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Educação e advocacia no terceiro milênio

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01/10/1999 às 00:00
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11. A formação sócio-política do advogado

A Portaria MEC nº 1.886/94 estabeleceu que, ao lado da formação técnico-profissional e da formação prática, os cursos jurídicos devem assegurar ao aluno uma formação sócio-política ou fundamental. Pode-se denominá-la formação humanística, segundo expressão que esteve em voga durante muito tempo. Além das matérias profissionalizantes, em que se desdobra a dogmática jurídica, os cursos devem propiciar sólida fundamentação interdisciplinar, que permita ao aluno situar-se como cidadão e pessoa humana, na sociedade em mudanças, e melhor compreender as transformações históricas, políticas, ideológicas e econômicas.

Recupera-se um imprescindível terreno da aprendizagem do bacharel em direito, que esteve sob cerco e suspeita durante o regime militar. Somente assim é possível capacitar-lhe a desenvolver o raciocínio e a reflexão crítica sobre o direito existente, como agente de transformação ou para melhor compreender as mudanças efetuadas. Para se conhecer o direito existente não é necessário um curso acadêmico; basta uma formação técnica. O direito positivo muda, mas os princípios ficam. É necessário alçar-se aos princípios, às categorias científicas, às teorias gerais, aos dados de outras ciências e ramos do conhecimento, particularmente aqueles que têm a pessoa humana e as relações intersubjetivas como objeto.

Daí a importância da filosofia (inclusive da ética), da economia, da sociologia, da ciência política, da teoria jurídica, que foi ressaltada nas novas diretrizes curriculares dos cursos jurídicos, além da história, da antropologia e tantos outros saberes. Somente assim, pode ser superado o exegetismo superficial e acrítico, que é o maior responsável pela pobreza acadêmica, pelo declínio dos cursos jurídicos e pela desqualificação dos profissionais da advocacia.

A pesquisa da OAB demonstrou que 62% dos entrevistados concordam que a formação sócio-política, e não apenas dogmática, seja necessária.

Por tais razões, a Comissão de Direito do Exame Nacional dos Cursos delineou o perfil do graduando do curso jurídico, aprovado pela Portaria MEC nº 526, de 09 de abril de 1997, e que serve como subsídio para o perfil do profissional (notadamente o advogado), que se pretende alcançar como meta:

a) formação humanística, técnico-jurídica e prática, indispensável à adequada compreensão interdisciplinar do fenômeno jurídico e das transformações sociais;

b) senso ético-profissional, associado à responsabilidade social, com a compreensão da causalidade e finalidade das normas jurídicas e da busca constante da libertação do homem e do aprimoramento da sociedade;

c) capacidade de apreensão, transmissão crítica e produção criativa do direito, aliada ao raciocínio lógico e consciência da necessidade de permanente atualização;

d) capacidade de equacionar problemas e buscar soluções harmônicas com as exigências sociais;

e) capacidade de desenvolver formas extrajudiciais de prevenção e solução de conflitos individuais e coletivos;

f) visão atualizada do mundo e, em particular, consciência dos problemas nacionais.


12. À guisa de conclusão

Projetando as transformações atuais ao início do III Milênio, tem-se um mundo vivendo uma revolução tecnológica, com profundas mudanças culturais e de comportamentos, equiparáveis aos efeitos da revolução industrial do Século XIX, a emergência de conflitos novos, a afirmação de novos sujeitos coletivos e a mutabilidade incontrolável dos direitos. A estabilidade social, tão cara ao princípio tradicional da segurança jurídica, é quase uma quimera.

Portanto, o profissional da advocacia não pode mais conter-se no modelo de especialização, para o que tendia o ensino jurídico das últimas décadas. Exige-se um profissional versátil, de formação humanista e teórica sólida, apto a entender as mudanças sociais, políticas e econômicas, para o que o estrito conhecimento do direito positivo é insuficiente.

A formação interdisciplinar é imprescindível. O conhecimento sai cada vez mais de seus casulos epstemológicos e entrelaça-se com o que se produz em outros campos. Sacando exemplos, o advogado de família não pode desconhecer o que a psicanálise, a antropologia, as ciências biológicas, a bioética e a engenharia genética têm avançado em determinados aspectos das relações familiares. O advogado de empresa vê-se diante da superação dos direitos internos, ante o crescimento dos processos de integração das nações, levando-o a compreender melhor a política internacional e o comportamento feérico da economia. Para o penalista, não basta a medicina legal, porque vê-se diante da crise penitenciária, das discussões sobre o direito penal mínimo, o que o leva à necessidade de compreensão mais ampla da sociologia criminal ou da psicologia criminal.

Em todo o mundo, o Estado esgotou sua capacidade de responder às demandas crescentes de acesso à justiça. O modelos tradicionais de processo e organização judiciais são inadequados ou insuficientes. A maioria dos conflitos são resolvidos fora da administração oficial de justiça, em grande parte porque os modelos tradicionais não se adaptaram às mudanças. Os cursos jurídicos têm forte parcela de culpa, pois formam para o litígio judicial e atribuem importância desproporcional aos processos e procedimentos.

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A deformação profissional levou à sobrevalorização da forma em detrimento do direito material. O processo tornou-se um fim em si mesmo, um fetiche. Porém, o cidadão quer que seu direito seja assegurado pela Justiça; não tem qualquer interesse nas questiúnculas processuais. Felizmente, a reação começou a acontecer, em virtude do alerta de processualistas mais lúcidos que têm afirmado o que pareceria tautológico: o processo e o direito processual são instrumentos de realização do direito material. A atração pelo como fazer, ao invés do que é o direito, é sintoma de formação e atuação meramente técnicas, o que reduz a importância profissional do advogado. Talvez não haja outro país onde o formalismo processual tenha assumido papel tão hegemônico no afazer dos operadores do direito. Urge a retomada dos estudos de direito material com a reforma em profundidade dos processos e procedimentos, para que se tornem simples, desburocratizados e eficazes, realizando o valor maior do acesso à justiça.


NOTAS

          1. A criação da OAB deu-se de modo furtivo, pela inserção do artigo 17 no Decreto nº 19.408 de 18 de novembro de 1930, do Governo Provisório. O Decreto tinha por finalidade a reorganização da Corte de Apelação do Distrito Federal.

          2. De 1827 a 1960 foram autorizados 49 cursos jurídicos. Na década de sessenta, exatos 49 novos cursos foram criados. Em meado de 1997 já se atingira o número de 260 cursos, com oferta anual de quase 50.000 vagas. Enquanto isso, nos Estados Unidos havia 179 cursos jurídicos credenciados pela American Bar Association.

          3. Cf. Paulo Luiz Netto LÔBO, Condições Gerais dos Contratos e Cláusulas Abusivas, São Paulo, Ed. Saraiva, 1991.

          4. Sobre o descompasso entre a realidade econômica e o que se ensina nas escolas de direito, cf. Dieter HART, Un Caso Ejemplar: la Jurisprudencia sobre las Condiciones Generales del Contrato. In La Formación del Jurista, Pietro Barcellona et al., trad. Carlos Lasate, Madrid, Ed. Civitas, 1988, p. 114-55.

          5. 40% tinham computador apenas em seu escritório; 35% tinham computador em casa e no escritório; 9% tinham computador apenas em casa.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela USP. Professor Emérito da UFAL. Foi Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. Membro fundador do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Educação e advocacia no terceiro milênio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 35, 1 out. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/297. Acesso em: 26 abr. 2024.

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