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A intervenção penal para a proteção dos direitos e liberdade fundamentais:

linhas de acerto e desacerto da experiência brasileira

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01/07/2002 às 00:00
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3. Bem Jurídico e Constituição

Do que ficou dito, avulta a conclusão de que o bem jurídico, só por si, não será um meio totalmente seguro para conduzir o legislador na tarefa de realizar a política criminal, seja criminalizando, seja descriminalizando. Melhor dizendo, as diretrizes de um direito penal voltado para a preservação do mínimo ético-social e, pois, condicionadas a um determinado ethos social, não terão na noção de bem jurídico uma fórmula para pronta aplicação. Antes partirão da identificação dos valores mais caros ao sistema social e recondutíveis ao conceito de dignidade penal, e perscrutarão na fenomenologia a necessidade de intervenção penal, obedecendo-se à ordem de subsidiariedade. Tal tarefa será reclamada à criminologia. Mas, sem sombra de dúvida, poderá ser obviada pela correta exegese da Lei Fundamental. Para Figueiredo Dias, "Logo por aqui se deve concluir que um bem jurídico político-criminalmente vinculante existe ali – e só ali – onde se encontre refletido num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido em nome do sistema social total e que, deste modo, se pode afirmar que "preexiste" ao ordenamento jurídico-penal" [29]. De forma que entre a ordem de valores jurídico-constitucional e a ordem jurídica penal dos bens jurídicos haverá uma relação de mútua referência de analogia material, "fundada numa essencial correspondência de sentido e- do ponto de vista de sua tutela – de fins" [30]. E, mais adiante, o penalista de Coimbra arremata seu raciocínio, afirmando que "É por esta via – e só por ela em definitivo que os bens jurídicos se "transformam" em bens jurídicos dignos de tutela penal ou com dignidade jurídico-penal" [31].

A Lei Fundamental, tal como o ordenamento jurídico-penal, é, em sua essência, fragmentária, pois abrangerá, tout court, os bens e valores sociais de maior representação. Aqueles identificados na ordem de valores axiológica da comunidade. E, por isso, será fonte imediata para o legislador penal, que também norteará o ordenamento jurídico-penal por aquela representação. Em alguns casos, há determinação constitucional expressa de criminalização, como aquela contida no art. 5º, XLII. Mas em muitos, o legislador infraconstitucional vai apoiar-se em autorizações implícitas de criminalização, como ocorre, v.g., quando legisla para proteger o bem jurídico constitucional vida (art. 5º, caput). No entanto, tal relacionação não implicará numa situação de coincidência do âmbito protetivo dos dois ordenamentos jurídicos, posto que o legislador penal terá uma maior área de atuação [32]. Portanto, quando tratar do bem jurídico vida, parece-nos estar autorizado não só a protegê-lo das agressões danosas que o sacrifiquem mas, também, normatizar as formas não naturais de procriação [33]. Isto porque, segundo entendemos, estará arrimado não só no conceito de bem jurídico, mas também nos referenciais ontológicos que definem a Lei Fundamental. Portanto, já bem antes de socorrer-se às matérias afins do direito penal, como a criminologia, o legislador penal poderá consultar as bases ontológicas-axiológicas que presidem à Lei Fundamental.

3.1. Bases Filosóficas da Lei Fundamental

O sistema constitucional brasileiro vigente rompeu com as antigas pretensões de estabelecimento de um regime social enformado dentro dos limites da ordem dada e diretamente vinculado ao poder político [34]. O então regime constitucional de 1969 desconsiderava a formação heterogênea da sociedade, para promover um padrão comportamental – logicamente, mais fácil de enquadrar-se nas linhas filosóficas revolucionárias [35]. O atual, pelo contrário, reconhece que o Brasil é formado por uma sociedade pluralista, por isso funda "um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça" (preâmbulo da CR); reflete as idiossincrasias nacionais ao mencionar que o povo brasileiro, apesar da heterogeneidade, é composto de "uma sociedade fraterna", "sem preconceitos" e "fundada na harmonia social". E para estruturar o Estado-de-direito-material, o poder político assume uma posição compromissória de "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (art. 3º, IV da CR). Podemos dizer, à guisa de arremate, que para além de radicar os direitos fundamentais no princípio da dignidade da pessoa humana, a nossa Lei Fundamental potencializa dois importantes valores, que estão intrinsecamente unidos: a liberdade e a tolerância.

3.1.1. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CR), apresenta um campo ontológico largo, praticamente insusceptível de delimitação. Mas de sua noção, destacam-se, imediatamente, dois supostos irrenunciáveis: o primeiro de que a dignidade é referida à espécie humana, como forma de distinção do ser hominal das demais espécies. É atributo distintivo do ser humano, de cada homem e de todos os homens e, portanto, diretamente referenciado ao princípio da universalidade. O segundo, parte do fato de que essa categorização especial é única para todos os homens, ou seja, não se admitindo a taxionomia de graus de dignidade. Em uma palavra, a dignidade da pessoa humana também se referencia com o princípio da igualdade. Daí que, tendo sido adotado como princípio fundamental, o constituinte não podia desprezar os dois outros princípios que nele vão implicitamente contidos, sob pena de quebrar a unidade de sentido filosófica da Lei Fundamental.

É ela, sob estes dois aspectos que acabamos de mencionar, coerente ao dispor os direitos e garantias fundamentais para todas as pessoas, "sem distinção de qualquer natureza" [36]. De maneira a erigir, sob a tutela do princípio da dignidade, um sistema de direitos e garantias que viabiliza a formação da esfera de desenvolvimento da pessoa humana. Potencializa, enfim, a autodeterminação das pessoas, quer seja garantindo os direitos clássicos (vida [37], liberdade e propriedade); seja no caráter mais lato da cultura (através, v.g., das liberdades de expressão, de religião, de convicções filosófica e política); quer seja no sentido de propiciar o gozo, para além das liberdades clássicas do iluminismo, da liberdade positiva de autopromoção (através, v.g., do acesso garantido à justiça, à saúde e à educação).

Do que acabamos de expor, podemos concluir, com Jorge Miranda, que do princípio da dignidade da pessoa humana – o princípio fundamental que rege o sistema de direitos fundamentais – surgem cinco diretrizes básicas:

a) A dignidade da pessoa humana reporta-se a todas e a cada uma das pessoas e é a dignidade da pessoa individual e concreta;

b) Cada pessoa vive em relação comunitária, mas a dignidade que possui é dela mesma, e não da situação em si;

c) O primado da pessoa é o do ser, não o do ter; a liberdade prevalece sobre a propriedade;

d) Só a dignidade justifica a procura da qualidade de vida,

e) A protecção da dignidade das pessoas está para além da dignidade da cidadania portuguesa e postula uma visão universalista da atribuição dos direitos;

f) A dignidade da pessoa pressupõe a autonomia vital da pessoa, a sua autodeterminação relativamente ao Estado, às demais entidades públicas e às outras pessoas. [38]

3.1.2. A Tolerância

As pretensões de maior envergadura da Lei Fundamental, ligadas às relações interpessoais e dos cidadãos com o poder político, esvaziam-se de sentido quando se lhes subtrai um marco essencial para as sociedades pluralistas e democráticas: o da tolerância. A almejada sociedade fraterna e solidária não passará de um plano formal, se não for orientada por uma razão de tolerância. E o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana ficará restrito ao conceito metafísico, sem qualquer hipótese de concretizar-se nos direitos e garantias fundamentais. Por isso, já referimos que "Parece-nos inquestionável que esta base ontológico-axiológica que dirige a Constituição formal só tenderá à formação do Estado de direito material brasileiro a partir dos pressupostos da tolerância" [39].

É importante aqui destacar que o conceito de tolerância não corresponde exatamente à negação de intolerância. Latorre Latorre entende "(...) por tolerância a renúncia ao exercício do poder de desaprovação e por intolerância o desprezo coativo (em sentido amplo) pela diversidade (também em sentido amplo)". E conclui afirmando que "intolerância, pois, não é simplesmente o lado negativo da tolerância, não é seu reverso, pois não é mimeticamente o contrário, nem o dependente, ocupando um nível distinto" [40]. Mas aquela renúncia ao poder de desaprovação antes mencionada, não significa dizer que a tolerância se constrói a partir da apatia social ou da mais pura omissão. Implica, antes, em entender a diversidade comportamental e a própria contingência heterogênea da sociedade, para que se evitem os conflitos nocivos à pax publica. A tolerância é exercida constantemente e de forma positiva, inclusive para corresponder à intolerância do intolerável. Melhor explicando, a tolerância não se traduz pelo fechar de olhos a tudo que se passa, pois ela não é um valor absoluto. A tolerância aos fenômenos de intolerância importaria numa iniludível negação ontológica de seu conceito. A este propósito, Garzón Valdés menciona que "(...) a tolerância não pode ser absoluta (encontra-se limitada), pois a tolerância indiscriminada, a tolerância pura, sem limitações, termina negando-se si mesma e em sua versão mais radical equivaleria à eliminação de toda regulação do comportamento humano" [41]. Assim, numa sociedade plural como a nossa, composta de várias etnias, raças e culturas, mas de maioria branca, a neutralidade dos membros da população em relação aos atos de racismo não corresponderia à noção de tolerância. Tal hipótese provocaria, já o dissemos "uma paradoxal situação de tolerância do intolerável, que nos leva a uma das seguintes conclusões: ou a permissividade geraria um caos social, com a insurreição das minorias contra a população branca; ou a comunidade, antes fundada no pluralismo, e nos princípios da igualdade, universalidade e dignidade da pessoa humana, negaria através da força sua Constituição, fundando uma nova comunidade, agora impermeável (intolerante) com relação às influências de outras raças, etnias e culturas" [42]. É por isso que entendemos ser este postulado ôntico válido para formação de um corpus iuris, nomeadamente na esfera do direito penal.

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3.1.3. Liberdades Fundamentais

A tolerância, tanto exercida no plano vertical, nas relações entre os cidadãos e o poder político, como a tolerância concretizada no plano horizontal, nas relações interpessoais (e parece-nos que estes dois níveis são indissociáveis, pois a tolerância nas relações interpessoais tenderá a exigir uma correspondência quando estiverem em jogo os cidadãos e o poder político) [43], potencializa as liberdades e delimita-as de acordo com as vocações sociais.

É claro que o atual regime constitucional, no qual estão plasmados estes referenciais ontológicos, representa uma grande viragem em relação ao modelo tipicamente liberal inscrito na anterior Lei Fundamental. O bem jurídico propriedade, v.g., não mais pode ser categorizado como absoluto, devendo ser harmonizado com o conceito de função social que o constituinte, seguindo o padrão das constituições sociais-democráticas, resolveu inserir em sua noção. Mas as liberdades e os direitos dos clássicos continuam a orientar o legislador infraconstitucional. E com o inegável raiz fundada nos postulados que nos vieram com o iluminismo oitocentista. Tanto é que a liberdade se inscreve dentro do quadro garantístico da legalidade. E não é outro o significado que o constituinte quis dar ao enunciado de que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Eis, aqui, a síntese de tudo o quanto se pode imaginar sobre a liberdade – não a liberdade natural e primitiva imaginada pelos filósofos do iluminismo, que mais se identificava com os instintos desenfreados e tendentes a um constante estado de guerra, mas a liberdade com um sentido, com uma ordem, delimitada pelo bem-estar social e por aqueles valores que se tornaram, pelo consenso, irrenunciáveis. Não se trata do direito de liberdade de tudo, mas da liberdade para a auto-realização, com respeito à dignidade da pessoa humana. Ou seja, a liberdade não poderá chegar aos extremos de vulnerar certos bens jurídicos, como a vida, a honra, a liberdade física ou o patrimônio.


4. Constituição e Direito Penal

Os referenciais da Lei Fundamental para a (re)definição do direito penal vão, como visto, muito para além dos direitos expressamente nela contidos. A nós nos parece, acompanhando a lição de Figueiredo Dias, que o legislador penal deverá gizar-se pelos elementos axiológicos e ontológicos plasmados na Lei Fundamental que, afinal, representam uma determinada realidade social. De forma que haja uma relação de congruência entre os ordenamentos jurídico-penal e jurídico-constitucional.

Uma tal situação implicará reconhecer que o direito penal evitará algumas intervenções que não condizem com a estrutura de sociedade pluralista, de índole democrática e, por isso mesmo, mais tolerante e com suas liberdades potencializadas. Omitir-se-á de curar daqueles fenômenos referidos à moral, a ideologias políticas e religiosas e do âmbito pessoal estritamente interno. A atuação penal será exigida ali, naquelas zonas, onde os conflitos sociais não podem ser resolvidos por aparelhos do sistema jurídico menos gravosos e, pois, inaptos para a preservação da pax publica. Ao responder à pergunta sobre o que pode o legislador penal proibir, Roxin pondera sobre a necessidade de verificar o campo de atuação atribuído ao Estado e afirma que "Hoje, como todo poder estatal procede do povo, já não se pode ver sua função [do direito penal] na realização de fins divinos ou transcendentais de qualquer outro tipo". E à guisa de remate de seu raciocínio, refere que a função do direito penal "(...) limita-se antes a criar e assegurar a um grupo reunido no Estado, exterior e interiormente, as condições de uma existência que satisfaça suas necessidades vitais" [44]. É em razão disso que, numa análise mais aturada, o direito penal terá a função de promover a esfera de desenvolvimento pessoal – de todas as pessoas, de forma a preservar uma estrutura minimamente harmoniosa de sociedade – protegendo, v.g., a honra, a vida, a liberdade física e a propriedade.

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Sobre o autor
Isaac Sabbá Guimarães

promotor de Justiça em Santa Catarina, professor de Direito na UNISUL e na Escola Superior da Magistratura de Santa Catarina, mestre em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES, Isaac Sabbá. A intervenção penal para a proteção dos direitos e liberdade fundamentais:: linhas de acerto e desacerto da experiência brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 57, 1 jul. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2955. Acesso em: 5 nov. 2024.

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