Sumário: Introdução. Breves notas acerca da evolução do estado e do direito constitucional. O direito processual civil no estado democrático de direito. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O Estado de natureza Liberal caminhou junto com um Direito também de cunho liberal, em que os direitos de primeira dimensão assumiam papel central, como área de não-atuação estatal. Estado minimalista, notadamente liberalista, em que o comando laissez faire fundamentava seu absenteísmo.
O advento de transformações, após o império de regimes totalitários e de grandes guerras mundiais, fez com que as necessidades sociais adquirissem relevância tal que o modelo de Estado e de Direito passou a apresentar nota de promoção de direitos, agora de segunda dimensão. Impulsionados por sua emergência, os direitos de caráter positivo reclamavam concretização do Estado, que deixou sua face minimalista para assumir natureza promovedora.
A crise do Estado e do Direito Sociais impôs, em outra etapa histórica, a ascensão de classe de direitos de terceira dimensão, direitos não mais respeitantes apenas ao indivíduo singularmente, tampouco apenas a determinadas prestações positivas, senão a direitos e interesses transindividuais, coletivos, difusos e individuais homogêneos. Emerge, nessa quadra, o Estado Democrático de Direito, cujo compromisso é o de promover a transformação das estruturas sociais, mediante a concretização de direitos fundamentais-sociais. Além do plus democrático como fator legitimador, esse ‘novo Estado’ exsurge no período pós-guerra reclamando a emancipação do Direito com a (re)inclusão de aspectos valorativos tanto em sua interpretação como em sua efetivação.
Ocorre, todavia, que, após o transcurso de alguns – muitos, na verdade – anos do estabelecimento da República Federativa do Brasil como um Estado Democrático de Direito, grande parte do ordenamento jurídico – em especial, aqui, o processual civil – não se apercebeu das implicações e exigências impostas por tal modelo.
O “legislador” processual civil apenas sussurrou em resposta aos gritos das demandas de uma sociedade complexa, mutada e transmudada por novas relações exsurgentes de um novo milênio. Um sussurro que mal pode ser detectado foi a resposta aos imperativos impostos pelo Estado Democrático de Direito e pela carga axiológica já indissociável do Direito.
O que se pretende denunciar é que o processo civil brasileiro ainda continua arraigado em suas origens liberais-individualistas, alheio às necessidades emergentes de uma teia social muito mais complexa do que aquela para a qual foi idealizado, ignorando, assim, o compromisso desse novo modelo de Estado, que é Democrático de Direito e ético, e não – apenas – Social ou Liberal.
2. BREVES NOTAS ACERCA DA EVOLUÇÃO DO ESTADO E DO DIREITO CONSTITUCIONAL
O desenvolvimento do Direito encontra-se estreitamente ligado à evolução do Estado, de modo que não se pode visualizar um fenômeno sem tomar em conta o outro.
A primeira forma de Estado Moderno foi o Absolutista, organização que centralizava o poder no soberano, uma vez que seu estabelecimento deu-se desacompanhado de Constituições. Elaine Harzheim Macedo muito bem elucida a questão:
o Estado moderno, que nasceu absolutista, mesmo que servido por algumas leis fundamentais, ainda não podia ser visto como um Estado constitucional, enquanto organização política e social submetida a um ordenamento prévio, senão constituidor do próprio Estado e tido como sua lei maior, à qual em especial também os governantes se submetem. Sua primeira feição, marcada pela ausência de formalização e centralização do poder, teve o mister de consagrar a fixação do território, unificando o povo e criando instrumentos e instituições capazes de assegurar a centralização do poder.[1] (grifos da autora)
Foi apenas com o Iluminismo que sobreveio a elaboração de Constituições, de Estados constitucionais, portanto. Segundo José Joaquim Gomes Canotilho: “a ideia de lei fundamental é inseparável da razão iluminista que acreditava ser possível, através de um documento escrito (produto da razão), organizar o mundo e realizar um projecto de conformação política.” [2]
Assim, em uma configuração inicial, a partir de um Estado Liberal, o Direito, também de cunho liberal – produto de um Estado absenteísta – privilegiava os direitos e liberdades individuais, criando, assim, um espaço de proteção dos indivíduos contra o Estado. Espaço de não-atuação estatal, proporcionava a auto-regulação dos indivíduos, que encontrava limite na esfera de incolumidade alheia.
Liberdade e propriedade são exemplos desses direitos negativos, campo de não ingerência, de inércia estatal, representando a primeira dimensão[3] dos direitos.
Ao Poder Legislativo bastava a criação de normas que garantissem um espaço de não atuação. Possuía liberdade de conformação, não encontrando muitos limites em sua tarefa, característica típica do Positivismo Jurídico. Separação entre Direito e Moral, entre política e economia, e entre Estado e sociedade civil, também constituem traços marcantes dessa fase Liberal.
Mais uma vez, nas palavras da professora gaúcha Elaine Harzheim Macedo:
Nesse sentido, pode-se afirmar que o liberalismo propagava o não-Estado, pois importante era o indivíduo, representando ou devendo representar muito mais um papel negativo, de não-intervenção, pena de enfraquecimento das independências e iniciativas individuais. Seu perfil era do Estado mínimo.[4]
E continua:
Assim, o modelo constitucional do Estado liberal, responsável pela grande guinada em relação ao Estado absolutista que o antecedeu, goza de conteúdo que tem como referencial o Estado propriamente dito; com arquétipo liberal, caracterizando-se pela subsidiariedade (a intervenção ocorre quando a sociedade se vê impossibilitada de compor o conflito); intervenção mínima, onde ganha relevância o Legislativo, com a imposição de normas de conduta que, em princípio, deverão ser suficientes para regrar a vida em sociedade, visando basicamente à organização do Estado; a neutralidade, resistindo a maiores intervenções em especial nas questões econômico-sociais, abstendo-se de mudanças no status quo ante; pacto social objetivando racionalizar e limitar o poder; Constituição estruturada de forma negativa, isto é, estabelecendo limites ao poder estatal e consagrando liberdades e direitos ao cidadão passíveis de se oporem ao Estado, a assegurar a propriedade privada, a economia de mercado, valores baseados no individualismo, etc. Em suma, a racionalização do Estado surgiu como alternativa à justificação patrimonial ou religiosa do poder, que sustentou os governos absolutistas que antecederam as revoluções liberais, dando vazão ao governo da Razão, cuja principal fonte era o poder Legislativo, pois ao “governo dos homens” impunha-se o “governo das leis”. (grifos da autora)
Em etapa subsequente, forçado por um quadro em que se deram grandes guerras mundiais, além de regimes autoritários, o Direito passa a exercer função positiva, acompanhado por um Estado que, além de um caráter negativo em face dos direitos e liberdades individuais, assume postura de promoção de novos direitos, que, nessa quadra, representam anseio por ações sociais. Nas palavras de Mauro Cappelletti e Bryant Garth:
Nos estados liberais ‘burgueses’ dos séculos dezoito e dezenove, os procedimentos adotados para solução dos litígios civis refletiam a filosofia essencialmente individualista dos direitos, então vigorante. (...) Esses direitos eram considerados anteriores ao Estado; sua preservação exigia apenas que o Estado não permitisse que eles fossem infringidos por outros. O Estado, portanto, permanecia passivo (...) A partir do momento em que as ações e relacionamentos assumiram, cada vez mais, caráter mais coletivo que individual, as sociedades modernas necessariamente deixaram para trás a visão individualista dos direitos, refletida nas ‘declarações de direitos’, típicas dos séculos dezoito e dezenove. O movimento faz-se no sentido de reconhecer os direitos e deveres sociais dos governos, comunidades, associações, indivíduos. (...) Tornou-se lugar comum observar que a atuação positiva do Estado é necessária para assegurar o gozo de todos esses direitos sociais básicos. [5]
O mote doutrinário, tanto jurídico como sociológico, era o marcado pelo cientificismo que restringia as interdisciplinariedades. Nesse aspecto, todos os fatores morais, éticos, valorativos e até mesmo de interpretação eram abstraídos e subtraídos como se fosse possível ao Direito olvidar de reclamos de efetivação que acompanhavam as metamorfoses e aumento das complexidades sociais.
As transformações e evolução sociais reclamam por um modelo de Direito e Estado que responda às demandas de direitos de natureza positiva, tais como direitos econômicos, sociais, culturais, fundamentados em parâmetros de igualdade. Segundo Norberto Bobbio:
ocorreu a passagem dos direitos de liberdade - das chamadas liberdades negativas, de religião, de opinião, de imprensa, etc. - para os direitos políticos e sociais, que requerem uma intervenção direta do Estado. (…) passagem da consideração do indivíduo humano uti singulus (…) para sujeitos diferentes do indivíduo, como a família, as minorias étnicas e religiosas, toda a humanidade em seu conjunto (...) até mesmo para sujeitos diferentes dos homens, como os animais.[6] (p. 63-4)
Já não basta apenas o respeito aos direitos e liberdades individuais, senão que se faz imprescindível a concretização desses direitos sociais, conhecidos como de segunda dimensão.
O centro de atuação estatal passa do Poder Legislativo, e sua tarefa de criação de normas de proteção em sentido negativo, ao Poder Executivo, exigindo-se deste não apenas o respeito às liberdades individuais, mas, sim, a materialização de comandos voltados à promoção dos desígnios de igualdade material-social.
Com Jose Luis Bolzan de Morais:
no limiar do século XX (...) nova idéia de Estado – em muito ainda próxima do perfil liberal – o qual passará a ter funções positivas, deixando de lado o seu feitio minimalista atrelado às seguranças interna e externa. O papel do Estado passa, então, a regulador e promotor do bem-estar social. É a idéia do welfare state que se comporá efetivamente no pós-45, onde o aspecto promocional passa a integrar definitivamente o vocabulário jurídico-político do século XX. [7]
O decorrer do século XX revela, entretanto, a crise da era dos direitos sociais, denunciados e desacreditados em razão de sua inefetividade. Daí, volta-se o olhar a direitos pautados por novos ideais. Não só novos ideais. Novas exigências de cunho transcendental aos elementos subsuntivos do Direito.
Os direitos de terceira dimensão exsurgem de alvitres de solidariedade e fraternidade. São direitos de titularidade transindividual, coletivos e difusos, relacionados ao desenvolvimento, qualidade de vida, meio ambiente, mercado consumidor etc. Nas palavras de José Joaquim Gomes Canotilho:
A partir da década de 60, começou a desenhar-se uma nova categoria de direitos humanos vulgarmente chamados direitos da terceira geração. Nesta perspectiva, os direitos do homem reconduzir-se-iam a três categorias fundamentais: os direitos de liberdade, os direitos de prestação (igualdade) e os direitos de solidariedade.[8] (grifos no original)
Nesse passo, a tensão entre os poderes estatais passa a residir no Poder Judiciário, mormente na jurisdição constitucional, não havendo mais plena liberdade de conformação do Poder Legislativo (Estado Liberal), limitado que se encontra em sua tarefa pelos ditames constitucionais. Ao Executivo tampouco é suficiente uma atuação de respeito às liberdades individuais e promoção de ações sociais (Estado Social). Está-se diante de um novo modelo: Estado Democrático de Direito.
É referida, ainda, a existência de uma quarta e de uma quinta dimensões de direitos, representados, respectivamente, por empreendimentos de biotecnologia, bioética, engenharia genética, de um lado, e comunicação virtual, internet, de outro.
Em sede nacional, a Constituição Federal de 1988 inscreve em seu dispositivo de abertura: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (...)”.
O advento da Carta de 1988 estabelece novo modelo de Estado; não mais – apenas – liberal, tampouco social, mas, sim, Estado Democrático de Direito. O que se extrai de tal expressão é a superação das duas primitivas formas de Estado (e Direito), com a superveniência de novos lindes e novas expectativas relativamente aos modelos pretéritos.
Consoante as palavras de Lenio Streck:
se no paradigma liberal o Direito tinha a função de meramente ordenadora, estando na legislação o ponto de tensão nas relações entre Estado-Sociedade, no estado Social sua função passa a ser promovedora, estando apontadas as baterias para o Poder Executivo, pela exata razão da necessidade da realização das políticas do Welfare State. Já no Estado Democrático de Direito, fórmula constitucionalizada nos textos magnos das principais democracias, a função do Direito passa a ser transformadora, onde o pólo de tensão (...) passa para o Poder Judiciário ou os Tribunais Constitucionais.[9]
Em razão mesmo da crise de inefetividade da feição Social[10], não mais é suficiente a proteção da esfera individual dos cidadãos em face do Estado, tampouco a promoção de seus direitos sociais é medida satisfatória. O Estado Democrático de Direito, sem abdicar as dimensões individuais e sociais dos direitos, assume papel compromissário, dirigente e, principalmente, transformador diante de uma sociedade em que se impõe a iminência de direitos transindividuais, de direitos fundamentais-sociais.
Valho-me novamente da lição do professor gaúcho:
Mais do que procedimentos, a Constituição instituidora do Estado Democrático de Direito apresenta, a partir de uma revolução copernicana do direito constitucional, a determinação da realização substantiva dos direitos sociais, de cidadania e aqueles relacionados diretamente à terceira dimensão de direitos. Para tanto, o Direito assume uma nova feição: a de transformação das estruturas da sociedade.[11] (grifos no original)
O Estado Democrático de Direito encontra-se assim assentado em dois pilares: democracia e direitos fundamentais-sociais, ambos interligados e dependentes, como condição de possibilidade recíproca. Isso, porque sem democracia, não há possibilidade de concretização dos direitos fundamentais-sociais, os quais, em sociedade/Estado onde inexistente democracia, também não existiriam.
Não se pode deixar de referir a importância também exercida pelos direitos humanos, muitos dos quais positivados na Constituição Federal como direitos fundamentais[12], cujo núcleo imutável corresponde à dignidade da pessoa humana. Representam, inclusive, um termômetro dos níveis de democracia dos ordenamentos jurídicos, diretamente proporcional ao respeito e concretização que lhes proporcionam[13].
A respeito da importância de tais direitos, mormente no Estado constitucional contemporâneo, Elaine Harzheim Macedo:
também no campo dos direitos humanos se faz necessário repensar o conceito de nação independente, autônoma e soberana, em cujos limites territoriais nem a Igreja com seu caráter de universalidade tem o poder de intervir. Ganham, aqui, relevância as Cortes Internacionais de direitos humanos, cuja existência passou a ser defendida pelos arautos da liberdade principalmente a partir da Segunda Grande Guerra, uma vez que de nada adianta receber a humanidade uma declaração de direitos supranacionais, se desacompanhada de um adequado processo jurisdicional de tutela desses direitos, o que, por sua vez, reclama um eficiente Tribunal que os aplique.[14]
Nesse viés, o Estado, cuja postura inicial era de “inimigo” dos direitos individuais, passa a assumir papel promovedor dos direitos fundamentais-sociais.
E os próprios moldes conteudísticos de direitos outrora já consagrados, têm sua estrutura transmudada, como bem aponta Vicente de Paulo Barreto:
Processa-se, assim, uma revolução copernicana no paradigma jurídico contemporâneo no que se refere ao conteúdo dos próprios direitos fundamentais clássicos. Esses direitos, consagrados e garantidos no estado liberal, ao perderem o seu caráter meramente formal, que visava a regulação de conflitos entre proprietários, ganham, no contexto do estado democrático de direito, novos conteúdos e materializam-se sob a forma de liberdades e igualdades reais.[15]
Da evolução acima traçada, facilmente se pode extrair a conclusão de que os fenômenos sociais, as transformações por que passaram as sociedades, são combustíveis para o desenvolvimento do Estado e do Direito, umbilicalmente vinculados.
As tensões sociais, econômicas, políticas, sempre exerceram ingente influência no modo de produção do Direito[16]. Presentemente, há que se atentar em especial aos influxos neoliberais, que tendem à fragilização da força normativa da Constituição, com o esvaziamento de seu conteúdo, tão caramente alcançado. É o que afirma, também, Lenio Streck:
a Constituição, como documento jurídico-político, está submersa em um jogo de tensões e poderes. Assim, o que se tem vislumbrado na prática é o reforço de uma determinada postura tendente ao esvaziamento da substancialidade dos textos constitucionais, na medida em que o prevalecimento da lógica mercantil e a já mencionada contaminação de todas as esferas da vida social pelos imperativos categóricos do sistema econômico, a concepção de uma ordem constitucional subordinada a um padrão político e moral se esvanece. [17] (grifos no original)
Importa verificar, em um segundo momento, os reflexos do advento de um Estado Democrático de Direito no campo do direito processual civil.
3. O DIREITO PROCESSUAL CIVIL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O desenvolvimento do Estado e do Direito, como já apontado, não se encontra desindexado das realidades impostas pela sociedade. As transformações e necessidades por que passaram as sociedades no decorrer dos tempos exerceram forte influência nas sucessivas configurações do Direito (e Estado). E no que diz respeito ao Estado Democrático de Direito, o quadro não foi diferente.
Ímpetos e demandas, dos mais diversos matizes, formam o substrato social que permeia esse – novo – modelo político-jurídico. Paradigma que acompanha uma terceira – mas não exclusiva – dimensão de direitos, o Estado Democrático de Direito deve contas não apenas à liberdade individual dos cidadãos, tampouco apenas à promoção de ações sociais quando a grupos determinados, senão também a novas configurações decorrentes de uma complexa teia social, formada a partir de níveis não – tão, mais – lineares de relações. Presta-se, para além das atribuições tipicamente liberais e sociais, à transformação das estruturas sociais.
Os compromissos inerentes a um Estado Democrático de Direito são denunciados, também, por classes de – novos – direitos. Coletivos[18], difusos[19], individuais homogêneos[20], enfim, direitos transindividuais, emergem de uma sociedade de relações complexas, sedentos por proteção e concretização.
O Direito, como fenômeno social[21], não pode assumir papel alheio às mutações sociais, e conseqüentes necessidades impostas por essas transformações. Que respostas, então, a nova matriz de produção/aplicação do direito oferece a esse quadro de demandas sociais, é o questionamento/problema que se impõe.
O que se pode constatar quanto ao processo civil, é que o – mítico – “legislador brasileiro” não se apercebeu (ou não quis se aperceber) de tais reclames sociais, tampouco da nova configuração que respeita ao paradigma de Estado e de Direito inscritos na Constituição Federal de 1988.
O Código Processual Civil brasileiro, legislação editada em 1973, encontra-se estreitamente vinculado aos ideais liberais, em que o individualismo (e os direitos individuais) é o carro-chefe da produção legiferante. Nas palavras de Lenio Streck:
A crise do modelo (modo de produção de Direito) se instala justamente porque a dogmática jurídica, em plena sociedade trans-moderna e repleta de conflitos transindividuais, continua trabalhando com a perspectiva de um Direito cunhado para enfrentar conflitos interindividuais, bem nítidos em nossos Códigos (...). Esta é a crise do modelo (ou modo de produção) de Direito, dominante nas práticas jurídicas de nossos tribunais, fóruns e na doutrina.[22] (grifos no original)
Voltado para a resolução de conflitos individuais lineares, deixou ao léu situações em que a contenda não envolva apenas dois – ou mais, mas não uma coletividade, determinada ou não de – sujeitos. Mais uma vez, a constatação de Lenio Streck:
no Brasil predomina/prevalece (ainda) o modo de produção de Direito instituído/forjado para resolver disputas interindividuais, ou, como se pode perceber nos manuais de Direito, disputas entre Caio e Tício ou onde Caio é o agente/autor e Tício (ou Mévio), o réu/vítima.[23] (grifos no original)
O processo civil brasileiro foi idealizado sob os auspícios de uma fase histórica muito diversa da atual; não foi cogitada a existência de litígios em que pudessem figurar uma multiplicidade indeterminada de sujeitos, em um espaço que talvez não correspondesse a um hectare, alqueire, propriedade rural ou imóvel urbano, mas, sim, um espaço cibernético.[24]
Sem meias-palavras, Adalberto Narciso Hommerding afirma: “a situação do processo civil, na ‘era das massas’, é precária. Idealizado para uma sociedade cuja historicidade era outra, o Direito Processual não resistiu à sua finitude.”[25] Ovídio A. Baptista da Silva, no mesmo sentido, asseverou que para o direito processual civil a história parou no século XIX: “Daí porque não devemos depositar demasiada esperança na ‘Reforma do Poder Judiciário’, se não estivermos dispostos a repensar os fundamentos do sistema, superando os ideais do Iluminismo.” [26] (grifou-se)
São parcas as legislações especiais que possibilitam a defesa dos direitos transindividuais: pode-se exemplificar a Lei da Ação Civil Pública, de 1985; Lei nº 7.853, de 1989 (tutela de direitos e interesses coletivos e difusos de portadores de deficiências); Lei nº 7.913, de 1989 (danos a investidores do mercado de valores mobiliários); Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990; Código de Defesa do Consumidor, de 1990; Lei nº 8.429, de 1992 (improbidade administrativa); Lei nº 8.884, de 1994 (antitruste); Lei 8.974, de 1995 (proteção à vida e à saúde do homem, dos animais e plantas, e do meio ambiente); e Estatuto do Idoso, de 2003.[27] A Constituição Federal também previu o mandado de segurança coletivo, bem como o mandado de injunção (individual e coletivo).
Constatação que vem sendo reiteradamente denunciada, a legislação processual civil, como se vê, não apenas o Código de Processo Civil, não responde satisfatoriamente às necessidades impostas pelos direitos de terceira dimensão. Impossível não compreender o Direito Civil e o Direito Processual Civil como ferramentas para demandar esses direitos, pautados em igualdade substancial e no princípio de dignidade que extrapolam a noção de indivíduo e mesmo de categoria. O ser humano enquanto tal reclama tais ferramentas e estas, para concretização, protestam por arcabouços valorativos.
As pretensas (e pretensiosas) reformas que se sucederam – e ainda se sucedem – no Código Processual Civil não se preocuparam efetivamente com essa questão, com a criação de condições de possibilidade para a defesa e concretização desses direitos desamparados, mas sim, por exemplo, com um – há muito apontado e defendido pela teoria quinária das ações e sentenças – sincretismo processual, e de como restringir e reorganizar o sistema recursal.
Sempre, e mais uma vez, com olhos voltados aos direitos individuais, de cunho real ou patrimonial, o “legislador” não responde aos imperativos impostos pela complexidade da sociedade, tampouco ao conteúdo compromissário do Estado Democrático de Direito.
Parece – ainda – olvidar que a Constituição Federal é o centro gravitacional ao qual todo ordenamento deve conformação. Somente há legalidade constitucional, isto é, não há que se cogitar de legalidade desconectada de constitucionalidade. Com efeito, é da Constituição Federal de 1988 a exigência ética, a dignidade da pessoa humana, os valores de humanidade nos chamados direitos que transpõem a pessoalidade ou determinação. Impende fazer e refazer uma filtragem constitucional do ordenamento jurídico, a fim de que o modo de criação/produção do Direito seja adequado ao conteúdo do locus irradiante de legitimidade, bem como às novas feições do Estado, não mais social ou liberal, mas Democrático de Direito.
A ausência de eco do Direito aos gritos sociais é revelada não apenas na omissão/deformação que macula a fonte formal de sua produção, mas se encontra arraigada também em sua aplicação. Essa – lamentável – circunstância é apontada pelo – tão saudoso – processualista Ovídio Araújo Baptista da Silva:
“Faz parte deste pressuposto ideológico a exigência, religiosamente observada pelos juristas que se prezem, de que não manchem com exemplos concretos a exposição dos resultados de sua pesquisa; ou a defesa de seus pontos de vista. O máximo que se lhes permite é que, quando se mostre indispensável a utilização de casos concretos que possam auxiliar na compreensão do que eles expõem, as hipóteses concretas sejam descritas, por exemplo, como uma compra e venda entre Tício e Caio, ou um contrato de locação ajustado entre Semprônio e Caio. (...) há cento e cinqüenta anos, ao jurista que esteja a fazer ‘ciência’, é-lhe vedado sequer pronunciar a palavra vida. A distância entre a realidade e a construção conceitual deve ser intransigentemente observada.” [28] (grifo no original)
Ao que parece, apenas Caio e Tício (e quiçá também Semprônio!) são destinatários das normas processuais civis, que apenas as relações entre eles travadas podem ser verdadeiramente jurídicas, e tão-somente elas podem adquirir condição de litígio judicial.
Direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, permanecem na periferia do ordenamento processual, alimentando-se das sobras dos banquetes servidos aos direitos individuais (simples) – mormente de caráter patrimonial e real – pelo Código Processual Civil.
Não consegue se desvencilhar, o processo civil, de uma perspectiva objetificante e reducionista, que subtrai a complexidade das relações sociais, atentando apenas aos direitos individuais. É o senso comum, teórico e prático, que se encontra preso às amarras dos ideais do Estado e do Direito de natureza liberal, obstando a devida e necessária filtragem constitucional de institutos processuais como, por exemplo, coisa julgada e intervenção de terceiros, para citar apenas alguns[29].
Essa tentativa – ou tendência –, que labora para o velamento das complexidades, acaba por trair a própria razão existencial do Direito, uma vez que exclui de seu manto situações que necessitam tratamento, proteção e concretização jurídicas. De acordo com Luis Alberto Warat: “O saber jurídico da modernidade organizou o lado masculino do imaginário do direito. Mobiliza o social negando as incertezas e o novo, impede a inscrição do direito na temporalidade.” [30]
Certo é que esse modo de produção/aplicação do Direito – se não em sentido francamente contrário – não labora na direção da plenitude dos nortes constitucionais, o que enfraquece e debilita sua força normativa, circunstância que – para dizer o mínimo – é inadmissível, pois essa postura hipócrita acarreta a fragilização da legitimidade do ordenamento processual civil.
Ausente uma conduta pautada em tal consciência, os direitos transindividuais continuarão no ostracismo jurídico, sem, no entanto, desaparecerem da esfera do fático-social.
As rédeas do modo de criação/aplicação do Direito devem ser (re)tomadas, tendo-se em mente – de uma vez por todas – que a Constituição Federal, instituidora de um Estado Democrático de Direito, é o ponto de partida e de chegada de todo ordenamento jurídico.
CONCLUSÃO
Como visto, o modelo de Estado e de Direito assumido com a Constituição Federal de 1988 não mais é Liberal ou Social (embora as características assumidas pelo Direito em tais moldes tenham sido agregadas ao novo paradigma, e não superadas), mas, sim Democrático de Direito. Estado que exige a (re)inclusão da ética seja na legiferação, seja na execução dos atos da administração, seja na jurisdição sobre esses novos direitos.
Isso implica – ou deveria! – a necessidade de uma modificação de postura em face da sociedade, cujas demandas assumem lindes diversos daqueles dos tempos passados, exatamente em razão da complexidade instalada cada vez mais no cotidiano social.
Todavia, a postura do direito processual civil é ainda alheia a tais reclames, e alheia também aos compromissos inerentes a um Estado que é Democrático de Direito.
O plus comumente agregado a esse modelo de Estado (e de Direito), em comparação aos precedentes, não foi absorvido pelo processo civil, que segue firme em suas origens liberais-individualistas.
Preocupa-se ainda com os direitos individuais (simples), de natureza real ou patrimonial, com como os tratar judicialmente, sem se dar conta de que a teia social encontra-se de tal modo complexizada que os litígios não mais dizem respeito apenas a reintegrações de posse de Caio contra Tício, relativamente a uma gleba de terras.
Emergem da sociedade interesses e direitos transindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos), os quais, ansiosos e esperançosos por proteção e concretização, continuam à margem do Código de Processo Civil. E, embora ocupem a atenção de algumas leis esparsas no ordenamento jurídico, esse espaço – visivelmente – ainda não é suficiente.
Urge a necessidade de uma filtragem constitucional das normas do processo civil brasileiro, adequando-as e remodelando-as, assim, ao novo paradigma Democrático instituído em 1988.
Além disso, há que se curar a surdez do “legislador”, para que ouça os gritos das novas demandas sociais e efetive seu labor no sentido de criar condições de possibilidade para o desenvolvimento e proteção desses interesses e direitos transindividuais, característicos de uma terceira dimensão de direitos, desvencilhando-se das correntes dos ideais liberalistas e Iluministas dos séculos passados, sobretudo das limitações positivistas.
A omissão/deformação constatada no ordenamento processual civil, que relega à periferia interesses e direitos tão relevantes no complexo social estabelecido pela atual quadra histórica, não pode resistir aos moldes de um Estado Democrático de Direito, sob pena de se esvair até mesmo sua legitimidade, e de comprometer o que a duras penas foi alcançado até os dias presentes.
REFERÊNCIAS
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[1]Jurisdição e processo: crítica histórica e perspectivas para o terceiro milênio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 126.
[2]Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1135.
[3] Utiliza-se o termo dimensão e não geração, à vista da idéia de complementaridade que se sucedeu em tal evolução. Ver em: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 54.
[4]Jurisdição e processo: crítica histórica e perspectivas para o terceiro milênio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 114.
[5]Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, trad. Ellen Gracie Northfleet, p. 09/11.
[6]A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsivier, 2004, p. 67-83.
[7]A idéia de Direito Social: O Pluralismo Jurídico de Georges Gurvitch. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 33.
[8]Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 384.
[9]Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 145.
[10] Segundo Lenio Streck (Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 85): “O Estado Democrático de Direito representa, assim, a vontade constitucional de realização do Estado Social. É um plus normativo em relação ao direito promovedor-intervencionista próprio do Estado Social de Direito. Registre-se que os direitos coletivos, transindividuais, por exemplo, surgem, no plano normativo, como conseqüência ou fazendo parte da própria crise do Estado Providência. Desse modo, se na Constituição se coloca o modo, é dizer, os instrumentos para buscar/resgatar os direitos de segunda e terceira gerações, via institutos como substituição processual, ação civil pública, mandado de segurança coletivo, mandado de injunção (individual e coletivo) e tantas outras formas, é porque no contrato social – do qual a Constituição é a explicitação – há uma confissão de que as promessas da realização da função social do Estado não foram (ainda) cumpridas.” (grifos no original)
[11]Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 86.
[12] Os direitos humanos não são constituídos pela positivação em determinado Estado Nacional. Pelo contrário, preexistem ao Direito Positivo nacional, que, com sua internalização tão-somente os reconhece (declara). Mas esse reconhecimento é imprescindível para a sua eficácia, uma vez que historicamente ressentidos de respeito e aplicação, muitas vezes, em razão da inexistência de um sistema de garantias interno (que não se confunde com os direitos, em si) para sua concretização. Assim, Narciso Leandro Xavier Baez e Vicente de Paulo Barreto (Direitos humanos e globalização. In Direitos humanos em evolução, p. 29): “... embora qualificados como supralegais [os direitos humanos], por existirem independentemente do reconhecimento jurídico dos Estados, a sua efetivação e garantia dependem da incorporação de seus valores aos ordenamentos jurídicos nacionais e internacionais, de forma a comprometer os centros de poder à sua observância e resguardo.”
[13] Nesse sentido, consultar Narciso Leandro Xavier Baez e Vicente de Paulo Barreto (Direitos humanos e globalização. In Direitos humanos em evolução, p. 29-30): “... os direitos humanos têm atuado como instrumento de influência e até mesmo de legitimação das ordens jurídicas modernas, que são avaliadas como democráticas ou não, conforme o grau de proteção e garantia que dispensam à dignidade humana.”
[14]Jurisdição e processo: crítica histórica e perspectivas para o terceiro milênio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 129.
[15]Reflexões sobre os direitos sociais. In Boletim de Ciências Económicas. Almedina, 2003, p. 7.
[16] É o que denunciava também, de forma concreta, Ovídio Araújo Baptista da Silva (Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 305): “Quando os parlamentares não estejam submetidos às impiedosas determinações do ‘mercado’ global, aquela pequena margem de autonomia política que ainda lhes poderia restar é utilizada para agradar seus eleitores e salvar o próximo mandato.”
[17]Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 73.
[18] Art. 81, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor: “interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base”.
[19] Art. 81, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor: “interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”.
[20] Art. 81, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor: “interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.”
[21] Embora dentro da temática de acesso à justiça, de extrema valia a observação de Mauro Cappelletti e Bryant Garth (Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, trad. Ellen Gracie Northfleet, p. 13): “Uma tarefa básica dos processualistas modernos é expor o impacto substantivo dos vários mecanismos de processamento de litígios. Eles precisam, conseqüentemente, ampliar sua pesquisa para mais além dos tribunais e utilizar os métodos de análise da sociologia, da política, da psicologia e da economia, e ademais, aprender através de outras culturas.”
[22]Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 83.
[23]Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 82.
[24] Em outra perspectiva, há que se dizer mais: objetificado, o Direito não responde satisfatoriamente a situações – essas, desde sempre existentes, em qualquer fase histórica – vinculadas a características inerentes ao ser humano. Nas palavras de Adalberto Narciso Hommerding (Fundamentos para uma compreensão hermenêutica do processo civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 101): “O processo é técnico. O afeto, o desejo, o amor – também o ódio, a raiva, a saudade, a melancolia –, enfim, sentimentos que existem em qualquer relação familiar, não são e não podem ser objeto da técnica. Para esse tipo de situação, o processo parece nada resolver.”
[25]Fundamentos para uma compreensão hermenêutica do processo civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 101-2.
[26]Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 318.
[27] Consultar Humberto Dalla Bernardina de Pinho (A tutela coletiva no Brasil e a sistemática dos novos direitos. http://www.humbertodalla.pro.br/arquivos/a_tutela_coletiva_e_os_novos_direitos.pdf). Não é outro o apontamento realizado por Lenio Streck (Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 311): “Daí a ocorrência de uma espécie de fusão/imbricação entre o paradigma (neo)liberal-individualista e o paradigma da filosofia da consciência, que têm um terreno fértil para se concretizarem, mormente em uma sociedade como a brasileira, em que: a) o Código Civil é proveniente de uma sociedade pré-liberal e urbana; b) o Código Penal é produto de uma sociedade que há pouco ingressara no liberalismo, voltado a uma (nova) clientela fruto da mudança da economia ocorrida a partir da revolução liberal de 1930; c) o Código Comercial é do século passado; e, d) o Código de Processo Civil, na mesma linha dos demais Códigos, estabelece mecanismo que protegem explicitamente os direitos reais em detrimento dos direitos pessoais. A (dupla) crise se instala, pois, na emergência de novos conflitos e novos mecanismos de resolução de conflitos e no papel que o Direito assume no interior de um novo modelo de Estado.” (grifos no original)
[28]Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 302.
[29] Um dos locais de (re)produção do senso comum teórico encontra-se no dogmatismo, sobre cuja superação asseverava Ovídio Araújo Baptista da Silva (Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 306-7): “A compatibilidade entre democracia e individualismo é problema crucial que deve ser tratado quando se pretende um direito processual que supere o dogmatismo, porquanto (...) o dogmatismo é expressão de um regime autoritário. É, em última análise, a expressão jurisdicional do ‘pensamento único’ neoliberal. O acesso hermenêutico às realidades jurídicas contingentes fica, conseqüentemente, vedado ao pensamento dogmático.” (grifos do autor) Mais adiante, o processualista reitera: “Devemos buscar alternativas, sem no entanto perder de vista o problema fundamental enfrentado pela jurisdição estatal. Como dissemos, o pensamento dogmático é incapaz de fornecer esse diagnóstico. Assim como se mostrará sempre disposto a realizar reformas sem antes investigar as causas que a tornem indispensáveis, também não terá remorso em sepultar o moribundo, mesmo que ele ainda tenha cura.” (p. 319)
[30]A ciência jurídica e seus dois maridos. 2. ed. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000, p. 27. A fim de aclarar o que o autor compreende por “lado masculino”, valho-me de suas palavras: “Vejo o masculino como o limite que nos aparece para viver de acordo com o potencial próprio; ter habilidades que permitam sentir-se contente; estar aberto a experiências novas; viver na temporalidade, o presente como novidade; enfrentar e superar os próprios medos e superar as insatisfações de nossa criança interior. O masculino não deixa de ser uma forma melodramática de ver a vida em branco e preto. Uma incapacidade de fertilizar o novo.” (p. 26-7)