4. Controvérsia sobre a constitucionalidade da exigência da baixa renda do segurado como requisito de concessão.
Juntamente com a pensão por morte, o auxílio-reclusão foi concebido para a proteção dos dependentes do segurado, um dos mecanismos estatais de proteção à família[13]. Porém, vimos que o Estado brasileiro achou por bem relativizar o alcance de sua proteção e esta afirmativa é facilmente verificada quando da exigência de que somente merece proteção a família do segurado de baixa renda.
Argumenta-se que o Poder Constituinte Reformador incorreu em inconstitucionalidade, tendo em vista que, ao invés de considerar a renda do segurado recolhido à prisão, deveria ter considerado a renda bruta da família deste ou que, simplesmente, não se aferisse renda nenhuma, bastando o mero encarceramento do segurado como fato ensejador da concessão. Era este o padrão anterior à emenda constitucional, tendo em vista que o constituinte originário fazia referência a segurado de baixa renda apenas para a concessão do salário-família.
Ademais, parece-nos que não só o Estado brasileiro desguarneceu a família como também se afastou de certo modo do objetivo fundamental de erradicação da pobreza. Muitas famílias que ficarão de fora do alcance da proteção previdenciária amargarão os dissabores da miséria, caso não sejam amparadas pelos programas assistenciais.
Aliás, o auxílio-reclusão não é assistencial e sim um dever do Estado para com o trabalhador que contribuiu. Sendo a Previdência que já existia nos moldes ampliados, fica difícil entender que não havia fonte de custeio para tal benefício. Muito pior se tem permitido o Estado, com concessões de pensões por morte em valores integrais e eternas a viúvos e viúvas jovens, com plena capacidade laboral, bem como indeterminadas desonerações que se têm feito nas folhas de pagamento.
Porém, o que mais causa espécie é que a restrição imposta pela EC n.º 20, de 15.12.98 não se preocupou em garantir a isonomia. Qual seria o critério de descrímen utilizado pelo constituinte derivado para excluir as famílias da parcela de segurados que, assim como os de baixa renda, também verteram contribuições para o seguro social? Imaginando que o destinatário da norma seria o dependente, pouco deveria importar a renda do segurado, porquanto não seria ele o beneficiário da prestação previdenciária.
Sabendo, como já narrado, que o auxílio-reclusão em quase nada impacta a previdência (não alcança mais de 0,10% dos gastos efetuados), é de desconfiar que a reforma objetivou extinguir o benefício, implicando desproteção à família, passando a pena do infrator para seus componentes. A pena não poderia passar da pessoa do condenado[14]. O pior dos dissabores o preso já vivenciará: uma pena qualificada com a mais vil crueldade, ao experimentar a desumanidade e descaso que permeiam as penitenciárias brasileiras. A família dele não deveria pagar por erro que não cometeu.
Em arremate do que se entende como fundamento da inconstitucionalidade da restrição imposta ao auxílio-reclusão, aponta-se o princípio da vedação ao retrocesso. Não que os direitos sociais sejam inatingíveis – tendo em vista que nenhum direito fundamental é absoluto –, porém toda restrição a direito fundamental deve estar amparada no postulado da proporcionalidade. A restrição efetuada está longe de ter sido uma medida necessária e adequada para proteger o equilíbrio financeiro e atuarial da previdência.
Neste ponto, o princípio da proibição ao retrocesso social fornece critério objetivo para controlar a adequação e a correção da atividade restritiva dos direitos fundamentais. O legislador, na tarefa restritiva dos direitos fundamentais, deveria levar em conta que o auxílio-reclusão, na forma originária, era direito fundamental já incorporado ao patrimônio jurídico da pessoa.
Agindo da forma que fez, o legislador traiu a promessa da Constituição, sobretudo quando fez pouco caso com os direitos já conquistados. Desse modo, é possível dizer que a reforma veio na contramão da programaticidade constitucional, quando se retirou uma das grandes conquistas da sociedade, ainda que voltadas a uma reduzida minoria.
Do exposto, em que pesem as razões supratranscritas, não foi este o entendimento do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 587365 SC em sede de repercussão geral.
PREVIDENCIÁRIO. CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AUXÍLIO-RECLUSÃO. ART. 201, IV, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. LIMITAÇÃO DO UNIVERSO DOS CONTEMPLADOS PELO AUXÍLIO-RECLUSÃO. BENEFÍCIO RESTRITO AOS SEGURADOS PRESOS DE BAIXA RENDA. RESTRIÇÃO INTRODUZIDA PELA EC 20/1998. SELETIVIDADE FUNDADA NA RENDA DO SEGURADO PRESO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO. I - Segundo decorre do art. 201, IV, da Constituição, a renda do segurado preso é que a deve ser utilizada como parâmetro para a concessão do benefício e não a de seus dependentes. II - Tal compreensão se extrai da redação dada ao referido dispositivo pela EC 20/1998, que restringiu o universo daqueles alcançados pelo auxílio-reclusão, a qual adotou o critério da seletividade para apurar a efetiva necessidade dos beneficiários. III - Diante disso, o art. 116 do Decreto 3.048/1999 não padece do vício da inconstitucionalidade. IV - Recurso extraordinário conhecido e provido.
(STF - RE: 587365 SC , Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 25/03/2009, Tribunal Pleno, Data de Publicação: REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO)
No acórdão proferido no dito Recurso Extraordinário, o relator fez questão de afastar qualquer interpretação literal equivocada. Para ele, o constituinte derivado pretendeu, sim, excluir os dependentes dos segurados de renda mais elevada, porquanto, pretendesse conceder o auxílio aos “dependentes de baixa renda”, usaria o adjetivo “baixa renda” desta maneira, após o substantivo “dependentes”. Porém, o constituinte não agiu desta maneira, preferindo adjetivar como se baixa renda o segurado, sem sombras de dúvidas.
Logo, a Constituição segue dispondo que os dependentes de certa pessoa têm direito à concessão de um benefício previdenciário quando ela segue encarcerada, desde que o preso seja segurado e possua baixa renda, nos termos da lei.
Vê-se que o Supremo Tribunal Federal, que normalmente se mostra tão substancialista na proteção dos direitos, preferiu adotar uma hermenêutica clássica, histórica e literal do texto constitucional. Não que tais métodos interpretativos sejam proibidos, mas, diante da complexidade do caso, deveriam ser apenas um ponto de partida para se encontrar a solução para o impasse.
Fez reverência o STF ao que se tem chamado de “liberdade de conformação do legislador”, ao deixar de reconhecer obstáculo à alteração constitucional. Este espaço de liberdade decisória é sempre reconhecido quando se pretende permitir a atualização constitucional diante de uma realidade cambiante. Apenas não ficou claro, contudo, que nova realidade seria esta a autorizar tamanho retrocesso. Simplesmente se almejou reduzir o universo daqueles alcançados pelo auxílio-reclusão, tomando, na hipótese, por base o princípio constitucional da seletividade. Diz-se, com isto, apurar-se a efetiva necessidade dos beneficiários.
Da leitura dos votos proferidos no mencionado Recurso Extraordinário, depreende-se o receio em se ignorar o critério adotado, posto que se entendeu que a renda da família seria critério de seleção impossível de ser objetivamente aferido. É que bastaria que o segurado tivesse filhos menores de 14 anos (impossibilitados juridicamente de trabalhar e, portanto, aferir renda própria) que eles teriam direito à percepção do benefício. Porém, este problema seria facilmente contornado se não se pensasse a renda de cada um dos componentes da família isoladamente, mas abarcando todo o conjunto familiar, do mesmo modo que se vem aferindo a renda per capita para a concessão do benefício assistencial de prestação continuada – BPC/LOAS.
Outro ponto do julgamento é que, sendo o sistema contributivo, apenas com base nas contribuições vertidas é que se deveria aferir e conceder o benefício previdenciário. Se os dependentes dos segurados que possuíam maior renda ficarem desamparados, não mais será problema da Previdência Social, mas da Assistência Social, através de programas de erradicação da pobreza (miséria?), como é o caso do programa bolsa-família.
Todos os Tribunais Regionais Federais, mesmo os que antes eram defensores da tese da inconstitucionalidade[15], têm-se retratado e acompanhado o entendimento do STF, como se não valesse mais a pena discutir a temática.
Porém, vale lembrar que a jurisprudência vem acatando um precedente do STF, mas que, segundo a processualística nacional, não tem força vinculante como seria o caso de o entendimento ter sido enfrentado em sede de controle abstrato de constitucionalidade. Talvez valesse construir novos argumentos ou aprimorar os antigos para, então, solicitar dos tribunais uma nova posição a respeito do tema.
5. Conclusão
Infelizmente, o constituinte derivado, ao impor a alteração, esqueceu-se da finalidade da norma originária. Ora, o auxílio-reclusão destina-se ao dependente e não ao segurado, visa a suprir a falta da renda deixada pelo provedor recluso. O que se tem atualmente, todavia, é um critério falho, que protege a família rica de um preso pobre e abandona a família pobre de um preso rico. Uma seletividade difícil de compreender, em que canaliza o dinheiro público para quem não necessita e deixa de amparar quem dele precisa.
Olvida-se que o risco social coberto é a prisão, mas a finalidade da norma é a proteção da família desamparada por ocasião do encarceramento do segurado mantenedor. Sendo assim, fica fácil perceber que o auxílio-reclusão é prestação pecuniária de caráter substitutivo, destinado a mitigar os danos causados pela falta do provedor.
Do exposto, inclinamos a defender que não deveria importar a situação financeira do segurado quando este era uma pessoa livre e podia trabalhar, mas a situação presente que ele deixou ao ser preso, com cônjuge, filhos e enteados talvez em completa penúria, e neste caso o Estado deve oferecer sua contrapartida em relação às contribuições vertidas pelo segurado (não há benefício sem fonte de custeio, pois).
Por fim, após esta breve exposição sobre o auxílio-reclusão, esperamos ter contribuído para o debate acerca do retrocesso social imposto pela Emenda Constitucional nº 20/98, que reduziu um direito fundamental do trabalhador/segurado, sem nenhum motivo razoável, mas amparado apenas no princípio da seletividade que, de tão vago e impreciso, pouco se pode fazer para impedir arbitrariedades.
REFERÊNCIAS
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Notas
[1] BRASIL. InfoPen Estatística. População Carcerária – Sintético. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BD574E9CE-3C7D-437A-A5B6-22166AD2E896%7D&Team=¶ms=itemID=%7BC37B2AE9-4C68-4006-8B16-24D28407509C%7D;&UIPartUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D>. Acesso em: 02 de janeiro de 2014.
[2] BRASIL. Anuário Estatístico da Previdência Social, 2012, seção I, subseção B, pp. 158/164. Disponível em: <http://www.previdencia.gov.br/estatisticas/>. Acesso em: 02 de janeiro de 2014.
[3] GONÇALVES, Adilza Rita Gomes. A (in)constitucionalidade do sub-teto do auxílio-reclusão. Disponível em: <http://www.fejal.com.br/revista/index.php/refletindo/article/view/116/77>. Acesso em: 07 de janeiro de 2014.
[4] DEMO, Roberto Luis Luchi. O auxílio-reclusão na previdência social brasileira e estrangeira. Disponível em: <http://revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm?http://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao035/roberto_demo.html>. Acesso em: 02 de janeiro de 2014.
[5] Idem.
[6] Embora o art. 116, § 6º do Decreto nº 3.048/99 disponha que o “exercício de atividade remunerada pelo segurado recluso em cumprimento de pena em regime fechado ou semi-aberto que contribuir na condição de segurado de que trata a alínea "o" do inciso V do art. 9º ou do inciso IX do § 1º do art. 11 não acarreta perda do direito ao recebimento do auxílio-reclusão pelos seus dependentes. (Incluído pelo Decreto nº 4.729, de 2003)”. Nesta hipótese, o trabalho não se dá de forma livre, mas como um dos instrumentos de ressocialização.
[7] Para ter direito ao benefício, o último salário-de-contribuição do segurado, tomado em seu valor mensal, deverá ser igual ou inferior ao valor de R$ 971,78 (novecentos e setenta e um reais e setenta e oito centavos). (Atualizado de acordo com a Portaria Interministerial nº 15, de 10/01/2013).
[8]O último salário-de-contribuição ou a renda a ser considerada é a do segurado preso, e não a dos dependentes.
[9] BRASIL. Instrução Normativa INSS/PRES nº 45, de 06 de agosto de 2010. Disponível em: <http://www3.dataprev.gov.br/sislex/paginas/38/inss-pres/2010/45_1.htm#cp4_s4_sb11> Acesso em: 03 de janeiro de 2014.
[10] TNU, PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO DE INTERPRETAÇÃO DE LEI FEDERAL - PEDILEF 200770590037647, Relator(a): JUIZ FEDERAL ALCIDES SALDANHA LIMA, Data da Decisão: 24/11/2011, Data da Publicação:19/12/2011. Disponível em: <http://tnu.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21581296/pedido-de-uniformizacao-de-interpretacao-de-lei-federal-pedilef-200770590037647-pr-tnu/inteiro-teor-21581298>. Acesso em: 03 de janeiro de 2014.
[11] SCHÄFFER, Caio César Wollmann. AUXÍLIO-RECLUSÃO: UMA CONTRIBUIÇÃO AO DEBATE SOBRE OS DIREITOS PREVIDENCIÁRIOS. Disponível em: <http://www.jurisite.com.br/doutrinas/Previdenciaria/doutprevid42.html>. Acesso em: 06 de janeiro de 2014.
[12] Idem.
[13] Art. 226 da Constituição Federal de 1988: A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[14] Art. 5.º da Constituição Federal de 1988: XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido.
[15] Ementa
PREVIDENCIÁRIO. CONSTITUCIONAL. AUXÍLIO-RECLUSÃO. EC Nº 20/98. PARÂMETRO PARA CONCESSÃO DO BENEFÍCIO. RENDA DO SEGURADO. JUÍZO DE RETRATAÇÃO. 1. O Plenário do Col. STF, ao apreciar o REsp nº 587365, submetido ao regime da repercussão geral (art. 543-B do CPC), assentou a tese de que a renda do segurado preso é a que deve ser utilizada como parâmetro para a concessão do benefício de auxílio-reclusão e não a de seus dependentes. 2. Matéria reexaminada em juízo de retratação, por força do disposto no art. 543-B, parágrafo 3º, do Código de Processo Civil, na esteira da jurisprudência firmada no aludido precedente. 3. Apelação improvida. (TRF5, AC - Apelação Civel – 366337, Relator(a): Desembargador Federal Ivan Lira de Carvalho, Data da Decisão 26/01/2012, Terceira Turma, Data da Publicação: 08/02/2012)
Ementa
REPERCUSSÃO GERAL. ORIENTAÇÃO CONSOLIDADA NO STF. JUÍZO DE RETRATAÇÃO. 543-B, § 3º, DO CPC. AUXÍLIO-RECLUSÃO. LIMITE REGULAMENTADOR. Considerando já haver o STF deliberado sobre a constitucionalidade do art. 116 do Decreto 3.048/99, com repercussão geral, impõe-se a reforma do julgado. Segundo decorre do art. 201, IV, da Constituição, a renda do segurado preso é que a deve ser utilizada como parâmetro para a concessão do benefício e não a de seus dependentes. Invertida a sucumbência, impõe-se a condenação da autora ao pagamento das custas do processo e dos honorários advocatícios, estes no valor de R$ 465,00 (quatrocentos e sessenta e cinco reais). A exigibilidade desses encargos, porém, ficará suspensa, enquanto assistir-lhe direito à assistência judiciária gratuita. (TRF4, APELREEX - APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO, Relator(a): JOSÉ FRANCISCO ANDREOTTI SPIZZIRRI, Data da Decisão: 14/10/2009, SEXTA TURMA, Data da Publicação: 29/10/2009)