A administração pública e a mensagem bíblica

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03/06/2014 às 11:02
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 VIII

O conceito de alma é criação grega, cuja evolução seguimos a partir de Sócrates (470/469-399 a.C.), que faz dela a essência do homem.

Platão (428/427-347 a.C.) fundamenta a sua imortalidade com provas racionais, e Plotino (205-270) dela faz uma das três hipóstases.

A psyché é uma das figuras teóricas que melhor marcam o quadro do pensamento grego e o seu idealismo metafísico.

Os próprios estoicos, embora fazendo aberta profissão de materialismo, admitiam uma sobrevivência da alma (ainda que até o fim da posterior conflagração cósmica).

Desde Sócrates, os gregos passaram a ver na alma a verdadeira essência do homem, não sabendo pensar o homem senão nos termos do corpo e alma. Toda a tradição platônico-pitagórica e o próprio Aristóteles (384/383-322 a.C.) – e, portanto, a maior parte da filosofia grega – consideraram a alma imortal por natureza.

A mensagem cristã propôs o problema do homem em termos completamente diferentes. Nos textos sacros, a palavra alma não aparece nas acepções gregas.

O cristianismo não nega que, com a morte do homem, sobreviva algo dele; pelo contrário, fala expressamente dos mortos como sendo recebidos no seio de Abraão (Lc 16, 22).

Entretanto, o cristianismo não aponta de forma alguma para a imortalidade da alma, mas sim para a ressurreição dos mortos. Essa é uma das marcas da nova fé. E a ressurreição implica o retorno também do corpo à vida.

E precisamente isso deveria constituir gravíssimo obstáculo para os filósofos gregos: era absurdo que devesse renascer aquele corpo que era visto por eles como obstáculo e como fonte de toda a negatividade e do mal.

A reação de alguns estoicos e epicureus ao discurso pronunciado por Paulo no areópago, em Atenas, é muito eloquente. Eles ouviram Paulo enquanto falava de Deus. Mas quando falou em ressurreição dos mortos, não lhe permitiram que continuasse a falar. Está registrado nos Atos dos Apóstolos: “Ao ouvirem falar da ressurreição dos mortos, alguns começaram a zombar, enquanto muitos diziam: ‘A respeito disto te ouviremos outra vez’. Foi assim que Paulo se retirou do meio deles.” (At 17, 32-33).

Plotino, na perspectiva renovada da metafísica platônica, escrevia, em aberta polêmica com essa crença dos cristãos:

O que existe de alma no corpo nada mais é que alma adormecida. E o verdadeiro despertar consiste na ressurreição – a verdadeira ressurreição, que é do corpo, não com o corpo. Pois ressurgir com um corpo equivale a cair de um sono em outro, a passar, por assim dizer, de um leito a outro. Mas o verdadeiro levantar-se tem algo de definitivo, não de um só corpo, mas de todos os corpos, que são radicalmente contrários à alma, onde levam a contrariedade até à raiz do ser. Dá-nos prova disso, senão o seu devir, pelo menos o seu transcorrer e o seu extermínio, que certamente não pertencem ao âmbito do ser (Enneades, IV).

Por seu turno, muitos pensadores cristãos, ao contrário, não consideraram a doutrina do Fédon e dos platônicos como negação de sua fé, procurando inclusive acolhê-la como clarificadora.

O assunto da mediação entre a temática da alma e a da ressurreição dos mortos, com a inserção do Espírito, iria constituir um dos temas mais debatidos pela reflexão filosófica dos cristãos, com diferentes resultados.


IX

O pensamento grego sempre foi real e substancialmente aistórico. Os seus pensadores não tiveram um sentido preciso da história.

A ideia de progresso não lhes foi familiar ou só o foi em escala reduzida.

Aristóteles (384/383-322 a.C.), no seu livro Poética, Lisboa, Vega, 1988, falou de catástrofes recorrentes, que levam continuamente a humanidade ao estágio primitivo, ao que se segue uma evolução, que a leva novamente a um estágio de civilização avançada, que atinge o ponto atingido pelo anterior, ao que se segue uma nova catástrofe e assim por diante, ao infinito.

Os estoicos introduziram inclusive a teoria da destruição cíclica não só da civilização sobre a terra, mas também do cosmo inteiro, que, depois, se reforma ciclicamente, da mesma forma que antes, inclusive nos pormenores mais insignificantes. Em suma, repete-se tal qual no passado, ao infinito.

Isso é a negação do progresso.

A concepção de história expressa na mensagem bíblica, ao contrário, não é cíclica, mas retilínea. No transcorrer do tempo, verificam-se eventos decisivos e não repetíveis, que são como etapas que destacam o seu sentido.

O fim dos tempos é também o fim para o qual eles foram criados: é o juízo final e o advento do reino de Deus em sua plenitude (Mt 24, 30; 26, 64; Mc 13, 26; 14, 62; Lc 21, 27). E assim a história, que vai da criação à queda (Gn 1-3), da aliança ao tempo de espera do Messias (Gn 6, 18; Is 7,10ss), da vinda de Cristo ao juízo final (Mt 25, 31-46), adquire um sentido, tanto no seu conjunto como em suas diversas fases.

Na história assim entendida, também o homem se compreende a si mesmo bem melhor: compreende melhor de onde vem, onde se encontra e aonde é chamado a chegar. Sabe que o reino de Deus já fez seu ingresso no mundo com Cristo e com sua Igreja e que, portanto, já se encontra entre nós, ainda que só no fim dos tempos vá se realizar em toda a sua plenitude.

O antigo grego vivia na dimensão da pólis e pela pólis e só sabia pensar dentro de seus quadros. Destruída a pólis, o filósofo grego refugiou-se no individualismo, sem descobrir um novo tipo de sociedade.

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Já o cristão vive na Igreja, que não é uma sociedade política nem uma sociedade puramente natural. É uma sociedade que, por assim dizer, é ao mesmo tempo horizontal e vertical: vive neste mundo, mas não para este mundo; manifesta-se em aparências naturais, mas tem raízes sobrenaturais. Na Igreja de Cristo, o cristão vive a vida de Cristo na graça de Cristo (Rm 5, 2; 1Co 1, 4).

A parábola da videira e dos ramos que Cristo conta aos seus apóstolos expressa melhor do que qualquer outra coisa o novo sentido da vida do cristão em união com Cristo e com os outros que vivem em Cristo:

Eu sou a verdadeira videira e meu Pai é o agricultor. Todo o ramo em mim que não produz fruto ele o corta, e todo o que produz fruto ele o poda, para que produza mais fruto ainda. Vós já estais puros, por causa da palavra que vos fiz ouvir. Permanecei em mim, como eu em vós. Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanece na videira, assim também vós, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira e vós os ramos. Aquele que permanece em mim e eu nele produz muito fruto; porque, sem mim, nada podeis fazer. Se alguém não permanece em mim é lançado fora, como o ramo, e seca; tais ramos são recolhidos, lançados ao fogo e se queimam. Se permanecerdes em mim e minhas palavras permanecerem em vós, pedi o que quiserdes e vós o tereis (Jo 15, 1-7).

Há uma grande riqueza no pensamento grego. Mas a mensagem cristã vai muito além, ultrapassando-o precisamente nos pontos essenciais.

O erro de fundo dos gregos esteve no fato de procurarem no homem o que só podem encontrar em Deus.

Depois da mensagem cristã, até a medida grega do homem deve ser reavaliada. Protágoras (480-411 a.C.), na sua obra Antilogias, apresenta uma proposta basilar com o axioma: “O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são.”

Esse homem, que os gregos tanto exaltaram, é para o cristão algo muito maior do que pensavam os gregos, mas numa dimensão diversa e por razões diversas.

Se Deus considerou que deveria confiar aos homens a difusão de sua própria mensagem e se, até mesmo, chegou a fazer-se homem para salvar o homem (Gl 4, 4-5),  então a medida grega do homem, também tendo sido tão elevada, torna-se insuficiente e deve ser repensada a fundo. E na grandiosa tentativa de construir essa nova medida do homem é que nasceria o humanismo cristão.                                     

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Sobre o autor
Máriton Silva Lima

Advogado militante no Rio de Janeiro, constitucionalista, filósofo, professor de Português e de Latim. Cursou, de janeiro a maio de 2014, Constitutional Law na plataforma de ensino Coursera, ministrado por Akhil Reed Amar, possuidor do título magno de Sterling Professor of Law and Political Science na Universidade de Yale.

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