Há alguns dias atrás, a propósito do Decreto 8.243/2014, que cria a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), ouvi um telejornalista (se não me engano da Band) criticar Dilma Rousseff porque ela estaria criando uma "dualidade de poderes". Nenhuma referência séria à constitucionalidade ou não do Decreto em questão foi feita na oportunidade.
A fórmula empregada pelo telejornalista causou-me estranheza. Mas naquele momento não consegui lembrar onde havia ouvido falar de algo parecido.
As palavras do telejornalista ficaram perambulando pela minha consciência até encontrarem-se com a matriz original mnemônica onde estavam arquivadas as informações primeiras referentes a "dualidade de poder" que eu tinha. A referência aos textos pré-revolucionários de Lenin é evidente e corroborada pela Wikipédia http://pt.wikipedia.org/wiki/Dualidade_de_poderes .
Quando Lenin formulou este conceito a Rússia estava mergulhada num caos político total. O Czar havia caído, a guerra mundial em curso drenava os recursos econômicos do novo regime e a fome era uma realidade até em Moscou. Naquela época os bolcheviques lutavam nas ruas para chegar ao poder, pois não tinham (e não queriam ter) representantes na Duma.
Não há, portanto, qualquer paralelo que se possa fazer entre a Rússia pré-comunista do início de 1917 e o Brasil da atualidade. Nosso país está em paz, as instituições políticas funcionam regularmente e o PT tem uma bancada parlamentar respeitável ampliada pelas alianças políticas que o permitem governar dentro da legalidade. Alianças que, aliás, estão sendo renovadas este ano com vistas à nova eleição presidencial.
Não estamos num período pré-revolucionário. Pessoalmente não tenho visto nem mesmo militantes de esquerda empregarem o conceito "dualidade de poder" há mais de uma década. De fato, o leninismo saiu de moda após a queda do Muro de Berlim e subsequente desmantelamento da URSS, fenômeno que acarretou a demolição de dezenas de estátuas colossais de Lenin na Polônia, Romênia, Iugoslávia, etc...
Dá o que pensar a utilização deste tipo de referência ideológico/alegórica num telejornal brasileiro de orientação neoliberal. Tudo indica que um anti-comunismo embolorado e retrô está sendo revivido na mídia. Curiosamente, o perigo de uma revolução comunista é nulo, a menos que alguém acredite no movimento "Golpe Comunista 2014 no Brasil - os reacinha PIRAM" https://www.facebook.com/events/343803015741823/ . É verdade que os membros da comunidade "Golpe Militar no Brasil 2014" https://www.facebook.com/GolpeMilitar2014 parecem acreditar que estamos a beira de um golpe comunista (alguns membros daquela comunidade dizem até que já estamos vivendo sob um comunismo de inspiração cubana), mas não me parece que um jornalista possa dar muito crédito a qualquer destes movimentos que nascem e morrem no Facebookistão. Só um doente mental seria capaz de transformar uma brincadeira de esquerda e um gueto de extrema direita virtual em ferramentas telejornalísticas de análise para interpretar o Brasil e classificar as ações governamentais.
Os capitalistas brasileiros (os barões da mídia incluídos) nunca ganharam tanto dinheiro quanto nos últimos 12 anos. Portanto, a referência telejornalística a Lenin a propósito do Decreto de Dilma Rousseff feita num tom de "revelação assustadora" no horário nobre é uma peça cômica perfeita. Faz a esquerda rir e a direita ranger os dentes. A ironia fica por conta da suposta seriedade do respectivo telejornal. Daqui há algumas décadas, após a presidenta realizar um histórico segundo mandato bem sucedido e fazer seu sucessor, os médicos irão atribuir o nome "Dilma Rousseff" à uma síndrome psiquiátrica que parece estar afetando a sanidade mental dos desesperados telejornalistas brasileiros.