Direito animal: uma breve digressão histórica

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19/06/2014 às 21:45
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6. Evolução da legislação protetiva dos animais no Brasil

Em todo o mundo, os vários ordenamentos jurídicos adotam um conjunto de instrumentos de tutela ambiental que mesclam objetivos de conservação (como a Reserva Legal, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável e a APA – Área de Proteção Ambiental) com outros, mais rígidos, de preservação (como as APPs – Áreas de Proteção Ambiental, Reservas Biológicas e Estações Ecológicas). Uns mais antropocêntricos (Florestas Nacionais, p. ex.), outros de índole claramente ecocêntrica (Estações Ecológicas ou Reservas Biológicas, p. ex.).

O Direito clássico, pós-Revolução Francesa, listava a natureza e seus componentes na categoria de coisa ou bem. O Livro II, do Código Civil francês de 1804, dedicado às “coisas e diferentes modificações da propriedade”, afirmava que coisa – em direito romano res – seria tudo o que existe na natureza. As coisas susceptíveis de apropriação seriam bens, quer estivessem ou não na propriedade atual de uma pessoa. Em contrapartida, certas coisas, tal como o ar e o mar, não poderiam, em geral serem apropriadas, pois apropriação implica ideia de propriedade. (GILISSEN, 2001, p. 633).

No Brasil do século XVI desembarcam os primeiros animais domésticos para serem utilizados na lavoura, pecuária, expedições dos bandeirantes e transportes em geral. Era muito comum o uso de carro de boi no sertão, de mulas, jumentos burros e cavalos, além da criação de pequenos animais, tais como galinhas e porcos, os quais contribuíam para o sustento da comunidade brasileira em seu nascedouro. Nesse contexto, a predominância da lógica mercantilista fazia com as Ordenações do Reino trouxessem dispositivos relacionados à proteção da flora e da fauna unicamente por questões econômicas, visando o maior lucro da coroa, e não por questões ambientais. (LEVAI, 2004, p. 25)

É nesta perspectiva de defesa dos interesses econômicos do colonizador, que surgem os primeiros dispositivos que tratam dos animais brasileiros. No ano de 1791, por interesse no desenvolvimento econômico do comércio de cavalos, o governador da Capitania de Goiás obteve Carta Régia ordenando o extermínio incondicional de mulas, burros e jumentos. (LEVAI, 2004, p. 26)

O primeiro dispositivo que realmente visava coibir os maus-tratos aos animais sobreveio após a emancipação política e, curiosamente, na mesma época em que se editavam as leis da abolição da escravatura. São Paulo foi o município pioneiro, ao inserir em seu Código de Posturas, de 06 de outubro de 1886, o seguinte dispositivo:

É proibido a todo e qualquer cocheiro, condutor de carroça, pipa d’água, etc., maltratar os animais com castigos bárbaros e imoderados. Esta disposição é igualmente aplicada aos ferradores. Os infratores sofrerão a multa de 10$, de cada vez que se der a infração.

Contudo, somente após quase três décadas foi iniciada a sistematização das normas de proteção aos animais. A primeira delas foi o Decreto nº 16.590, de 10 de setembro de 1924, que regulamentava as casas de diversões públicas, dispondo em seu artigo 5º que era vedado a concessão de licenças para “corridas de touros, garraios, novilhos, brigas de galo e canários e quaisquer outras diversões desse gênero que causem sofrimento aos animais”.

Uma década depois, o decreto n.º 24.645, de 10 de julho de 1934, do então chefe do Governo Provisório, Getúlio Vargas, estabeleceu “medidas de proteção aos animais”, tanto na esfera civil, como penal. Segundo o Decreto, os animais seriam assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros da Sociedade Protetora de Animais (art. 1º, parágrafo 3º). O Decreto definiu, ainda, condutas de “maus tratos” (art. 3º), sendo a primeira “praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal”.

O decreto nº 24.645/34, ainda hoje, funciona como parâmetro para caracterização dos maus tratos praticados contra animais. Dentre as condutas passíveis de enquadramento penal merecem destaque as de: manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz; obrigar animais a trabalhos excessivos ou superiores ás suas forças e a todo ato que resulte em sofrimento para deles obter esforços que, razoavelmente, não se lhes possam exigir senão com castigo; utilizar, em serviço, animal cego, ferido, enfermo, fraco, extenuado ou desferrado, sendo que este último caso somente se aplica a localidade com ruas calçadas; açoitar, golpear ou castigar por qualquer forma um animal caído sob o veiculo ou com ele, devendo o condutor desprendê-lo do tiro para levantar-se; fazer viajar um animal a pé, mais de 10 quilômetros, sem lhe dar descanso, ou trabalhar mais de 6 horas contínuas sem lhe dar água e alimento; conservar animais embarcados por mais de 12 horas, sem água e alimento, devendo as empresas de transportes providenciar, saibro as necessárias modificações no seu material, dentro de 12 meses a partir da publicação desta lei; e realizar ou promover lutas entre animais da mesma espécie ou de espécie diferente, touradas e simulacros de touradas, ainda mesmo em lugar privado.

A Lei de Proteção à Fauna, lei nº 5.197/67, que veio substituir o Código de Caça, lei nº 5.894/43, transformou a caça profissional em crime. Também a pesca, antes disciplinada pelo Decreto nº 794/38, passou a ser disciplinada pelo conhecido Código de Pesca, Decreto nº 221/67 que, juntamente com as alterações formuladas pela Lei nº 7.679/88, impôs restrições à pesca predatória.

A lei nº 6.638/79, por sua vez, estabeleceu normas para a vivissecção de animais e a Lei nº 7.173/83, regula o funcionamento de jardins zoológicos. Enquanto a Lei nº 7.643/87 proibiu a pesca e molestamento de baleias, golfinhos e botos, apenando com reclusão de 2 a 5 anos quem descumprisse a determinação.

A proteção aos animais ganhou status constitucional em 1988, quando a chamada Constituição Cidadão estabeleceu, em seu art. 225, § 1º, inciso VII, a proteção da fauna, com a finalidade de evitar a extinção das espécies e reforçou a proibição de crueldade contra os animais, assim dispondo: “Incumbe ao Poder Público proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.

Há quem veja uma grande evolução no novo tratamento dado pela constituição ao meio ambiente. Para Benjamin (2001, p. 150), por exemplo:

(...) em melhor sintonia com o pensamento contemporâneo e o estado do conhecimento científico, baseada na valorização não apenas dos fragmentos ou elementos da natureza, mas do todo e de suas relações recíprocas; um todo que deve ser “ecologicamente equilibrado”, visto, por um lado, como “essencial à sadia qualidade de vida”, e, por outro, como “bem de uso comum do povo”. Numa palavra, o legislador não só autonomizou o meio ambiente, como ainda o descoisificou, atribuindo-lhe sentido relacional, de caráter ecossistêmico e feição intangível. Um avanço verdadeiramente extraordinário.

Com objetivo de regular o direito genericamente previsto pela Constituição Federal de 1988, a Lei nº 9.605/98, Lei dos Crimes Ambientais, passou a considerar crime a conduta de crueldade para com animais, fazendo do Brasil um dos países de legislação ambiental mais avançada do mundo (LEVAI, 2004, p. 32). É interessante notar que a Lei dos Crimes Ambientais não faz distinção entre os animais, criminalizando condutas que atentem contra a fauna em geral, seja silvestre, doméstica ou domesticada, incluindo no seu âmbito de incidência todos os animas que estejam em território nacional.

A generalidade adotada pela Lei nº 9.605/98 é compatível com o amplo conceito de fauna, entendida como “o conjunto de espécies animais de um determinado país ou região” (MACHADO, 1991, p. 398), sem fazer distinção, portanto, entre aves, répteis, mamíferos etc., considerando animais “todos os seres vivos multicelulares, heterotróficos e dotados de movimento” (LEVAI, 2004, p. 33).

Como se depreende da sistemática adotada pela Lei dos Crimes Ambientais, a fauna em geral é tutelada pelo ordenamento jurídico brasileiro, independentemente de sua pressuposta “importância” para o ecossistema, não fazendo diferença entre os animais pertencentes às faunas silvestres, domésticas ou domesticadas. Entende-se por fauna silvestre os animais pertencentes às espécies nativa, migratórias, aquáticas ou terrestres, que tenham seu ciclo de vida ocorrendo nos limites do território brasileiro. Já a fauna doméstica diz respeito às espécies que passam a ter características com estreita dependência da espécie humana, como o cachorro e gato, enquanto a fauna domesticada se compõe de animais silvestres que perderam seu lugar na natureza e passaram a conviver pacificamente com o homem, dependendo dele para sua sobrevivência, a exemplo dos animais de circos e zoológicos (DIAS, 2000, p. 104).

Por muito tempo a defesa ao meio ambiente se resumia a alegações que apenas a fauna silvestre possuiria relevância ambiental, discriminando-se, por muito tempo, a defesa dos animais domésticos. Em última análise, a defesa da fauna silvestre buscava proteger o equilíbrio do meio ambiente e a própria sobrevivência humana, não gerando grandes questionamentos acerca de quem seria o sujeito de direito da norma ambiental, o próprio homem.

Com a vedação aos maus-tratos contra os animais, a questão torna-se mais complexa, ficando difícil a defesa de que a proteção se dá em favor de interesses humanos. Neste contexto, como continuar defendendo que em última instancia seria o ser humano o sujeito de direito da norma ambiental, quando a lei obriga uma conduta ou não conduta sua para com um animal, levando a decisão para os tribunais?

A resposta a tal questionamento se configura como um trabalho hercúleo, pois esbarra nos conceitos clássicos de sujeito de direito, tão enraizados na dogmática nacional, mas que nos parece anacrônico para lidar com situações altamente complexas como a do reconhecimento de direito subjetivo aos animais.


Conclusão

O presente artigo trouxe um breve panorama de algumas das principais teorias a respeito do direito animal, desde a cultura cosmocêntrica grega, passando pelo antropocentrismo consagrado pelos socráticos, confirmado pela Escolástica e levado ao seu extremo pelo movimento renascentista.

Contudo, alguns nomes encaparam as primeiras defesas dos direitos dos animais, dentre eles: Voltaire, Rousseau, Leonardo da Vinci, José do Patrocínio, Osvaldo Orico e Olavo Bilac, o que possibilitaria uma evolução semântica no contexto do direito animal, causando, inclusive, uma “irritação” do sistema política, que responde através da produção das legislações protetivas do direito animal.

Por fim, descrevemos a evolução da legislação em proteção aos animais no ordenamento jurídico brasileiro.


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Notas

1 “O sentido é, então, um produto das operações que o usam e não uma qualidade do mundo devida a uma criação, fundação ou origem”. (LUHMANN, 2007, p. 27-28). Sobre os conceitos de Comunicação, Sentido e Evolução Semântica: NIKLAS, LUHMANN. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 22. e ss.

2 Autopoiesis é um termo de origem biológica, criado pelos chilenos Maturana e Varela, para designar a célula como algo “auto-criado” (LUHMANN, 1992, p. 205). Enquanto Maturana e Varela restringem o conceito da autopoiesis a sistemas vivos, Luhmann o amplia para todos os sistemas em que se pode observar um modo de operação específico e exclusivo, que são, na sua opinião, os sistemas sociais e os sistemas psíquicos. As operações básicas dos sistemas sociais são comunicações e as operações básicas dos sistemas psíquicos são pensamentos. (LUHMANN, 1998, p. 31-32)

Sobre a autora
Chiara Ramos

Doutoranda em ciências jurídico-políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Universidade de Roma - La Sapienza. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco; Procuradora Federal, em afastamento das atividades para estudo no exterior. Professora de Direito Constitucional e Direito Administrativo.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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