V
A filosofia grega subestimara a fé ou crença (pistis) do ponto de vista cognoscitivo, pois dizia respeito às coisas sensíveis, mutáveis, sendo portanto uma forma de opinião (doxa).
Platão a valorizou como componente do mito, mas, em seu conjunto, o ideal da filosofia grega era o episteme, o conhecimento. Todos os pensadores gregos viam no conhecimento a virtude por excelência do homem e a realização da essência do próprio homem.
A nova mensagem veio exigir do homem precisamente uma superação dessa dimensão, invertendo os termos do problema e pondo a fé acima da ciência.
Isso não significa que a fé não tenha um valor cognoscitivo próprio. Entretanto, trata-se de valor cognoscitivo de natureza inteiramente diferente, em comparação com o conhecimento da razão e do intelecto. De todo o modo, trata-se de valor cognoscitivo que só se impõe a quem possui aquela fé. Como tal, ela constitui verdadeira provocação em relação ao intelecto e à razão.
O sentido geral dessa provocação é revelado por Paulo em sua primeira epístola aos coríntios (1Cor 1, 18-31; 2, 1-16):
[...] a linguagem da cruz é loucura para aqueles que se perdem, mas para aqueles que se salvam, para nós, é poder de Deus. Pois está escrito:
‘Destruirei a sabedoria dos sábios,
e rejeitarei a inteligência dos inteligentes.
Onde está o sábio? Onde está o homem culto?’ (Is 33, 18; 19, 12).
Onde está o argumentador deste século? Deus não tornou louca a sabedoria deste século? Com efeito, visto que o mundo por meio da sabedoria não reconheceu a Deus na sabedoria de Deus, aprouve a Deus pela loucura da pregação salvar aqueles que creem. Os judeus pedem sinais, e os gregos andam em busca de sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus é escândalo, para os gentios é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.
Vede, pois, quem sois, irmãos, vós que recebestes o chamado de Deus; não há entre vós muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de família prestigiosa. Mas o que é loucura no mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios; e o que é fraqueza no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte; e, o que no mundo é vil e desprezado, o que não é, Deus escolheu para reduzir a nada o que é, a fim de que nenhuma criatura possa vangloriar-se diante de Deus. Ora, é por ele que vós sois em Cristo Jesus, que se tornou para nós sabedoria proveniente de Deus, justiça, santificação e redenção, a fim de que, como diz a Escritura, ‘aquele que se glorie, glorie-se no Senhor’ (Jr 9, 22-23).
Eu mesmo, quando fui ter convosco, irmãos, não me apresentei com o prestígio da palavra ou da sabedoria para vos anunciar o mistério de Deus. Pois não quis saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado. Estive entre vós cheio de fraqueza, receio e tremor; minha palavra e minha pregação nada tinham de persuasiva linguagem da sabedoria, mas eram como uma demonstração de Espírito e poder, a fim de que a vossa fé não se baseie na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus.
No entanto, é realmente de sabedoria que falamos entre os perfeitos, sabedoria que não é deste mundo nem dos príncipes deste mundo, votados à destruição. Ensinamos a sabedoria de Deus, misteriosa e oculta, que Deus, antes dos séculos, de antemão destinou para a nossa glória. Nenhum dos príncipes deste mundo a conheceu, pois, se a tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da Glória. Mas, como está escrito,
‘o que os olhos não viram,
os ouvidos não ouviram
e o coração do homem não percebeu,
tudo o que Deus preparou para os que o amam’ (Is 64,3; Jr 3, 16; Sl 19,4; Eclo 1, 10).
A nós, porém, Deus o revelou pelo Espírito. Pois o Espírito sonda todas as coisas, até mesmo as profundidades de Deus. Quem, pois, dentre os homens conhece o que é do homem, senão o espírito do homem que nele está? Da mesma forma, o que está em Deus, ninguém o conhece senão o Espírito de Deus. Quanto a nós, não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que vem de Deus, a fim de que conheçamos os dons da graça de Deus. Desses dons não falamos segundo a linguagem ensinada pela sabedoria humana, mas segundo aquela que o Espírito ensina, exprimindo realidades espirituais em termos espirituais. O homem psíquico não aceita as coisas que vêm do Espírito de Deus. É loucura para ele; não pode compreender, pois isso deve ser julgado espiritualmente. O homem espiritual, ao contrário, julga a respeito de tudo e por ninguém é julgado.
‘Pois quem conheceu o pensamento do Senhor
para poder instruí-lo?’ (Is 40, 13; Rm 11, 34).
Nós, porém, temos o pensamento de Cristo.
Esta mensagem subversiva de todos os esquemas tradicionais dá origem inclusive a uma nova antropologia; o homem não é mais simplesmente corpo e alma (entendendo-se por alma razão e intelecto), isto é, em duas dimensões, mas sim em três dimensões: corpo, alma e espírito, em que espírito é exatamente essa participação no divino através da fé, a abertura do homem para a Palavra divina (Jo 1,1) e para a Sabedoria divina (Lc 11, 49), que o preenche com nova força e, em certo sentido, lhe dá nova estatura ontológica.
A nova dimensão da fé, portanto, é a dimensão do Espírito em sentido bíblico. Os gregos haviam conhecido a dimensão do nous, mas não a do pneuma, que passaria a ser a dimensão dos cristãos.
VI
Em Platão, o tema da beleza vincula-se ao do eros e do amor, força que dá asas e eleva, através dos vários graus de beleza, à beleza metaempírica existente em si.
A análise do amor situa-se entre os mais esplêndidos estudos que Platão nos deixou, como se pode ler no diálogo O banquete (Série “Os Pensadores”. São Paulo: Ed. Abril, 1978).
O eros não é Deus nem homem, mas um daqueles seres intermediários entre o homem e Deus. Assim, o amor é filó-sofo, no sentido mais denso do termo. A sophia, ou seja, a sabedoria, é algo que só Deus possui; a ignorância é propriedade do que está totalmente distante da sabedoria; a filo-sofia, ao contrário, é apanágio do que não é ignorante nem sábio, do que não possui o saber mas a ele aspira, do que sempre busca alcançá-lo e, tendo-o atingido, percebe que ele lhe foge novamente para que, como amante, continue a procurá-lo.
O termo grego eros significa a paixão de desejo sexual. A palavra philia designa primordialmente o amor de amizade. O substantivo ágape foi escolhido para designar a ideia cristã única e original do amor. E caridade é usada para mostrar o caráter único deste amor. Assim o eros grego é força de conquista e ascensão, que se acende sobretudo à luz da beleza.
Já o novo conceito bíblico de amor (ágape) é de natureza bem diferente. O amor não é primordialmente subida do homem, mas descida de Deus em direção aos homens. Não é conquista mas dom, algo espontâneo e gratuito.
Para os gregos, é o homem que ama, não Deus. Para os cristãos, é sobretudo Deus que ama: o homem só pode amar na dimensão do novo amor que realiza uma revolução interior radical e assemelha o seu comportamento ao de Deus.
O amor cristão é verdadeiramente sem limite, é infinito. Deus ama o homem ao ponto do sacrifício da cruz; ama os homens inclusive em suas fraquezas. É nisso que o amor cristão revela a sua desconcertante grandeza: uma desproporção entre o dom e o beneficiário desse dom, ou seja, na absoluta gratuidade de tal dom.
É no mandamento do amor que Cristo resume a essência dos mandamentos e da lei em seu conjunto. Em Marcos, podemos ler esta preciosa resposta que Cristo deu à pergunta de um escriba, que queria saber qual era o primeiro dos mandamentos:
O primeiro é... o Senhor nosso Deus é o único Senhor, e amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento, e com toda a tua força. O segundo é ...: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não existe outro mandamento maior do que este (Mc 12, 29-31).
A ilimitabilidade do amor cristão expressa-se mais profundamente nestas palavras de Mateus:
Ouvistes que foi dito: “Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo”. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; desse modo vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos. Com efeito, se amais aos que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem também os publicanos a mesma coisa? E se saudais apenas os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem também os gentios a mesma coisa? Portanto, deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito (Mt 5, 43-48).
Esta passagem da primeira epístola de João resume muito bem o arco da temática do amor cristão:
[...] amemo-nos uns aos outros, pois o amor vem de Deus e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não conheceu a Deus, porque Deus é amor. Nisto se manifestou o amor de Deus por nós: Deus enviou o seu Filho único ao mundo para que vivamos por ele. Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele quem nos amou e enviou-nos seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados. Amados, se Deus assim nos amou, devemos, nós também, amar-nos uns aos outros. Ninguém jamais contemplou a Deus. Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós, e o seu amor em nós é realizado. Nisto reconhecemos que permaneceremos nele e ele em nós: ele nos deu seu Espírito (1Jo 4, 7-13).
E a primeira epístola aos coríntios contém o mais excelente hino ao ágape, ao novo amor cristão:
Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e a dos anjos, se eu não tivesse a caridade, seria como bronze que soa ou como címbalo que tine. Ainda que tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência, ainda que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tivesse a caridade, nada seria. Ainda que distribuísse todos os meus bens aos famintos, ainda que entregasse meu corpo às chamas, se não tivesse a caridade, isso nada me adiantaria. A caridade é paciente, a caridade é prestativa, não é invejosa, não se ostenta, não se incha de orgulho. Nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade jamais passará. Quanto às profecias, desaparecerão. Quanto às línguas, cessarão. Quanto à ciência, também desaparecerá. Pois o nosso conhecimento é limitado, e limitada é a nossa profecia. Mas, quando vier a perfeição, o que é limitado desaparecerá. Quando era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Depois que me tornei homem, fiz desaparecer o que era próprio da criança. Agora vemos em espelho e de maneira confusa, mas, depois, veremos face a face. Agora meu conhecimento é limitado, mas, depois, conhecerei como sou conhecido. Agora, portanto, permanecem fé, esperança, caridade, essas três coisas. A maior delas, porém, é a caridade (1Cor 13, 1-13).
Paulo não sabia nada do eros e Platão não sabia nada do ágape. Talvez tivessem podido aprender um com o outro. Mas exatamente nessa tarefa é que se cimentou grande parte do pensamento cristão posterior. O ágape cristão pode viver sem o eros grego, mas o eros grego não pode viver sem o ágape cristão.
VII
A mensagem cristã assinalou sem dúvida a mais radical revolução de valores da história humana – usando outras palavras, uma subversão total das valias antigas –, transformação essa cuja formulação pragmática está no Sermão da Montanha, que nos foi transmitido no evangelho de Mateus:
Felizes os pobres no espírito,
porque deles é o Reino dos Céus.
Felizes os mansos,
porque herdarão a terra.
Felizes os aflitos,
porque serão consolados.
Felizes os que têm fome
e sede de justiça,
porque serão saciados.
Felizes os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia.
Felizes os puros no coração,
porque verão a Deus.
Felizes os que promovem a paz,
porque serão chamados filhos de Deus.
Felizes os que são perseguidos
por causa da justiça,
porque deles é o Reino dos Céus (Mt 5, 1-10).
E no evangelho de Lucas lemos:
Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus.
Felizes vós, que agora tendes fome, porque sereis saciados.
Felizes vós, que agora chorais, porque haveis de rir.
Felizes sereis quando os homens vos odiarem, quando vos rejeitarem, insultarem e proscreverem vosso nome como infame, por causa do Filho do Homem.
Alegrai-vos naquele dia e exultai, porque no céu será grande a vossa recompensa: pois do mesmo modo seus pais tratavam os profetas.
Mas, ai de vós, ricos, porque já tendes a vossa consolação!
Ai de vós, que agora estais saciados, porque tereis fome!
Ai de vós, que agora rides, porque conhecereis o luto e as lágrimas!
Ai de vós, quando todos vos bendisserem, pois do mesmo modo seus pais tratavam os falsos profetas.
Eu, porém, vos digo, a vós que me escutais: Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos difamam. A quem te ferir numa face, oferece a outra; a quem te arrebatar o manto, não recuses a túnica (Lc 6, 20-29).
Segundo o novo quadro de importâncias, é preciso retornar à simplicidade e à pureza da criança, porque aquele que é o primeiro segundo o juízo do mundo será o último conforme o juízo de Deus e vice-versa.
Escreve Mateus:
Nessa ocasião, os discípulos aproximaram-se de Jesus e lhe perguntaram: “Quem é o maior no Reino dos Céus?”. Ele chamou perto de si uma criança, colocou-a no meio deles e disse: Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no Reino dos Céus. Aquele, portanto, que se tornar pequenino como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus. E aquele que receber uma criança como esta por causa do meu nome recebe a mim (Mt 18,1-5).
E Marcos escreve: “Então ele sentou, chamou os doze e disse: Se alguém quiser ser o primeiro, seja o último de todos e o servo de todos.” (Mc 9, 35).
Desse modo, a humildade tornou-se uma virtude fundamental do cristão: o caminho estreito que dá acesso ao reino dos céus. E essa também era uma virtude desconhecida dos filósofos gregos.
E Cristo chegou a dizer o seguinte: “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois aquele que quiser salvar sua vida a perderá; mas, o que perder sua vida por causa de mim e do evangelho, a salvará.” (Mc 8, 34).
E isso, para o filósofo grego, seria simplesmente incompreensível. Em consequência, cai por terra também o ideal supremo do sábio helenístico que compreendera a verdade do mundo e de todos os bens exteriores e do corpo, mas, no entanto, punha em si a certeza suprema, proclamando-se autárquico e absolutamente autossuficiente, capaz de alcançar sozinho o fim último.
Esse ideal do homem grego, que acreditava em si mesmo mais do que em todas as coisas exteriores com extrema firmeza, fora, indubitavelmente, um nobre ideal.
Mas a mensagem evangélica agora o declara ilusório – e o faz de maneira categórica. A salvação não apenas não pode vir das coisas, nem sequer de si mesmo. Cristo diz: “Sem mim, nada podeis fazer.” (Jo, 15, 5).
Em uma esplêndida passagem da segunda epístola aos coríntios, Paulo sela essa reviravolta no pensamento antigo. Depois de ter suplicado a Deus três vezes, para que dele afastasse uma grave aflição que o atribulava, teve a seguinte resposta: “Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder.” (2Cor 12, 9). Por isso, Paulo conclui: “Por conseguinte, com todo o ânimo prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para que pouse sobre mim a força de Cristo.” (2Cor, 12, 9).