“Quem deu a ti, carrasco, esse poder sobre mim?”
(Goethe)
Desde o advento da Carta, nesta República, há garantias fundamentais expressas. Dentre essas, o contraditório, a ampla defesa e a igualdade de partes (ou par conditio) que formam o arcabouço do axioma nulla probatio sine defensione e serve para nortear legisladores e tribunais contra as investidas injustas e arbitrárias.
O contraditório é “a garantia de participação, em simétrica paridade, das partes, daqueles a quem se destinam os efeitos da sentença, daqueles que são os ´interessados´, ou seja, aqueles sujeitos do processo que suportarão os efeitos do provimento e da medida jurisdicional que ele vier a impor” (Aroldo Plínio Gonçalves, Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 120).
O princípio da ampla defesa está expressamente previsto no artigo 5°, inciso LV, da Carta Magna de 1988. Vicente Grego Filho afirma que a ampla defesa é a “oportunidade de o réu contraditar a acusação através da previsão legal de termos processuais que possibilitem a eficiência da defesa. (...) constituída a partir dos seguintes fundamentos: "a) ter conhecimento claro da imputação; b) poder apresentar alegações contra a acusação; c) poder acompanhar a prova produzida e fazer contraprova; d) ter defesa técnica por advogado, cuja função, aliás, agora, é essencial à Administração da Justiça (art. 133 [CF/88]); e e) poder recorrer da decisão desfavorável". (Manual de Processo Penal, 5a ed., São Paulo, Saraiva,1998)
A ampla defesa deve ser o cerne ao redor do qual se desenvolve o processo penal. Compreende, em linhas gerais, o direito à defesa técnica durante todo o processo e também o direito ao exercício da autodefesa.
A primeira apresenta-se como uma defesa necessária, indeclinável, que deve ser plenamente exercida visando à máxima efetividade possível. A segunda, por sua vez, é renunciável, exercida pelo próprio acusado a partir da atuação pessoal junto ao magistrado por meio do interrogatório ou pela presença física aos principais atos processuais (Antônio Sacarance Fernandes, Processo Penal Constitucional, 4ª. ed., SP: RT, 2005, p. 294. No mesmo sentido: Sérgio Cademartori e Marcelo Coral Xavier. Apontamentos iniciais acerca do Garantismo, Boletim do ITEC, ano I, n.04, Porto Alegre, p. 6.).
O fato da ampla defesa ser renunciável não indica que é dispensável. Tão somente garante que poderá, o acusado, se assim desejar, declinar sua presença no interrogatório e em outros atos processuais de instrução, bem como abster-se de postular pessoalmente aquilo que lhe é permitido por lei. Não induz, todavia, submissão ao arbítrio do julgador. Mas, é essencialmente ao réu preso, que está sob o pálio da justiça e não tem a escolha de ir à audiência se defender, mesmo querendo, que se deve dar essa guarita. Já se afirmou em julgamento: “... ao lado da defesa técnica, confiada a profissional habilitado, existe a denominada autodefesa, por meio da presença do acusado aos atos processuais.” (RTJ 46/653)
A doutrina, na lavra do processualista português, Jorge de Figueiredo Dias, esclarece que se deve “dar ao argüido a mais ampla possibilidade de tomar posição, a todo o momento, sobre o material que possa ser feito valer processualmente contra si, e ao mesmo tempo garantir-lhe uma relação de imediação com o juiz e as provas” (Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, p. 432).José Frederico Marques, (Tratado de direito processual penal, Saraiva, 2º. Vol., p. 153), reforça extreme de dúvidas que a “defesa técnica não se torna a única a poder desenvolver-se no processo penal. A seu lado existe a autodefesa, a qual consiste na participação direta do réu em quase todos os atos do processo”. Segue nessa mesma linha de pensamento Rogério Lauria Tucci ensina: “à evidência que se deverá conceder ao ser humano enredado numa persecutio criminis todas as possibilidades de efetivação da ampla defesa, de sorte que ela se concretize em sua plenitude, com a participação ativa, e marcada pela contrariedade, em todos os atos do respectivo procedimento, desde a fase pré-processsual da investigação criminal, até o final do processo de conhecimento, ou de execução, seja absolutória ou condenatória a sentença proferida.” (Direitos e Garantias individuais no processo penal brasileiro, Saraiva, 1993, p. 205).
A autodefesa, portanto, apresenta-se como direito de audiência, direito de presença e direito de, pessoalmente, postular sua defesa, quando presente o ius postulandi.
Os conceitos de contraditório e ampla defesa são atuais, embora seu princípio fundamental, audiatur et altera pars, seja já bastante difundido. Como expõe Luigi Ferrajoli: “O pensamento iluminista, coerente com a opção acusatória, reivindicou a presença de um e de outro a todas as atividades probatórias. Voltaire protestou contra a possibilidade de que o confronto entre o imputado e as testemunhas fosse entregue à discricionariedade do juiz em vez de ser obrigatório. (...) E o mesmo fez Pagano, que desejou que as testemunhas de acusação ‘serão interrogadas ex integro na presença do réu’ e sublinhou ‘o quanto ajuda a conhecer a verdade tal contradição’” (Direito e Razão, Teoria do Garantismo Penal, SP: RT, 2002, p. 491). Rudolf von Ihering pugnou a igualdade jurídica entre as partes, “a sombra e a luz” (A evolução do Direito. Salvador: Progresso, 1956).
A praxe forense, entretanto, vem induzindo à verdadeira inexistência material destas garantias, eis que a presença do réu preso, comumente, é tida como dispensável. Ex vi: “A falta de requisição do réu preso para acompanhar a audiência não induz nulidade se o seu advogado constituído comparece ao ato” (STJ – 6ª. T – HC 21.739). Tememos pela razão a Francesco Carnelutti quando, num arroubo de desânimo, afirmou que “o juiz não tem a paciência e se a tivesse não teria o tempo para escutar a história do acusado, nem mesmo por resumo” (As Misérias do Processo Penal, SP: Conan, 1995, p. 51).
Atinge-se, assim, o princípio da possibilidade de refutação, a que trata Luigi Ferrajoli (Direito e Razão, op. cit., p. 124) e o que entende o STF em decisões mais garantistas: “O direito de estar presente à instrução criminal conferindo ao réu e seu defensor assenta princípio do contraditório penal. Ao lado da defesa técnica, confiada a profissional habilitado, existe a denominada autodefesa, decorrente da presença do acusado aos atos da instrução, quando lhe é dado contraditar a testemunha ou argüir circunstâncias ou defeitos que a tornem suspeita de parcialidade ou indigna de fé (art. 214 do CPP), bem assim auxiliar seu defensor na oportunidade das reperguntas.” (STF – RHC – Rel. Néri da Silveira – RT 601/443)
Audiência de instrução de réu preso ausente, quando à disposição do juízo, é um escândalo que pulula voraz a condenar a “justiça administrada na sombra”, como diria Romagnosi (Istituzioni di civile filosofia, ossia di giurisprudenza teorica, Opere, t. XIX, Piatti, Firenze, 1839, liv. IV, p. 265). Inocência e segredo jamais andaram juntos...
Para que se tenha a verdadeira existência do princípio do contraditório e da ampla defesa é mister que haja contato entre réu e seu defensor. Inclusive durante a audiência de instrução. O réu também tem o direito de contraditar com contra-hipóteses e contraprovas. Se for verdade que o advogado deve assistir o réu, informá-lo da situação que se encontra perante o juízo, não menos verdadeiro é que o réu também deve ter a oportunidade de orientar o seu advogado, chamar-lhe atenção para suspeições, inimizades, mentiras que as testemunhas, no ato de depor, fantasiam.
O art. 5o, inc. LXIII, da CF/88, assegura ao preso assistência ao advogado. É evidente, então, para que se tenha perfeito o contraditório, sem prejuízo para a defesa, deve estar também o advogado acompanhado do réu em audiência, mormente em se tratando de réu preso, à disposição do juízo.
A presença do réu preso na produção da prova é elemento assegurador da plenitude do exercício do direito de defesa e do contraditório que a Constituição Federal e a lei processual penal instrumentaliza. Como conclui Rosemiro Pereira Leal, “ausente o contraditório, (o processo) perderia sua base democrático-jurídico-
O réu preso, à disposição do juízo sentenciante, tem também o direito de assistir, comparecer e presenciar os atos processuais, principalmente sendo ato instrutório. O quadro processual é extremamente adverso aos direitos e interesses do acusado que se configura por inércia imputável exclusivamente ao Poder Público. A gravidade é acentuada pela ausência, involuntária, do próprio réu aos atos de instrução processual, decorrente de sua não-requisição pelo juízo competente. Deve-se entender comprometida a autodefesa, anulando-se o processo, conforme remansosa jurisprudência e doutrina.
Ao versar o tema, Fernando da Costa Tourinho Filho (Processo Penal, vol. I/475, 17ª. ed., 2005, SP: Atlas) expende magistério irrepreensível, verbis: “É causa de nulidade a ausência de requisição do réu preso na mesma unidade da Federação, quando é de conhecimento do juízo.” Também Antonio Scarance Fernandes (Processo penal constitucional, 4ª. ed., SP: RT, 2005, p. 81): “A presença do acusado no momento da produção da prova testemunhal é essencial, sendo exigência decorrente do princípio constitucional da ampla defesa. Estando na audiência, pode ele auxiliar o advogado nas reperguntas a serem dirigidas à testemunha ouvida. Por isso, em caso de acusado preso, este deve ser requisitado, ainda que a prova testemunhal seja colhida em precatória.”
Trata-se de direito subjetivo público do acusado. Tem a própria garantia da jurisdição a impedir injustiças patentes, a olhos postos. Sendo evidente que se infringe uma norma constitucional, mais claro ainda que desse vício patente só possa advir duas conseqüências: a nulidade absoluta ou a inexistência do mesmo, sendo mesmo desnecessária a demonstração de prejuízo. É também a conclusão da mais alta corte desta República: “O direito de estar presente à instrução criminal garante ao acusado a ampla defesa. A violação desse direito importa em nulidade absoluta, e não simplesmente relativa do processo.” (RTJ 79/110)
A doutrina mais abalizada é uníssona na lavra de Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho (As nulidades no processo penal. 3ª. ed., SP: Malheiros, 1993, p. 133): “A validade da audiência depende, assim, de providências prévias... O acusado preso deve ser requisitado (art. 360, CPP), sob pena de invalidade da prova, colhida sem sua presença...” Também José Frederico Marques (Elementos de direito processual penal, 2 ed., RJ: Forense, 1965, vol. II, p. 64): “A autodefesa é defesa particular do acusado, através da participação em vários atos processuais e da presença àqueles que se realizam coram populi para instrução e debates da causa.” Esse também o pensamento de Antônio Magalhães Gomes Filho: “O imputado deve participar de todos os atos do processo, principalmente os da instrução, a fase processual mais decisiva para a aferição da efetividade do contraditório; é aqui, com efeito, que a participação ativa dos interessados mais se justifica; são as partes que tiverem contato com os fatos e estão mais aptas a trazê-los ao processo; por isso mesmo, também são elas que possuem os melhores elementos para contestar e explorar as provas trazidas pelo adversário, possibilitando ao julgador uma visão mais completa – e ao mesmo tempo crítica – da realidade” (Direito à prova no processo penal. São Paulo: RT, 1997, p. 154).
Em tal processo, nunca se poderá guardar certeza da prova porque valorada às escuras. Certamente a presença do réu traz outro deslinde à causa, pois outro teor tem a prova oral e diversa a sua valorização.
Também a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8, inc. 2, f, decreto nº 678 de 06.11.1992 - DOU 09.11.1992) assegura o direito de inquirir a testemunha. Ex vi: “Art. 8º (...) 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...) f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos.”
Parece-nos inquestionável o direito do réu em estar presente ao ato procedimental. O juízo penal deve ser o principal contribuidor da lógica do próprio réu e não seu algoz inquisidor. Observe-se o pensamento da insigne Ada Pellegrini Grinouver: “O réu, como qualquer cidadão, é portador de uma série de direitos, de relevância prioritária e autônoma. Tais direitos devem ser tutelados pela própria autoridade jurisdicional que, no exercício de sua atividade, encontra, assim, uma série de limites.” (Liberdades públicas e processo penal, RT, 1982, p. 15). É, em fim, inconcebível que o juiz se possa pretender, cegamente, como substituto dos interesses pessoais do réu. Parafraseando Bentham (Traité des preuves judiciaires, cit. por Luigi Ferrajoli, op. cit., p. 493): “a verdadeira honradez de um juiz consiste em não exigir jamais uma tal confiança, em refuta-la quando se lha quiser atribuir, em colocar-se acima de qualquer suspeitas, impedindo que elas possam nascer e oferecendo ao público o espetáculo da sua consciência e de sua virtude.”