4. CONCLUSÃO
Iniciamos o presente artigo questionando se os pressupostos constitucionais previstos no caput do art. 52 da Constituição Federal são suficientes para afastar a competência do Legislativo e rechaçar a legitimidade democrática e permitir ao chefe do Executivo a adoção de medidas provisórias.
Objetivamos, sobretudo, responder a algumas inquietações: a) identificar os pressupostos constitucionais em que estão assentadas as disposições relativas às medidas provisórias; b) analisar as medidas provisórias diante do Estado Democrático de Direto; c) fixar os parâmetros constitucionais pelos quais as medidas provisórias devem ser abolidas do ordenamento jurídico.
Doutrinariamente se verifica o enfraquecimento do princípio da separação dos poderes em face da complexidade social a que estamos submetidos hodiernamente. Defende-se a possibilidade, excepcional, do Poder Executivo praticar atos antes afetos somente ao Poder Legislativo em decorrência de um “estado de necessidade que impõe ao Poder Público a adoção imediata de providências de caráter legislativo, inalcançáveis segundo as regras ordinárias de legiferação.”[35]
Não se pode olvidar, por outro lado, que as medidas provisórias só deveriam ser adotadas diante de situações excepcionalíssimas e urgentes, sob pena de rompimento do princípio da separação dos poderes e do Estado Democrático de Direito.
Os pressupostos formais da necessidade e da urgência, previstos pelo caput do art. 62 da Constituição Federal são insuficientes para justificar a exceção, pois permitem ao Presidente da República larga discricionariedade em detrimento das funções afetas ao Poder Legislativo.
O Ministro Celso Mello do Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento da ADIn 293-7/600-DF, publicada no Diário da Justiça do dia 16 de abril de 1993, trouxe luzes sobre o tema:
O que justifica a edição de medidas provisórias é a existência de um estado de necessidade, que impõe ao Poder Executivo a adoção imediata de providências de caráter legislativo, inalcançáveis segundo as regras ordinárias de legiferação, em face do próprio periculum in mora que certamente decorreria do atraso na concretização da prestação legislativa.
A plena submissão das medias provisórias ao Congresso Nacional constitui exigência que decorre do princípio da separação dos poderes. O conteúdo jurídico que elas veiculam somente adquirirá estabilidade normativa, a partir do momento em que – observada a disciplina ritual do procedimento de conversão em lei – houver pronunciamento favorável e quiescente do único órgão constitucionalmente investido do poder ordinário de legislar, que é o Congresso Nacional.
Essa manifestação do Poder Legislativo é necessária, é insubstituível e é insuprimível. Por isso mesmo, as medidas provisórias, com a sua publicação no Diário Oficial, subtraem-se ao poder de disposição do Presidente da República e ganham, em conseqüência, autonomia jurídica absoluta, desvinculando-se, no plano formal, da autoridade que as instituiu.
A edição de medida provisória gera dois efeitos imediatos. O primeiro efeito é de ordem normativa, eis que a medida provisória – que possui vigência e eficácia imediatas – inova, em caráter inaugural, a ordem jurídica. O segundo efeito é de natureza ritual, eis que a publicação da medida provisória atua como verdadeira provocatio ad agendum, estimulando o Congresso Nacional a instaurar o adequado procedimento de conversão em lei.
A rejeição parlamentar de medida provisória – ou de seu projeto de conversão - , além de desconstituir-lhe ex tunc a eficácia jurídica, opera uma outra relevante conseqüência de ordem político-institucional, que consiste na impossibilidade de o Presidente da República renovar esse ato quase-legislativo, de natureza cautelar.
Modificações secundárias de texto, que em nada afetam os aspectos essenciais e intrínsecos da medida provisória expressamente repudiada pelo Congresso Nacional, constituem expedientes incapazes de descaracterizar a identidade temática que existe entre o ato não convertido em lei e a nova medida provisória editada.
O poder absoluto exercido pelo Estado, sem quaisquer restrições e controles, inviabiliza, numa comunidade estatal concreta, a prática efetivas das liberdades e o exercício dos direitos e garantias individuais ou coletivos. É preciso respeitar, de modo incondicional, os parâmetros de atuação delineados no texto constitucional.
Uma Constituição escrita não configura mera peça jurídica, nem é simples estrutura de normatividade e nem pode caracterizar um irrelevante acidente histórico na vida dos Povos e das Nações. Todos os atos estatais que repugnem à Constituição expõem-se à censura jurídica – dos Tribunais, especialmente – porque são írritos, nulos e desvestidos de qualquer validade.
A Constituição não pode submeter-se à vontade dos poderes constituídos e nem ao império dos fatos e das circunstâncias. A supremacia de que ela se reveste – enquanto for respeitada – constituirá a garantia mais efetiva de que os direitos e as liberdades não serão jamais ofendidos. Ao Supremo Tribunal Federal incumbe a tarefa, magna e eminente, de velar por que essa realidade não seja desfigurada.
Verifica-se assim que as medidas provisórias não atentam contra o Estado Democrático de Direito desde que adotadas segundo os pressupostos constitucionais, com sua submissão imediata ao Congresso Nacional.
No Brasil, contudo, é lamentável a falta de precisão dos pressupostos de urgência e necessidade, devendo o legislador, por emenda à Constituição, estabelecer as situações assim consideradas com o escopo de evitar, como tem ocorrido, a adoção de medidas provisórias para quase todos os assuntos.
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Notas
[1] CHIESA, Clélio. Medidas provisórias: o regime jurídico constitucional. Curitiba: Juruá, 1996, p. 17.
[2] BARIONI, Danilo Mansano. Medidas provisórias. São Paulo: Editora Pillares, 2004, p. 42.
[3] Inc. V do art. 59 da CF.
[4] Art. 62, caput e parágrafos, da CF.
[5] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo; 24a edição, revista e atualizada nos termos da Reforma Constitucional n. 45, de 8/12/2004. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 532.
[6] Aut. e ob. cit., pp. 25 a 32.
[7] Aut. e ob. cit., p. 26.
[8] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 235.
[9] SILVA, José Afonso. Ob. cit., p. 533.
[10] Aut. e ob. cit. p. 532.
[11] CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo no estado contemporâneo e na constituição de 1988. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, pp. 162 e 163.
[12] BARIONI, Danilo Mansano. Medidas provisórias. São Paulo: Editora Pillares, 2004, pp. 66 e 67.
[13] Aut. e ob. cit., pp. 33 a 36.
[14] Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 12a edição, São Paulo: Malheiros, 2002, p. 115.
[15] DAMOUS, Wadih; DINO, Flávio. Medidas provisórias no brasil: origem, evolução e novo regime constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2005, pp. 89
[16] Apud DAMOUS, Wadih; DINO, Flávio. Ob. cit., p. 91.
[17] Aut. e ob. cit. p. 170.
[18] §8o. do art. 62 da CF
[19] Arts. 11 a 14 da Res. SF n. 1/2002.
[20] Aut. e ob. cit., p. 79.
[21] BARIONI, Danilo Mansano. Ob. cit. p. 96.
[22] BARIONI, Danilo Mansano. Ob. cit. p. 97.
[23] BARIONI, Danilo Mansano. Ob. cit., p. 100.
[24] Conf. SILVA, José Afonso. Ob. cit., p. 109.
[25] SECONDAT, Charles-Louis de, Barão de Montesquieu. Espírito das leis. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1996, cap. VI, liv. IX.
[26] Legislativa, executiva e judiciária.
[27] Aut. e ob. cit., p. 108.
[28] SAMPAIO, Marco Aurélio. A medida provisória no presidencialismo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 34.
[29] TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 5a edição. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 1027.
[30] CHIESA, Clélio. Ob. cit., p. 23.
[31] Aut. e ob. cit., p. 168.
[32] Aut. e ob. cit., p. 153.
[33] Aut. e ob. cit., pp. 153 e 154.
[34] Aut. e ob. cit., pp. 21 a 23.
[35] CHIESA, Clélio, ob. cit., p. 23.