4. Conclusão
O regime jurídico administrativo traz peculiaridades que, por vezes, exigem que a Administração Pública atue de forma exorbitante ao direito comum, como nos casos de desapropriação, exercício de poder de polícia entre outros.
Tradicionalmente, a doutrina pátria justifica a especificidade da ação administrativa na existência de um princípio implícito de supremacia do interesse público sobre o privado. O que justificaria as prerrogativas do Poder Público, quando atua no exercício de função administrativa, seria a concepção prévia, portanto anterior a qualquer avaliação de conflito de interesses, no sentido de que o interesse público sempre haveria de prevalecer sobre o privado.
Todavia, o século XX e, especialmente as últimas décadas, têm experimentado um processo contínuo de incremento da relevância do constitucionalismo, como pilar das democracias contemporâneas. Nesse contexto, em vez de ramos jurídicos estanques, todas as disciplinas jurídicas passam a ser reconduzidas a um único referencial, a Constituição. Em outras palavras, todos os ramos jurídicos retiram seu fundamento de validade e mesmo sua legitimidade da Constituição. São, por assim dizer, constitucionalizados.
Com o direito administrativo, não haveria de ser diferente. Seu fundamento também deve ser a Constituição, e não verdades evidentes por si mesmas e que dispensam comprovação (axiomas). Mais do que isso, deve buscar incessantemente a concretização dos direitos fundamentais, sejam de índole coletiva ou individual. Naturalmente, haverá situações de conflito entre os diversos interesses e direitos envolvidos. Mas a solução desses conflitos que, diga-se passagem, são inerentes ao regime democrático, não passa pela afirmação apriorística de que o interesse público prevalece sobre o privado.
Aliás, na medida em que há uma relação de complementaridade entre interesses públicos e privados, e não de exclusão, sequer faz sentido sustentar a prevalência de um sobre o outro.
A solução de tais conflitos passa sim por um esforço hermenêutico de compatibilização dos diversos interesses em jogo, todos garantidos constitucionalmente. É diante do caso concreto que o administrador, o servidor público, o próprio cidadão e todos que de alguma forma participam de uma sociedade democrática devem construir a solução, seja pela técnica de ponderação de interesses, seja mediante um juízo de integridade do ordenamento jurídico ou qualquer outro meio racional e transparente.
Portanto, o interesse público é, antes, algo a ser perseguido. É o resultado da busca pela efetivação das disposições constitucionais, e não um dado da realidade ou um conceito pronto e acabado a ser implementado pelo intérprete, aplicador ou criador do direito à custa da violação de direitos fundamentais.
REFERÊNCIAS:
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SUPREMA CORTE AMERICANA. Marbury vs. Madison [5. U.S. (I. crouch), 137 (1803)].
SUPREMA CORTE AMERICANA. Mc Cullouch vs. Maryland [17. U.S. (1819)].
TRIBUNAL FEDERAL ALEMÃO = BverfGE [7, 198 (230)]
Notas
[1] Conforme ensina Josino Neto (2003), “o leading case que marcou a definição do bloco de constitucionalidade foi a decisão do Conselho Constitucional da França, de 16 de julho de 1971”. Tendo em vista que a Constituição francesa não traz um rol de direitos fundamentais, o Conselho Constitucional acabou por conferir força normativa de hierarquia constitucional tanto ao preâmbulo quanto à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
[2] Nesse sentido, destaca-se a obra do autor intitulada Teoría de lós derechos fundamentais. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997.
[3] Tal concepção teórica é trabalhada pelo autor em diversas obras, entre as quais citamos: Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. Ed. Martins Fontes, 2001 e O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.