4. ANÁLISE JURISPRUDENCIAL
A jurisprudência relacionada à irrevogabilidade do mandato concentra-se fundamentalmente em casos de procuração em causa própria. As demais causas de irrevogabilidade são bem mais escassas, o que até inviabiliza a sua análise neste estudo que nos propomos a fazer. Como não queremos traçar verdades absolutas, mas apenas abrir espaço para a discussão e o desenvolvimento do assunto, nos restringiremos as situações mais habituais que ocorrem nos tribunais brasileiros.
O primeiro caso, e o mais freqüente no meio jurisprudencial nacional, é o mandato em causa própria. A jurisprudência para estar pacifica quanto à irrevogabilidade plena da procuração in rem suam:
"EMENTA: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO REVOGATÓRIA. MANDATO IN REM SUAM. NATUREZA JURÍDICA. ARTIGO 1.317, INCISO, I DO CÓDIGO CIVIL. CLÁUSULA DE IRREVOGABILIDADE E IRRETRATABILIDADE. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. FINANCIAMENTO. TRANSFERÊNCIA - SFH. I- A IRREVOGABILIDADE DO MANDATO IN REM PROPRIAM É ABSOLUTA E DECORRE TANTO DE EXPRESSA DISPOSIÇÃO LEGAL COMO DE SUA PRÓPRIA NATUREZA, HAJA VISTA O FATO DE SER CONSTITUÍDA, NO INTERESSE DO MANDATÁRIO, AO REVERSO DO QUE SE DÁ NOS MANDATOS AD NEGOTIA, QUE SÃO CONSTITUÍDOS NO INTERESSE DO MANDANTE. II- SENDO A IRREVOGABILIDADE DO MANDATO ABSOLUTA, A TEOR DO ART. 1.317, INCISO I, DO CÓDIGO CIVIL, É IMPOSSÍVEL O PEDIDO QUE SE FORMULA OBJETIVANDO SUA REVOGAÇÃO, COM BASE EM INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. III- APELAÇÃO IMPROVIDA (APELAÇÃO CÍVEL 19980710023394APC DF, 2ª TURMA CÍVEL, TJDFT, RELATORA: NANCY ANDRIGHI, JULGADO EM 19/12/1998)".
Em seguida temos um julgamento dispondo sobre a situação contida no artigo 1.317, inciso I, 1ª parte, do Código Civil, a irrevogabilidade por convenção das partes. Também sobre esta hipótese, a jurisprudência se mostra bastante uniforme, resguardando o direito de revogação do mandante, que mesmo sem estar citado no julgado, deverá indenizar o mandatário por perdas e danos. Segue-se a transcrição:
"EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. CERCEAMENTO DE DEFESA. REVELIA. COAÇÃO. MANDATO. A REVELIA AUTORIZA O JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE, DE ACORDO COM ART. 330, II DO C.P.C. PARA O RECONHECIMENTO DA COAÇÃO, INCUMBE À PARTE QUE ALEGA, DEMONSTRAR DE FORMA RIGOROSA A SUA EXISTÊNCIA. NO ENTANTO, ANTE A REVELIA, SÃO PRESUMIDOS VERDADEIROS OS FATOS ALEGADOS PELO AUTOR. O CONTRATO DE MANDATO É BASEADO NA FIDÚCIA, RAZÃO PELA QUAL, EM DESAPARECENDO A CONFIANÇA QUE DEPOSITOU NO MANDATÁRIO, LÍCITO É AO MANDANTE REVOGÁ-LO A DESPEITO DA CLÁUSULA DE IRREVOGABILIDADE (APELAÇÃO CÍVEL 20010150016812APC DF, 2ª TURMA CÍVEL, TJDFT, RELATOR: GETÚLIO MORAES OLIVEIRA, JULGADO EM 10/09/2001)".
Por fim temos caso enquadrado na situação do inciso II, do artigo 1.317, do Código Civil, o de irrevogabilidade nos casos em que for condição de um contrato bilateral, ou meio de execução de uma obrigação contratada. Na ementa em questão encontramos posicionamento diverso do defendido em nosso compêndio, pois esta defende a irrevogabilidade plena do mandato nos casos que este é condição de um contrato bilateral ou meio de execução de uma obrigação contratada. Como já exposto, nos amparamos no entendimento de que a irrevogabilidade nas citadas situações é relativa. Eis a ementa in verbis:
"EMENTA: Mandato. É irrevogável o mandato, inclusive quando for condição de um contrato bilateral. Se o mandatário, chamado a prestar contas, invoca a irrevogabilidade do mandato e sua exoneração da obrigação de prestar contas em razão de disposição contratual, negada a existência de tal disposição, incumbe-lhe comprovÁ-la (EMBARGOS INFRINGENTES NA APELAÇÃO CÍVEL 1986.005.00555, 1º GRUPO DE CÂMARAS CÍVEIS, TJRJ, RELATOR: DES. RENATO MANESCHY, JULGADO EM 16/10/89)".
Como observamos anteriormente, não há uma grande facilidade de acesso à jurisprudência a cerca de todas as causas de irrevogabilidade de mandato. Assim, não encontramos exemplares de jurisprudência sobre a irrevogabilidade de mandato conferido a sócio como administrador ou liquidante da sociedade. Explica-se isto, por não serem as cláusulas contratuais das sociedades muito lineares, o que traz uma grande diversidade de situações que fogem a previsão legal, principalmente no que se refere à irrevogabilidade do mandato.
5. A IRREVOGABILIDADE DO MANDATO E O NOVO CÓDIGO CIVIL
O novo Código Civil, que entrará em vigência no início do ano 2003, também trata do assunto da irrevogabilidade do mandato, e certamente trará algumas mudanças no trato da matéria. Os posicionamentos de vários autores a respeito de temas sobre a irrevogabilidade do mandato serão modificados com a entrada em vigor do referido diploma, o nosso, inclusive, pois o novo dispositivo legal apresenta figuras diversas do atual, o que conseqüentemente provocará a mudança no entendimento da matéria de vários doutrinadores.
A primeira alteração já se apresenta relevantíssima. Prevê, expressamente, o novo Código Civil, a indenização por perdas e danos, no caso do mandante desrespeitar a cláusula de irrevogabilidade do mandato. Isto significa que, via de regra, a irrevogabilidade é relativa.
Outra mudança que, aliás, se choca com o posicionamento doutrinário de vários doutos, é a instituição da irrevogabilidade plena do mandato nos casos em que for condição de um contrato bilateral, ou meio de execução de uma obrigação contratada.
O novo Código Civil, seguindo os trilhos da boa doutrina dominante e da repisada jurisprudência das cortes brasileiras, determina a irrevogabilidade plena da procuração in rem suam.
A irrevogabilidade de mandato conferido a sócio como administrador ou liquidante da sociedade, ficou reservada agora apenas para a parte que trata das sociedades, não figurando mais entre os dispositivos legais referentes aos contratos em espécie. O legislador demonstrou ponderação ao reservar tal assunto para parte que melhor lhe acolhe.
As causa de irrevogabilidade do mandato, estão no novo Código Civil do artigo 683 ao artigo 686:
"Art. 683. Quando o mandato contiver a cláusula de irrevogabilidade e o mandante o revogar, pagará perdas e danos.
Art. 684. Quando a cláusula de irrevogabilidade for condição de um negócio bilateral ou tiver sido estipulada no exclusivo interesse do mandatário, a revogação do mandato será ineficaz.
Art. 685. Conferido o mandato com a cláusula "em causa própria", a sua revogação não terá eficácia, nem se extinguirá pela morte de qualquer das partes, ficando o mandatário dispensado de prestar contas, e podendo transferir para si os bens móveis ou imóveis objeto do mandato, obedecidas as formalidades legais.
Art. 686. A revogação do mandato, notificada somente ao mandatário, não se pode opor aos terceiros que, ignorando-a, de boa-fé, com ele trataram; mas ficam salvas ao constituinte as ações, que no caso lhe possam caber contra o procurador.
Parágrafo único. É irrevogável o mandato que contenha poderes de cumprimento ou confirmação de negócios encetados, aos quais se ache vinculado".
6. CONCLUSÃO
Como todo objeto de estudo das ciências jurídicas, a irrevogabilidade do mandato, apresenta opiniões divergentes e discussões acaloradas.
Não temos aqui a pretensão de atestar opinião que se sobreponha a dos demais estudiosos do Direito. Antes de tudo, queremos aproveitar a ocasião para apurarmos nossos conhecimentos e fomentar a discussão do tema nos meio acadêmico e profissional.
De princípio podemos concluir que existem duas formas de irrevogabilidade, a plena e a relativa. Na plena a revogação do mandato efetivamente não será possível. Na relativa pode, desde que haja a indenização por perdas e danos. Todas as causas de irrevogabilidade oscilarão dentre estas duas hipóteses.
Além disto, não podemos perder de vista que a irrevogabilidade é fato atípico no contrato de mandato. A regra é a faculdade que o mandante tem de revogar a procuração de acordo com seus interesses. É ele que tem o domínio, o controle, o poder discricionário para determinar os rumos do contrato. Ao mandatário, cabe apenas se negar a cumprir o que não estava previamente estipulado no contrato.
O interesse do mandante é importante para se determinar se a irrevogabilidade deve ser plena ou relativa. Quando, apesar de irrevogável, o dominus e o interesse permanecerem nas mãos do mandante, deve-se considerar a irrevogabilidade relativa, verbi gratia, quando esta ocorre por convenção das partes. De forma oposta, quando a relação se estabelecer em função dos interesses do mandatário e este tiver o controle total da relação, a irrevogabilidade será considerada plena.
Este deve ser o ponto de partida do aplicador do Direito no caso concreto, independentemente do posicionamento doutrinário, jurisprudencial, ou até mesmo do novo Código Civil. A lei deve ser aplicada visando o caso concreto, não hipóteses meramente teóricas ou abstratas.
Esperamos que tão importante e usual instituto tenha seu valor preservado, esperançosos de que receba o tratamento especial e a atenção devida pelos que zelam pelo ordenamento jurídico, para que nunca seja fonte de distorções e injustiças.
NOTAS
1..FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Eletrônico – Século XXI. Versão 3.0. Rio de Janeiro: Nova Fronteira e Lexikon Informática, 1999.
2..MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil – Volume 5. Direito das Obrigações, 2ª parte. 33ª edição revista e atualizada por Ana Cristina de Barros Monteiro de França Pinto. São Paulo, Saraiva, 2001. p.253.
3..LEVENHAGEN, Antônio José de Sousa. Código Civil: direito das obrigações – Comentários didáticos. 1ª edição. 9ª tiragem. São Paulo: Atlas, 1989. p.91.
4..RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Volume 3. Dos contratos e das declarações unilaterais de vontade. 26ª edição revista. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 285.
5..FERREIRA, Mário. Apud SANTOS, J. M. de Carvalho. Código Civil Interpretado: Volume XVIII. 7ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961. p.217.
BIBLIOGRAFIA
CHAVES, Antônio. Lições de Direito Civil: Direito das Obrigações IV. Contratos em espécie. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
_______. Tratado de Direito Civil: Volume III. Direito das Obrigações. 3ª edição refundida de Lições de Direito Civil: Parte especial – Do Direito das Obrigações. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984.
DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 3ª edição aumentada e atualizada. São Paulo: Saraiva, 1997.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Eletrônico: Século XXI. Versão 3.0. Rio de Janeiro: Nova Fronteira e Lexikon Informática, 1999.
INTERNET: Superior Tribunal de Justiça: http//: www.stj.gov.br; Supremo Tribunal de Federal: http//: www.stf.gov.br; Tribunal de Justiça do Distrito Federal: http//: www.tj.df.gov.br; Tribunal de Justiça de Goiás: http//: www.tj.go.gov.br; Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: http//: www.tj.rs.gov.br; Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: http//: www.tj.rj.gov.br.
LEVENHAGEN, Antônio José de Sousa. Código Civil: direito das obrigações. Comentários didáticos. 1ª edição. 9ª tiragem. São Paulo: Atlas, 1989.
MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado: Parte Especial. Tomo XLIII. 3ª edição reimpressa. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: Volume 5. Direito das Obrigações, 2ª parte. 33ª edição revista e atualizada por Ana Cristina de Barros Monteiro de França Pinto. São Paulo, Saraiva, 2001.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Volume III. 10ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
Rodrigues, Silvio. Direito Civil. Volume 3: Dos Contratos e das declarações unilaterais de vontade. 26ª edição revisada. São Paulo: Saraiva, 1999.
SANTOS, J. M. de Carvalho. Código Civil Interpretado: Volume XVIII. 7ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961.
WALD, Arnoldo. Curso de Direito Civil Brasileiro. Volume II: Obrigações e Contratos. 9ª edição revista, atualizada e ampliada com a colaboração de Semy Glanz de acordo com a Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.