alunos da escola, receberão cada qual um brioche: o fato de receberem a mesma coisa decorre naturalmente do fato de fazerem parte da mesma categoria essencial. (PERELMAN, 2000,p.42).

Por tal linha, inevitável seria a construção de numerosos agrupamentos de humanos segundo os mais diversos caracteres (cor do cabelo, capacidade intelectual, estatura, origem familiar, dentre outras hipóteses inesgotáveis pela mente humana). Todavia, por óbvio, nem todos eles teriam relevância na justificação de um tratamento jurídico diferenciado. É o que José Joaquim Gomes Canotilho informa, ao afirmar a impossibilidade de uma política que tome como baliza um critério arbitrário. A presença desta liberdade absoluta na escolha do fundamento de valoração acabaria por sinalizar para uma incompatibilização com o princípio da isonomia. Tem-se, pois, a necessidade de acatamento de um critério material não-subjetivo.

[...] reconduz-se à proibição geral do arbítrio: existe observância da igualdade quando indivíduos ou situações iguais não são arbitrariamente (proibição do arbítrio) tratados como desiguais. Por outras palavras: o princípio da desigualdade é violado quando a desigualdade de tratamento surge como arbitrária. O arbítrio da desigualdade seria condição necessária e suficiente da violação do princípio da igualdade. Grifos do original (CANOTILHO, 2003,p.428).

 

O fundamento material de diferenciação deve ser dotado de objetividade, como meio para uma estrita delimitação dos grupos abarcados pelos instrumentos afirmativos. Não se permite a existência de uma insegurança tal que não se possa, com grau de certeza, catalogar os iguais e os dessemelhantes. Não se deve abrir margem para dúvidas, ou existência de uma nebulosa fronteira entre semelhantes e diferentes. Em mesma linha, o critério adotado deve estar ligado a um fundamental legítimo, sério e razoável, hábil a embasar a discriminação licitamente realizada. Nesta direção é a lição de Canotilho:

Ele costuma ser sintetizado da forma seguinte: existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídica não se basear num: (i) fundamento sério; (ii) não tiver um sentido legítimo; (iii) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável.(CANOTILHO,2003,p.428).

 

Tal síntese conduz à necessidade de um aprofundamento quanto às parcelas sociais passíveis de integrar o campo de atuação das reservas de vagas e o procedimento racional de admissibilidade do ato discriminatório. Nesta linha, parte-se ao estudo do fator ou critério de discriminação e das chamadas minorias sociais.

 

3.1.1. Fator de discriminação

 

 

Um dos requisitos para que a política de ação afirmativa seja considerada legítima e, portanto, não se mostre veículo de discriminações despropositadas, é a compatibilidade entre a finalidade buscada e o fator de discriminação adotado. Assim se manifesta Celso Antônio Bandeira de Mello:

Supõe-se,habitualmente, que o agravo à isonomia radica-se na escolha, pela lei, de certos fatores diferenciais existentes nas pessoas, mas que não poderiam ter sido eleitos como matriz de discrímen. Isto é, acredita-se que determinados elementos ou traços característicos das pessoas ou situações são insuscetíveis de serem colhidos pela norma como raiz de alguma diferenciação, pena de se porem às testilhas com a regra da igualdade. (MELLO, 2008,p.15).

 

Existem algumas limitações de ordem lógica na escolha do critério discriminatório. A primeira delas é a de que, por meio deste, não se atinja, de modo atual e absoluto, um só indivíduo. (ATCHABAHIAN, 2004,p.83). Em outras palavras, não se permite uma escolha por um critério cujo teor proclame favoritismos ou perseguições, especificamente direcionados a determinada pessoa. Não se admite a imposição de gravames ou prêmios direcionados a um dado cidadão. A segunda exigência é no sentido de o traço distintivo não ser alheio à pessoa, coisa ou situação a ser discriminada. Qualquer característica não pertinente aos elementos envolvidos no ato diferenciador é inapta à sustentação de regimes diferentes entre os cidadãos. (MELLO, 2008,p.24). No tocante à discriminação ilegítima, é expresso Sidney Madruga, mormente quanto à vedação ao estabelecimento de privilégios individuais.

Na discriminação ilegítima, ausentes ou desarrazoados os critérios a justificar a sua prática, trata-se de forma desigual, pondo à margem grupos ou pessoas em função de sua raça, cor, opção sexual, idade, etc., dando origem, via de regra, à discriminação racial, por gênero, por orientação sexual, por compleição física e outras. O discrímen também pode surgir de forma a favorecer determinado grupamento, atribuindo-lhes privilégios injustificáveis, em detrimento de outra parcela beneficiada.Grifamos. (MADRUGA, 2005,p.143-144).

 

Nesta esteira de razões nada impede, inclusive, a possibilidade de adoção dos critérios insculpidos no art.5º, caput, da Constituição de 1988, dentre os quais o sexo, a raça, convicção religiosa, como critério discriminador. Em outros termos, nada impede diferenciar pessoas por razões étnicas, de gênero e de concepção religiosa, desde que tal fator não sirva de fundamento para desfavorecer ilicitamente e sim para amparar limitações concretamente existentes. A este respeito, Celso Antonio Bandeira de Mello ( 2008,p.17) apresenta exemplos:

Suponha-se hipotético concurso público para seleção de candidatos a exercícios físicos, controlados por órgãos de pesquisa, que sirvam de base ao estudo e medição da especialidade esportiva mais adaptada às pessoas de raça negra. É óbvio que os indivíduos de raça branca não poderão concorrer a este certame. E nenhum agravo existirá ao princípio da isonomia na exclusão de outras raças que não a negra [...] Assim, também, nada obsta que sejam admitidas apenas mulheres – desequiparação em razão de sexo – a concursos para preenchimento de cargo de “polícia feminina.

Em mesma linha de raciocínio, tome-se por base outra característica humana relacionada à tipologia física. Seria possível promover discriminações com base na compleição corporal, mental ou sensorial? Decerto, numa análise imediata, a resposta seria a inadmissibilidade de condutas alicerçadas nesta justificativa. Entretanto, numa compreensão meticulosa da situação, ter-se-ia uma solução noutro sentido:

Por exemplo, a tipologia física, como indivíduos gordos e magros, não pode ser discriminatório se tomado o elemento físico numa situação onde a predominância de uma destas condições não tenha efetiva relação com os limites e privilégios que os efeitos jurídicos lhe dispõe. Adotar como critério o veto ou a permissão para indivíduos gordos ou magros, por exemplo, à admissão de um certo concurso público, só terá pertinência, se houver nexo entre o crivo discriminatório e os fins e circunstâncias vinculados à situação em que este se dá e os dispositivos jurídicos que eles determinam(ATCHABAHIAN, 2004,p.83).

 

Observam-se, nas situações aventadas por Bandeira de Mello e Atchabahian, apenas limitações fáticas, incompatíveis com o tratamento generalizado das pessoas, e não vedações arbitrárias à livre concorrência do público interessado em ocupar os postos de trabalho. Ora, se é elemento essencial para desenvolvimento da pesquisa esportiva ter como participantes, somente, negros, não há como se pugnar pela aceitação de brancos, até mesmo porque esta alteração produziria influência direta nos resultados obtidos. De igual modo, se a Administração Pública deseja contratar serviços de policiais femininas é logicamente admissível a exclusão de eventuais homens dispostos à participação no concurso. Novamente, a contratação de pessoas do sexo masculino fugiria da finalidade almejada pelo Poder Público.

Disto resulta apenas a exigência, em tese, de que, quando do ato diferenciador, se verifique a existência, ou não, de relação entre os meios adotados e a finalidade perseguida em determinada circunstância. (SICCA, 2000, p.215). Não há uma exata fórmula apta a informar que dada característica não possa servir como fator de discriminação. Repita-se que, a princípio qualquer elemento objetivamente aferível entre seres humanos pode ser tomado na condição de base para o ato de discrimen. O balanceamento entre os discrimines possíveis e os rejeitáveis são reconhecíveis até mesmo de forma intuitiva pela mente humana.

O ponto nodular para exame da correlação de uma regra em face do princípio isonômico reside na existência ou não de correlação lógica entre o fator erigido em critério de discrímen e a discriminação legal decidida em função dele. Na introdução deste estudo sublinhadamente enfatizou-se este aspecto. Com efeito, há espontâneo e até inconsciente reconhecimento da juridicidade de uma norma diferenciadora quando é perceptível a congruência entre a distinção de regimes estabelecida e a desigualdade de situações correspondentes. De revés, ocorre imediata e intuitiva rejeição de validade à regra que, ao apartar situações, para fins de regulá-las diversamente, calça-se em fatores que não guardam pertinência com a desigualdade de tratamento jurídico dispensado.Grifamos (MELLO, 2008,p.37).

 

Diante da constatação de que o processo legitimador do fator de discrimen não se encontra essencialmente em seu conteúdo semântico e sim na relação entre este e dada finalidade-mor buscada, mostra-se pertinente o desvio do olhar científico para tal peculiaridade(MELLO, 2008,p.17). De modo que se deve passar a examinar o cerne para análise de pertinência ou não-pertinência do critério acatado, qual seja, o princípio da proporcionalidade.

Não basta a diferenciação ser condizente com a finalidade em mira. Ela obrigatoriamente tem que ser proporcional, sendo vedado o acatamento de excessos. Deve-se questionar: o ato discriminatório é adequado ao que se busca? Está em correta dosagem, destituído de excessos ou faltas? E, ainda, os benefícios obtidos são maiores que os prejuízos resultantes aos cidadãos não contemplados pela medida utilizada? Assim, em que pese a admissão do ato discriminador, ele deve ter seus limites em sua utilidade, para evitar prejuízos aos direitos daqueles não alcançados por tal postura. Quanto a isto, é expresso J.J. Gomes Canotilho, ao comentar os subprincípios constitutivos do princípio da proporcionalidade:

O princípio da conformidade ou adequação impõe que a medida adoptada [sic] para a realização do interesse público deve ser apropriada à prossecução do fim ou fins a ele subjacentes. Conseqüentemente, a exigência de conformidade pressupõe a investigação e a prova de que o acto [sic] do poder público é apto para e conforme os fins justificativos de sua adopção (Zielkonformität, Zwecktauglichkeit). Trata-se, pois, de adequação medida-fim. [...] O princípio da exigibilidade, também conhecido como <<princípio da necessidade>> ou da << menor ingerência possível>>, coloca a tônica na idéia de que o cidadão tem direito è menor desvantagem possível. Assim, exigir-se-ia sempre a prova de que, para a obtenção de determinados fins, não era possível adoptar [sic] outro meio menos oneroso para o cidadão.[...] Quando se chegar à conclusão da necessidade e adequação da medida coativa do poder público para alcançar determinado fim, mesmo neste caso deve perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à << carga coativa>> da mesma. Está aqui em causa o princípio da proporcionalidade em sentido restrito, entendido como princípio da “justa medida.” Grifos do original(CANOTILHO, 2003,p.269-270).

 

Percebe-se, pois, a exigência de um exame de compatibilidade com as três dimensões integrantes da proporcionalidade lato sensu, como meio para aferição da legitimidade do critério discriminatório tomado como base. Quanto a esta questão, Humberto Ávila ratifica os ensinamentos no tocante aos princípios da adequação e exigibilidade. Complementa, contudo, no referente à proporcionalidade em sentido estrito, ao afirmar não apenas a exigência de proporção da carga coativa frente aos resultados, mas, também, de presença de um interesse público de tão grande valia, apto a justificar as restrições sofridas por um grupo de pessoas(ÁVILA, 2003,p.106). Para ele, cuida-se de um exame extremamente complexo, uma vez que a noção dicotômica vantagem/desvantagem é subjetiva. Pode-se, numa tentativa de defesa de interesses coletivos, ter por gerados inúmeros efeitos colaterais aos direitos fundamentais do cidadão (ÁVILA, 2003,p. 116).

A discussão quanto ao acatamento do sacrifício de uma minoria quantitativa em nome da maioria remonta à Ética Utilitarista, concepção defendida por John Stuart Mill e Jeremy Bentham, nos séculos XVIII e XIX. Em suma, os pensamentos de tais teóricos giram em torno da discussão quanto à admissibilidade de uma mitigação de direitos de uma pequena parcela social em nome da realização da maioria. Tem-se que a felicidade é o mote da vida humana e, se esta não se coloca ao alcance de todos, deve ser a concretização dos desejos da maior gama de pessoas. Ou seja, se deve haver alguma atribuição de dor a alguém, que seja para o menor número possível de cidadãos (ROSS, 2000, p.337). Quanto a tal temática se expressa Alf Ross:

Todo esforço humano é um esforço em busca da felicidade. A felicidade, portanto, é a coisa boa em si mesma e o princípio moral do comportamento deve apontar para a ação que produz a maior soma possível de felicidade no mundo. O valor de uma ação depende, por isso, dos efeitos que produz, medido em termos de prazer (felicidade) ou dor humanos. Grifamos. (ROSS, 2000, p.336).

 

           

Para Ross, esta visão tem como instrumento ideológico expressões como comunidade, sociedade e interesse público, cujos sentidos acabam por acobertar os desejos individuais de seus integrantes, e justificar a supremacia da maioria em nome da minoria. Em outros termos, ao se proclamar a necessidade de restrição de um direito em nome do interesse social se está a relegar, de modo subliminar, a último plano, os desejos daquele não integrante desta vontade numericamente superior. Considera-se o conjunto comunitário enquanto algo dotado de interesses próprios e de uma força superior à pessoa singularmente considerada(ROSS, 2000,p.341).

Em que pese a crítica acima exposta, seria inimaginável assegurar-se o respeito às pretensões individualmente consideradas, num contexto de vida em sociedade. Não significa, contudo, que a esfera de liberdade pessoal possa sofrer restrições arbitrárias e à discricionariedade do intérprete legal. É justamente o critério de discriminação o fiel entre a aniquilação e a intangibilidade das vontades numericamente inferiores. Com o fator de descrímen se tem por possíveis limitações às esferas de direito do outro, estritamente na medida necessária à promoção dos grupos em situação de desvantagem social.

3.1.2 Minorias sociais

 

 

Para que se tenha como necessária uma atividade de incentivo ou de promoção social, é conditio sine qua non o reconhecimento, pelo ente estatal, ou pela sociedade civil organizada, de um dado elemento diferenciador a justificar uma atividade propulsora externa às próprias relações sociais. Em outros termos, faz-se mister a percepção de fatores de fragilidade a atingir especificamente determinados grupos de pessoas.

A vulnerabilidade torna factível a atividade oficial e até mesmo não-oficial voltada para parcelas da população, destituídas por múltiplas razões e fatores, de igualdade no acesso a bens e oportunidades. Estas pessoas são denominadas de minorias, dentre as quais se incluem as mulheres, as pessoas com deficiência, os negros e os índios. Flávia Piovesan confirma tal pensamento e o expõe em conjunto com o contexto de desenvolvimento da igualdade substancial.

Torna-se, contudo, insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, geral e abstrata. Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a ser visto em sua peculiaridade e particularidade. Nessa ótica determinados sujeitos de direito ou determinadas violações de direitos exigem uma resposta específica e diferenciada. Vale dizer, na esfera internacional, se uma primeira vertente de instrumentos internacionais nasce com a vocação de proporcionar uma proteção geral, genérica e abstrata, refletindo o próprio temor da diferença, percebe-se, posteriormente, a necessidade de conferir a determinados grupos uma proteção especial e particularizada, em face de sua própria vulnerabilidade. Isso significa que a diferença não mais seria utilizada para a aniquilação de direitos, mas, ao revés, para sua promoção(PIOVESAN,2004,p.46).

 

É bem verdade que, no tangente aos indígenas, o processo colonizador lhes trouxe uma redução significativa no número de nativos, acompanhada da destituição da possibilidade de participação paritária nos benefícios inerentes à vida em sociedade. Entretanto, a noção de grupos minoritários encontra-se desvinculada do aspecto quantitativo dos seus integrantes. Pelo contrário, é vista sob o ângulo qualitativo, de efetiva participação nos cargos políticos, de domínio econômico e de influência social, conforme observa Carmen Lúcia Antunes Rocha:

Não se toma a expressão minoria no sentido quantificativo, senão que no de qualificação jurídica dos grupos contemplados ou aceitos com um cabedal menor de direitos, efetivamente assegurados, que outros que detém o poder. Na verdade, minoria no Direito democraticamente concebido e praticado, teria que representar o número menor de pessoas, vez que a maioria é a base que compreenda o maior número tomado da totalidade dos membros da sociedade política. (ROCHA, 1996,p.286).

 

Em mesma esteira de razões, Juliana Santilli formula definição às minorias sociais e ratifica a não-essencialidade do critério quantitativo na delimitação dos grupos de domínio e das parcelas de vulneráveis:

Isto significa que entre 600 milhões e 1,2 bilhões de pessoas necessitam de medidas especiais para a proteção de seus direitos, considerando que as minorias estão, freqüentemente, entre os grupos mais vulneráveis da sociedade, e seus integrantes são expostos à discriminação e à injustiça social e excluídos da participação na vida pública e política. O termo “minorias”, entretanto, pode induzir a erro. Fora da Europa, e principalmente na África, os países são formados por um grande número de grupos étnicos e nacionais, nenhum dos quais constitui maioria. A definição de um grupo minoritário pode variar, dependendo de cada contexto cultural específico, mas geralmente se refere a um grupo que, ainda que não seja necessariamente uma minoria, em termos numéricos, está em situação de desvantagem ou vulnerabilidade e tem menos poder (político ou econômico) do que o grupo dominante. Assim, a condição de minoria é definida por uma relação política, e não por uma característica inerente ou imutável de um grupo. Religião e língua, por exemplo, podem ser adotadas ou mesmo alteradas ao longo do tempo, embora sejam, em geral, elementos importantes para a autoidentificação das minorias étnicas e nacionais. Grifos nosso. (SANTILLI, 2008,p.137).

           

Apesar de serem, via de regra, numericamente representativas em todo o mundo, as minorias ocupam espaços desprivilegiados e, como conseqüência, são destituídas de instrumentos para alcançar, autonomamente, melhores condições de participação nas múltiplas esferas comunitárias. É entre os agrupamentos sociais carecedores de tais instrumentos que se inserem as parcelas que enfrentam dificuldades no acesso às oportunidades de emprego e renda.

O Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos de 1966 é considerado o primeiro documento da ONU a trazer a expressão minorias de forma sistematizada. No artigo 27 do texto, preceitua-se a garantia da identidade cultural, religiosa e lingüística a tais grupos.

Art. 27 Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua. Grifamos(ONU,1966).

 

Note-se que, apesar de preceituar o termo “minoria” o discurso do dispositivo sugere a suficiência de uma postura estatal eminentemente abstencionista, ou seja, exige-se, tão somente, a não privação dos direitos inerentes à identidade do grupo. Não se mostra, portanto, veículo de uma linha de pensamento voltada às políticas positivas.Em sentido diverso, a Declaração sobre os Direitos de Pessoas que pertencem às Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas ou Lingüísticas apresenta um direcionamento quanto à necessidade de um Estado atuante na realização de direitos:

Art. 4º - 1. Os Estados adotarão as medidas necessárias a fim de garantir que as pessoas pertencentes a minorias possam exercer plena e eficazmente todos os seus direitos humanos e liberdades fundamentais sem discriminação e em igualdade perante a lei. 2. Os Estados adotarão medidas para criar condições favoráveis a fim de que as pessoas pertencentes a minorias possam expressar suas características e desenvolver a sua cultura, idioma, religião, tradições e costumes, salvo em casos em que determinadas práticas violem a legislação nacional e estejam contrárias às normas internacionais. Grifamos. (ONU, 1992).

 

Depreende-se destes diplomas o abandono da tônica assistencialista perante as parcelas minoritárias em nome de uma tendência de promoção social. Tal recente entendimento apresenta fortificação gradual e se aproxima da disciplina das ações afirmativas.

4 As pessoas com deficiência e a política de cotas

 

 

Dispõe o Art.3º, inciso I, do decreto nº 3298/1999 que deficiência constitui em “toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano.” (BRASIL, 1999). Assim, a deficiência é uma limitação natural, qualificada pela norma enquanto merecedora de uma diferenciada regulamentação e postura social.

É pertinente frisar o plausível emprego do termo deficiência no texto acima transcrito, já que, não obstante venha sendo combatido sob o equivocado argumento de consistir em suposto antônimo de eficiência (FÁVERO, 2007,p.23), é expressão fiel à tradução das limitações e das diferenças legitimadoras das políticas de promoção social. O cenário de repúdio à denominação deficiente fez nascer o emprego de expressões eufêmicas como “portador de necessidades especiais”, a denotar apaziguamento de um efetivo elemento diferenciador. Para a cobrança de posturas positivas, não parece interessante minimizar e acobertar limitações, uma vez que estas condutas de intervenção social têm nelas o seu fundamento e limite.

As pessoas com deficiência encontram inserção entre os grupos minoritários por serem alvo de vulnerabilidade social, traduzida na dificuldade de acesso à educação e, por conseqüência, ao meio produtivo formal. Enfrentam obstáculos que vão desde a ausência de centros educacionais estrutural e didaticamente preparados, até o descrédito empresarial quanto às suas reais capacidades de execução dos serviços que lhes serão atribuídos.

O difuso estereótipo de pessoas com deficiência, apáticas e dependentes, ainda parece contrastar com valores como a produtividade e a agilidade, tidos como pilares na seara do trabalho(NERI, CARVALHO, COSTILLA, 2003,p.13). Não parece haver espaço para a credibilidade ou aposta em potenciais, quando se tem um panorama cuja base é o preconceito e o objetivo único é o lucro.

Mesmo quando se tem em jogo um posto de trabalho na carreira pública, no qual se terá em mira a promoção do bem comum e não a lucratividade, e em que o ingresso se dá mediante concurso, os empecilhos persistem:

Exemplo: pessoa cega que quer se preparar para um concurso público. As dificuldades vão desde encontrar livros em braile, até estudar através de computadores com sintetizadores de voz, que são mais lentos e cansam muito mais o usuário. (FÁVERO, 2007,p.49).

Eis que assim surge a necessidade de instrumentos sancionadores e coercitivos, voltados à consecução da igualdade material e ao cumprimento do direito fundamental-mor da dignidade humana, presente no art.1º, inciso III, da Constituição Federal.A fixação de vagas reservadas mostra-se como forma de reconhecer o efetivo enfrentamento de caminhos mais tortuosos no alcance de uma educação de qualidade e de um digno posto de trabalho formal pelas minorias com deficiência. Significa, desta forma, desigualar para alcançar a igualdade real e concreta almejada.

A iniciativa pioneira de reserva de mercado de trabalho a pessoas com deficiência teve desenvolvimento na Europa, como forma de acomodar os ex-combatentes feridos na Primeira Guerra Mundial. Mais tarde, em 1944, na Reunião de Filadélfia, a Organização Internacional do Trabalho emite recomendação para absorção de qualquer deficiente, mesmo aqueles não-combatentes(PASTORE, 2000,p.157), orientação ratificada posteriormente no artigo 1º da Convenção nº 159 da Organização Internacional do Trabalho, cujo teor se reproduz:

Art. 1º - Para efeitos desta Convenção, entende-se por "pessoas deficientes" toda pessoa cujas possibilidades de conseguir e manter um emprego adequado e de progredir no mesmo fiquem substancialmente reduzidas devido a uma deficiência de caráter físico ou mental devidamente comprovada. Para efeitos desta Convenção, todo o País Membro deverá considerar que a finalidade da reabilitação profissional é a de permitir que a pessoa deficiente obtenha e conserve um emprego e progrida no mesmo, e que se promova, assim, a integração ou a reintegração dessa pessoa na sociedade. Grifamos (OIT, 1983).

 

O ordenamento jurídico brasileiro apresentou resposta aos reclames dos grupos organizados de defesa dos interesses dos cidadãos com deficiência, no momento em que se preceituou, na Carta Cidadã, no art. 37, inciso VIII, a necessidade de reserva de vagas às oportunidades de cargos e empregos na Administração Pública.  Já em outubro de 1989, foi colocada em vigor a lei nº 7853, cujo texto traz diretrizes gerais de apoio às pessoas com deficiência, integração social, institui a tutela de interesses difusos e coletivos, fixa as competências da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE), disciplina a atuação do Ministério Público e tipifica crimes contra a pessoa com deficiência. O art.1º de citada carta normativa põe em destaque a necessidade de promoção de igualdade e oportunidade e cita, inclusive, o termo “ações governamentais”, cuja significação direta é, indubitavelmente, a exigência de uma postura propulsora por parte do Estado em favor deste segmento social. Não se exclui, contudo, o combate às discriminações ilícitas.

 

Art. 1º Ficam estabelecidas normas gerais que asseguram o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiências, e sua efetiva integração social, nos termos desta Lei.§ 1º Na aplicação e interpretação desta Lei, serão considerados os valores básicos da igualdade de tratamento e oportunidade, da justiça social, do respeito à dignidade da pessoa humana, do bem-estar, e outros, indicados na Constituição ou justificados pelos princípios gerais de direito.§ 2º As normas desta Lei visam garantir às pessoas portadoras de deficiência as ações governamentais necessárias ao seu cumprimento e das demais disposições constitucionais e legais que lhes concernem, afastadas as discriminações e os preconceitos de qualquer espécie, e entendida a matéria como obrigação nacional a cargo do Poder Público e da sociedade. (BRASIL, 1989).

 

Mais adiante, nos incisos subseqüentes, tem-se por confirmada a tônica, adotada pelo legislador, de interveniência do ente estatal em favor das pessoas com deficiência, mormente no tangente à inclusão no setor produtivo. A exigência de posturas comissivas é, novamente, provada pelos termos utilizados.

 

Art.1º inc. III - na área da formação profissional e do trabalho: a) o apoio governamental à formação profissional, e a garantia de acesso aos serviços concernentes, inclusive aos cursos regulares voltados à formação profissional; b) o empenho do Poder Público quanto ao surgimento e à manutenção de empregos, inclusive de tempo parcial, destinados às pessoas portadoras de deficiência que não tenham acesso aos empregos comuns; c) a promoção de ações eficazes que propiciem a inserção, nos setores públicos e privado, de pessoas portadoras de deficiência; d) a adoção de legislação específica que discipline a reserva de mercado de trabalho, em favor das pessoas portadoras de deficiência, nas entidades da Administração Pública e do setor privado, e que regulamente a organização de oficinas e congêneres integradas ao mercado de trabalho, e a situação, nelas, das pessoas portadoras de deficiência. (BRASIL, 1989).

 

Entretanto, atribui-se à lei 8112/90 o mérito de ter efetivamente regulamentado a matéria, ao fixar no art.5º, §2º ,  o limite de até 20% de vagas reservadas no serviço público a pessoas com deficiência, sob a condição de ser a limitação compatível com as atribuições previstas ao cargo.

Um ano após, o legislador infraconstitucional, acolhendo as intenções e os valores já apresentados em sede constitucional, fixa percentuais a serem respeitados pela iniciativa privada, em proporcionalidade com o contingente total de funcionários por meio da lei 8213/91:

Art.93. A empresa com 100(cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção: I – até 200 empregados........2%;  II – de 201 a 500..........3%; III – de 501 a 1000......4%; IV – de 1001 em diante.......5% (BRASIL, 1991).

 

A iniciativa de estabelecer o âmbito de incidência da norma, mediante padrões numéricos e cominar sanções (definidas na portaria nº1199/2003 do Ministério do Trabalho e Emprego) às empresas, em caso de descumprimento, se coaduna com a já previsível resistência por partes dos sócios de empresas quanto à pretensão estatal de promover a inserção daqueles, até então, excluídos do meio produtivo.

Na busca de constituir um verdadeiro instrumento de minimização de desvantagens sociais e barrar possíveis tentativas de burla, o §1º do artigo 93, acima reproduzido, condiciona o exercício do direito potestativo de dispensa do empregado pelo patronato à contratação de substituto também com deficiência. Tem-se, pois, uma preocupação voltada não somente ao acesso ao mercado formal de trabalho, mas com a sua permanência. Não se pode olvidar que se assim não fosse, os postos de trabalho ocupados por estes grupos minoritários logo teriam em exercício outros funcionários, com perfis supostamente condizentes com os padrões pré-concebidos de capacidade produtiva.

O diploma internacional mais recente no trato à matéria deficiência é a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinada pelo Brasil em 2006 e promulgada em 9 de julho de 2008, em cujo texto se reconhece a insuficiência das ações governamentais e não-governamentais até então adotadas e se constata a manutenção de desafios para a participação destas pessoas como membros iguais. A tônica do pacto é de promoção e atuação positiva do Estado na consecução de direitos. Vejam-se os princípios regentes.

Os princípios fundamentais dessa Convenção deverão ser:(a) O respeito inerente à dignidade, autonomia individual incluindo a liberdade de fazer suas próprias escolhas, e a independência das pessoas;(b) Não -discriminação;c) Inclusão e participação plena e efetiva na sociedade;(d) Respeito pela diferença e aceitação da deficiência como parte da diversidade humana e humanidade;(e) Igualdade de oportunidade;(f) Acessibilidade;(g) Igualdade entre homens e mulheres;(h) Respeito pela capacidade em desenvolvimento das crianças com deficiência e respeito aos direitos das crianças com deficiência de preservarem suas identidades. (BRASIL, 2008,p.4-5).

            No âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, o Projeto de Lei 7699/2006 proposto pelo Senador Paulo Paim do PT/RS, objetiva a criação do Estatuto das Pessoas com Deficiência. Nele, procura-se determinar o conteúdo jurídico da deficiência ao apresentar as classes de limitações passíveis de um trato diferenciado pela sociedade civil e o Estado. A tônica do diploma vindouro é justamente a de promoção de oportunidades, associada à punição das discriminações ilícitas.

Verifica-se, assim, que o sistema jurídico pátrio, além das já existentes respostas e soluções ao objetivo de inclusão das minorias com deficiência, procura fortificar tal tendência de dignificação das diferenças. Contudo, ainda carecem de relativa efetividade as normas, principalmente frente à iniciativa privada, cuja inobservância e tentativa de burla aos preceitos tem se tornado deliberada, face à necessidade de investimentos em alterações de engenharia em seus prédios para razoável acomodação destes novos empregados (ALVES, 1992,p.100).

Alguns segmentos empresariais, em sentido diverso, já despontam na iniciativa de concretização dos mandamentos legais, tendo-se em mira a possibilidade de extrair da inclusão de pessoas com deficiência benefícios às suas imagens, como forma de demonstração de responsabilidade social. É o que demonstra trecho de Manual do Instituto Ethos (2002,p.17), a seguir reproduzido:

Um dos ganhos mais importantes é o de imagem. O prestígio que a contratação de pessoas com deficiência traz às empresas está bastante evidente na pesquisa Responsabilidade Social das Empresas – Percepção do Consumidor Brasileiro, realizada anualmente no Brasil, desde 2000, pelo Instituto Ethos, jornal Valor e Indicator. Em 2000, 46% dos entrevistados declaram que a contratação de pessoas com deficiência está em primeiro lugar entre as atitudes que os estimulariam a comprar mais produtos de determinada empresa. Em 2001, essa continuou sendo a atitude mais destacada, com 43% dos consumidores entrevistados repetindo esta mesma resposta.

            Depreende-se destes diplomas o abandono da tônica assistencialista perante as parcelas minoritárias em nome de uma tendência de promoção social. Tal recente entendimento apresenta fortificação gradual e se aproxima da disciplina das ações afirmativas.

5 Direito de afirmação e tratamento isonômico

O direito de afirmação e o tratamento isonômico se apresentam, em primeira análise, como noções inconciliáveis. A conduta de promoção às minorias sociais revela-se como contraste aos postulados clássicos de igualdade. Coloca-se em afronta às idéias de paridade inerente à condição de “ser humano” e ao núcleo de garantia de isonomia formal. A igualdade é socialmente vista como um fato moral e naturalmente indiscutível e de conteúdo completo e inquestionável, haja vista terem as pessoas, como medida de equivalência, a condição de seres humanos, portadores de uma mesma estrutura corporal e um idêntico e inexorável destino(BARBOSA, 1996,p.86).

Diante de tal olhar, apresenta-se como naturalística a premissa segundo a qual todos se encontram em estágio de perfeita equiparação e, portanto, os requisitos únicos e absolutos para o sucesso são o esforço e o talento individual. Em sendo assim, mostra-se ilógica a adoção de mecanismos de redução de disparidades, uma vez que não faz sentido combater algo cuja existência sequer é reconhecida.Como já referenciado, a interpretação amparada na garantia de igualdade de todos perante a lei (art. 5º, caput da vigente Carta Constitucional) também faz ter como digno de repúdio qualquer critério seletivo de acesso a oportunidades, desvinculado da capacidade individual e de parâmetros objetivos de avaliação.

Observe-se, contudo, que, com a ampliação do conteúdo jurídico do princípio da igualdade, iniciada com a derrocada do modelo de Estado Liberal, passa-se a suscitar a sua compatibilidade com as políticas de incentivo. Alerta-se para o fato de que, embora a igualdade perante a lei forneça bases para a desvinculação de conquistas a privilégios, poder aquisitivo e influências políticas num ambiente de vigência de um Estado Democrático de Direito, por outra via,  trata como idênticas pessoas com trajetórias e chances por completo antagônicas (CORDEIRO, 2007,p.82). Não admite a montagem de níveis específicos de aferição intelectual, em compatibilidade com os contextos e condições de desenvolvimento dos indivíduos (MUNANGA, 2003,p.28).

O olhar material da igualdade se apresenta enquanto uma alternativa à construção de um panorama de justa repartição de oportunidades. Não se tem como suficiente a vigência de um Estado de Direito desvinculado de um Estado Social. É o que J.J Gomes Canotilho expõe:

[...] o princípio da igualdade é não apenas um princípio de Estado de direito mas também um princípio de Estado social. Independentemente do problema da distinção entre <<igualdade fática>> e <<igualdade jurídica>> e dos problemas políticos e econômicos ligados à primeira (ex.:políticas e teorias da distribuição e redistribuição de rendimentos), o princípio da igualdade pode e deve considerar-se um princípio de justiça social. Assume relevo enquanto princípio de igualdade de oportunidades (Equality of opportunity) e de condições reais de vida.[...]. Grifos do original. (CANOTILHO, 2003,p.430).

 

Não significa, contudo, que a finalidade de divisão equitativa de oportunidades entre cidadãos tenha o condão de realizar, per si, a compatibilização entre o direito de afirmação e o tratamento em consonância com a isonomia. Deve-se combinar ainda o exame do fator de discriminação adotado e a condição de vulnerabilidade do público alvo. Para visualização conjunta destes elementos e obtenção de uma resposta válida quanto à mitigação do princípio da igualdade, Canotilho sugere o seguinte esquema, ao qual ele atribui a denominação de Perguntas de Controle:

Caso II – Igualdade de tratamento

{C}(1)   {C}Existe uma desigualdade de situações de facto [sic] relevante sob o ponto de vista jurídico-constitucional?

No caso de resposta negativa:

{C}(2)   Foram estes pressupostos desiguais tratados jurídico-constitucionalmente de forma igual pelas autoridades públicas?

Se sim:

{C}(3)   {C}Existe um fundamento material – razão objectiva [sic]- para esta igualdade de tratamento de situações iguais?

Se não:

{C}(4)   {C}verifica-se uma violação do princípio da igualdade (injustificadamente igualitária). Grifamos CANOTILHO, 2003,p.1297).

Mister se faz a análise do perfil esquemático em contraste com a política de cotas em favor das pessoas com deficiência.O primeiro questionamento refere-se à existência de desiguais situações de fato com relevância para o ordenamento jurídico-constitucional. Dúvidas não há quanto ao reconhecimento, pela Carta Suprema, de diferenças concretas em desfavor de tais minorias. A título de exemplo, merece destaque o artigo 37, inciso VIII, da Constituição Federal, cujo texto legitima a reserva de percentual de cargos e empregos públicos. Tem-se, pois, uma auto-denúncia estatal quanto à necessidade de tratamentos ancorados nas dissimilitudes. A resposta adequada seria em sentido afirmativo e, portanto, a indagação seguinte aponta para a análise de existência de um fundamento material objetivo para que não se preste diferentes tratamentos. A igualdade formal, argumento mais ostentado na rejeição de políticas de afirmação, constitui-se, tão somente, uma garantia contra discriminações fortuitas e desarrazoadas, e não um óbice ao trato diversificado de situações diversas. Quanto a isto, a resposta pertinente seria negativa. Logo, alcança-se a conclusão de que se tem uma injustificada igualdade entre realidades diversas e a violação à dimensão material do princípio da isonomia.

Celso Antônio Bandeira de Mello, em mesma linha, também apresenta um modelo esquemático apto a revelar a afronta ao preceito isonômico. A estrutura racional proposta é a seguinte.

Há ofensa ao preceito constitucional da isonomia quando:

I – A norma singulariza atual e definitivamente um destinatário determinado, ao invés de abranger uma categoria de pessoas, ou uma pessoa futura e indeterminada.

II – A norma adota como critério discriminador, para fins de diferenciação de regimes, elemento não residente nos fatos, situações ou pessoas por tal modo desequiparadas. É o que ocorre quando pretende tomar o fator “tempo” – que não descansa no objeto – como critério diferencial.

III – A norma atribui tratamentos jurídicos diferentes em atenção a fator de discrímen adotado que, entretanto, não guarda relação de pertinência lógica com a disparidade de regimes outorgados.

IV – A norma supõe relação de pertinência lógica existente em abstrato, mas o discrímen estabelecido conduz a efeitos contrapostos ou de qualquer modo dissonantes dos interesses prestigiados constitucionalmente.

V – A interpretação da norma extrai dela distinções, discrimens, desequiparações que não foram professadamente assumidas por ela de modo claro, ainda que por via implícita. (MELLO,2008,p.47-48).

           

A política de cotas não se direciona a um destinatário determinado, singularizado, e sim a grupos de vulnerabilidade social(PIOVESAN, 2004,p.46), nos quais estão inseridas as pessoas com deficiência. Não erige como fatores de discriminação caracteres alheios aos fatos, situações ou pessoas. In casu, a compleição física, sensorial ou mental, inerente às pessoas alcançadas pelo instrumento, é acatada como descrímen. O fator tomado como base é condizente com a finalidade buscada, ou seja, ao diferenciar estas pessoas, tem-se por proporcionada a distribuição efetiva de bens e chances sociais. E, como já exposto nos tópicos acima, o sistema jurídico nacional assume, em todo o seu corpo legislativo, a necessidade de impulsionar estes cidadãos.

6 Considerações finais

 

Após a descrição do objeto de estudos, mostra-se pertinente a apresentação das considerações obtidas quanto ao problema de pesquisa e ao teste das hipóteses sugeridas na introdução. Cuida-se de, enfim, apresentar resposta ao seguinte questionamento: a política de cotas em favor das pessoas com deficiência mitiga o princípio da isonomia?

A primeira hipótese aventada aponta no sentido da incompatibilidade do preceito isonômico em razão da igual condição de ser humano, compartilhada por todas as pessoas. Não se pode negar a natural similitude entre os integrantes da espécie humana. Contudo, esta noção não integra o conteúdo jurídico da isonomia. Este se mostra preenchido apenas pelas idéias de igualdade formal e material. Frise-se ainda que a sustentação de tal linha biológica de análise conduz à manutenção de uma desigual distribuição de benefícios entre os cidadãos. O problema de igualdade é inerente à vida em sociedade e, portanto, desta não pode se desvincular.

A segunda hipótese sugestionada, tangente à possibilidade de desrespeito à garantia constitucional de igualdade perante a lei, também se desmonta, haja vista a insuficiência da dimensão formal na descrição do princípio constitucional. Esta é, tão somente, uma expressão do postulado, na qual este não se esgota.

Múltiplas desigualdades se acumularam no decorrer dos séculos, no Brasil, sem que se firmasse qualquer preocupação institucionalizada em reverter tal estado de coisas. O preceito de que todos são iguais perante a lei, firmado na constituição da república, de 1988, com a função de resguardar os indivíduos da prática de discriminações arbitrárias, desdobra-se numa tendenciosa interpretação de impossibilidade de tratamentos diferenciados dos indivíduos, mesmo que amparados por situações fáticas e motivos plenamente justificáveis.

Não se atenta, contudo, para o fato de que o simples argumento de que o emprego de políticas positivas não é compatível com a ordem constitucional não tem o condão de ocultar a realidade logicamente verificável. Ou seja, de nada adianta firmar um entendimento literal do texto, se estudos científicos são capazes de verificar a existência de distorções na distribuição de oportunidades e, por via direta, a necessidade dos instrumentos de promoção. Não há como perdurar por muito tempo um engano, mesmo que coletivamente reproduzido.

 Ferdinand Lassalle faz uso de situação analógica que traduz o fenômeno descrito de preponderância da realidade frente a textos e compreensões com ela incompatíveis:

Podem os meus ouvintes plantar no seu quintal uma macieira e segurar no seu tronco um papel que diga; “Esta árvore é uma figueira.” Bastará este papel para transformar em figueira o que é macieira? Não, naturalmente. E embora conseguissem que seus criados, vizinhos e conhecidos, por uma razão de solidariedade, confirmassem a inscrição existente na árvore de que o pé plantado era uma figueira, a planta continuaria sendo o que realmente era e, quando desse frutos, destruiriam estes a fábula, produzindo maçãs e não figos. Igual acontece com as constituições. De nada servirá o que se escrever numa folha de papel se não se justifica pelos fatos reais e efetivos do poder (LASSALE, 2001, p. 37).

           

A igualdade material pouco a pouco se mostra e se combina à dimensão formal do mesmo princípio, na sua única acepção em conformidade com a constituição - a de proibição à discriminação ilícita, arbitrária e despropositada. Em mesmo caminho, as ações afirmativas ganham corpo, pela atividade de entidades assistenciais e do Estado, este último com base, principalmente, na definição de quotas, ou sistema de vagas reservadas.

Assim, não há mais como se suscitar a impossibilidade de práticas de incentivo, por se consistirem em meio hábil a aplainar uma realidade marcada pela dissimilitude entre os grupos ou classes e se coadunar com a norma nuclear da eqüidade:

Parece-nos que o reconhecimento das diferenciações que não podem ser feitas sem quebra da isonomia se divide em três questões: a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação; b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; c) a terceira atina à consonância desta relação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados. (MELLO, 2008,p.21).

           

Nesta linha, o fator tomado como critério de discrimen (deficiência) é uma característica justificante de um regime de tratamento diferenciado por se encontrarem diretamente ligados com a redução no acesso a bens e chances sociais. Em mesmo sentido, o sistema jurídico-constitucional absorve e acolhe o desejo de construção de uma ordem justa e isenta de disparidades de qualquer ordem.

Isto posto, mostra-se como consideração cabível à situação-problema apresentada o disposto na terceira hipótese. Observa-se uma compatibilidade entre a política de cotas e o princípio constitucional da isonomia, diante da existência de uma discriminação legítima, com bases e limites nas maiores dificuldades de acesso às oportunidades. Com tal instrumento, permite-se construir uma equiparação real entre pessoas. As cotas se coadunam com a dimensão material da isonomia.

Grandes avanços já vêm sendo conquistados na construção de um quadro nacional em que se tenha aplicabilidade uma isonomia pura, sem vícios, repousada em relações verdadeiramente democráticas e no reconhecimento dos direitos das pessoas com deficiência.

 A conscientização dos grupos minoritários quanto às suas posições de detentores de direitos subjetivos a prestações positivas estatais, bem como as correspondentes cobranças destas condutas, têm fortificado um ambiente de provocação e movimentação por transformações, cujos efeitos já se fazem sentir. Antes, sequer se cogitava da inclusão de coletividades marginalizadas. Hoje, tal debate é constante e se amplia, à proporção em que cresce o número de pessoas com deficiência em inserção no mercado regular de trabalho.

Sem dúvida, mostra-se apropriada a consolidação da política de vagas reservadas e, para tanto, é indispensável a concretização de ações conjuntas entre as múltiplas esferas estatais e a sociedade civil, assentadas no objetivo de construção de um padrão equânime de distribuição de direitos e deveres entre os cidadãos.

 

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[1] Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana/Ba (UEFS). Foi monitor da disciplina Direito Ambiental, pertencente à matriz curricular do Departamento de Ciencias Sociais e Aplicadas (UEFS). Autor de artigos publicados nos sítios eletrônicos do Boletim Jurídico e do JusPodivm. E-mail: [email protected]

[2] A descrição do processo lógico de diferenciação entre pessoas será devidamente abordado  no tópico 3.1 que trata das Causas legitimadoras de aplicabilidade das políticas de cotas

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Wilton Souza

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