VIII
O conceito de alma é criação grega, cuja evolução seguimos a partir de Sócrates (470/469-399 a.C.), que faz dela a essência do homem.
Platão (428/427-347 a.C.) fundamenta a sua imortalidade com provas racionais, e Plotino (205-270) dela faz uma das três hipóstases.
A psyché é uma das figuras teóricas que melhor marcam o quadro do pensamento grego e o seu idealismo metafísico.
Os próprios estoicos, embora fazendo aberta profissão de materialismo, admitiam uma sobrevivência da alma (ainda que até o fim da posterior conflagração cósmica).
Desde Sócrates, os gregos passaram a ver na alma a verdadeira essência do homem, não sabendo pensar o homem senão nos termos do corpo e alma. Toda a tradição platônico-pitagórica e o próprio Aristóteles (384/383-322 a.C.) – e, portanto, a maior parte da filosofia grega – consideraram a alma imortal por natureza.
A mensagem cristã propôs o problema do homem em termos completamente diferentes. Nos textos sacros, a palavra alma não aparece nas acepções gregas.
O cristianismo não nega que, com a morte do homem, sobreviva algo dele; pelo contrário, fala expressamente dos mortos como sendo recebidos no seio de Abraão (Lc 16, 22).
Entretanto, o cristianismo não aponta de forma alguma para a imortalidade da alma, mas sim para a ressurreição dos mortos. Essa é uma das marcas da nova fé. E a ressurreição implica o retorno também do corpo à vida.
E precisamente isso deveria constituir gravíssimo obstáculo para os filósofos gregos: era absurdo que devesse renascer aquele corpo que era visto por eles como obstáculo e como fonte de toda a negatividade e do mal.
A reação de alguns estoicos e epicureus ao discurso pronunciado por Paulo no areópago, em Atenas, é muito eloquente. Eles ouviram Paulo enquanto falava de Deus. Mas quando falou em ressurreição dos mortos, não lhe permitiram que continuasse a falar. Está registrado nos Atos dos Apóstolos: “Ao ouvirem falar da ressurreição dos mortos, alguns começaram a zombar, enquanto muitos diziam: ‘A respeito disto te ouviremos outra vez’. Foi assim que Paulo se retirou do meio deles.” (At 17, 32-33).
Plotino, na perspectiva renovada da metafísica platônica, escrevia, em aberta polêmica com essa crença dos cristãos:
O que existe de alma no corpo nada mais é que alma adormecida. E o verdadeiro despertar consiste na ressurreição – a verdadeira ressurreição, que é do corpo, não com o corpo. Pois ressurgir com um corpo equivale a cair de um sono em outro, a passar, por assim dizer, de um leito a outro. Mas o verdadeiro levantar-se tem algo de definitivo, não de um só corpo, mas de todos os corpos, que são radicalmente contrários à alma, onde levam a contrariedade até à raiz do ser. Dá-nos prova disso, senão o seu devir, pelo menos o seu transcorrer e o seu extermínio, que certamente não pertencem ao âmbito do ser (Enneades, IV).
Por seu turno, muitos pensadores cristãos, ao contrário, não consideraram a doutrina do Fédon e dos platônicos como negação de sua fé, procurando inclusive acolhê-la como clarificadora.
O assunto da mediação entre a temática da alma e a da ressurreição dos mortos, com a inserção do Espírito, iria constituir um dos temas mais debatidos pela reflexão filosófica dos cristãos, com diferentes resultados.
IX
O pensamento grego sempre foi real e substancialmente aistórico. Os seus pensadores não tiveram um sentido preciso da história.
A ideia de progresso não lhes foi familiar ou só o foi em escala reduzida.
Aristóteles (384/383-322 a.C.), no seu livro Poética, Lisboa, Vega, 1988, falou de catástrofes recorrentes, que levam continuamente a humanidade ao estágio primitivo, ao que se segue uma evolução, que a leva novamente a um estágio de civilização avançada, que atinge o ponto atingido pelo anterior, ao que se segue uma nova catástrofe e assim por diante, ao infinito.
Os estoicos introduziram inclusive a teoria da destruição cíclica não só da civilização sobre a terra, mas também do cosmo inteiro, que, depois, se reforma ciclicamente, da mesma forma que antes, inclusive nos pormenores mais insignificantes. Em suma, repete-se tal qual no passado, ao infinito.
Isso é a negação do progresso.
A concepção de história expressa na mensagem bíblica, ao contrário, não é cíclica, mas retilínea. No transcorrer do tempo, verificam-se eventos decisivos e não repetíveis, que são como etapas que destacam o seu sentido.
O fim dos tempos é também o fim para o qual eles foram criados: é o juízo final e o advento do reino de Deus em sua plenitude (Mt 24, 30; 26, 64; Mc 13, 26; 14, 62; Lc 21, 27). E assim a história, que vai da criação à queda (Gn 1-3), da aliança ao tempo de espera do Messias (Gn 6, 18; Is 7,10ss), da vinda de Cristo ao juízo final (Mt 25, 31-46), adquire um sentido, tanto no seu conjunto como em suas diversas fases.
Na história assim entendida, também o homem se compreende a si mesmo bem melhor: compreende melhor de onde vem, onde se encontra e aonde é chamado a chegar. Sabe que o reino de Deus já fez seu ingresso no mundo com Cristo e com sua Igreja e que, portanto, já se encontra entre nós, ainda que só no fim dos tempos vá se realizar em toda a sua plenitude.
O antigo grego vivia na dimensão da pólis e pela pólis e só sabia pensar dentro de seus quadros. Destruída a pólis, o filósofo grego refugiou-se no individualismo, sem descobrir um novo tipo de sociedade.
Já o cristão vive na Igreja, que não é uma sociedade política nem uma sociedade puramente natural. É uma sociedade que, por assim dizer, é ao mesmo tempo horizontal e vertical: vive neste mundo, mas não para este mundo; manifesta-se em aparências naturais, mas tem raízes sobrenaturais. Na Igreja de Cristo, o cristão vive a vida de Cristo na graça de Cristo (Rm 5, 2; 1Co 1, 4).
A parábola da videira e dos ramos que Cristo conta aos seus apóstolos expressa melhor do que qualquer outra coisa o novo sentido da vida do cristão em união com Cristo e com os outros que vivem em Cristo:
Eu sou a verdadeira videira e meu Pai é o agricultor. Todo o ramo em mim que não produz fruto ele o corta, e todo o que produz fruto ele o poda, para que produza mais fruto ainda. Vós já estais puros, por causa da palavra que vos fiz ouvir. Permanecei em mim, como eu em vós. Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanece na videira, assim também vós, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira e vós os ramos. Aquele que permanece em mim e eu nele produz muito fruto; porque, sem mim, nada podeis fazer. Se alguém não permanece em mim é lançado fora, como o ramo, e seca; tais ramos são recolhidos, lançados ao fogo e se queimam. Se permanecerdes em mim e minhas palavras permanecerem em vós, pedi o que quiserdes e vós o tereis (Jo 15, 1-7).
Há uma grande riqueza no pensamento grego. Mas a mensagem cristã vai muito além, ultrapassando-o precisamente nos pontos essenciais.
O erro de fundo dos gregos esteve no fato de procurarem no homem o que só podem encontrar em Deus.
Depois da mensagem cristã, até a medida grega do homem deve ser reavaliada. Protágoras (480-411 a.C.), na sua obra Antilogias, apresenta uma proposta basilar com o axioma: “O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são.”
Esse homem, que os gregos tanto exaltaram, é para o cristão algo muito maior do que pensavam os gregos, mas numa dimensão diversa e por razões diversas.
Se Deus considerou que deveria confiar aos homens a difusão de sua própria mensagem e se, até mesmo, chegou a fazer-se homem para salvar o homem (Gl 4, 4-5), então a medida grega do homem, também tendo sido tão elevada, torna-se insuficiente e deve ser repensada a fundo. E na grandiosa tentativa de construir essa nova medida do homem é que nasceria o humanismo cristão.