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O princípio de não discriminação

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10. Na Alemanha Ocidental, desde a vigência da Constituição de Weimar, doutrinadores e julgadores já haviam desenvolvido uma ampla e profunda reflexão a respeito do princípio da igualdade e seu consectário da discriminação desautorizada. Desde a posição restritiva e formalista inicial, que dava ao princípio um alcance meramente programático para o legislador, sem o poder de vinculá-lo, apenas submetendo o Executivo e o Judiciário, obrigados a aplicar o direito sem consideração de pessoa, até ao momento presente, em que a Corte Constitucional reconhece um fundamento suprapositivo ao princípio, entendendo-o como um veto ao arbítrio e uma imposição de justiça no tratamento de supostos iguais ou diversos.

Cláudio Rossano10 realiza preciosa síntese das muitas correntes de pensamento, na Alemanha, no tocante ao entendimento do princípio da igualdade e de seu consectário de não discriminação, demonstrando que, de certo modo, ganhou particular dimensão o pensamento de Leibholz.

O ponto central dessa doutrina consiste na busca dos limites a serem postos à discricionariedade do legislador pela valoração da relevância da diversidade subsistente na hipótese a ser regulada. Isso Consiste, no entendimento da Corte Constitucional, na circunstância que subsista um fundamento racional, retirado da própria natureza das coisas ou por qualquer outro modo evidente, para a diferenciação ou parificação operada pelo legislador. Isso resultaria, propriamente, da efetiva e adequada presença de uma íntima relação entre as disposições legislativas e a matéria sobre a qual se concentra a disciplina, em outras palavras, na ausência de arbítrio da norma.

No pensar de Leibholz, duas são as idéias nucleares nessa matéria: justiça e arbítrio, que ele expressou nestes termos: comete arbítrio quem se põe fora do direito e da justiça. Assim, se uma norma não é orientada para a "justiça" e de um ponto de vista determinado, com base no qual deve ser submetida a controle, faltava-lhe base efetiva de justificação, devendo ser considerada arbitrária. Não se trata, na espécie, adverte ele, de uma igualdade formal, a ser buscada na forma externa da lei, sim material, a buscar-se nos seu efeitos. Destarte, para solução da questão sobre a existência ou não de arbítrio, nenhum relevo terá o caráter de generalidade da lei, ou o fato de conter ela disposições para indivíduos ou grupos determinados. A indagação deve sempre direcionar-se para a análise do conteúdo de tais disposições.

Criticado por entenderem que sua teoria não oferece bases sólidas à jurisprudência, possibilitando-lhe chegar à concretização ou à determinação do conceito de arbítrio como limite ao legislador, sendo impossível fixá-lo em termos de conteúdo, limitou-se Leibholz a responder que esse conceito vive no campo do mutável historicamente, não podendo, portanto, ser fixado a priori nem muito menos definido. Isso não impede, entretanto, possa ele ser repensado e aplicado na prática jurisprudencial, do mesmo modo como são aplicados os conceitos de bem público, bons costumes, boa-fé etc. A mutabilidade histórica do arbítrio se reflete obviamente sobre o conteúdo do princípio da igualdade, que vem, assim, a sofrer, também mudanças historicamente, o que é bem fácil de ser comprovado quando se observa que o entendimento do princípio da igualdade em 1848 era bem diverso do que se construiu à luz da Constituição de Weimar e hoje se constrói na vigência da constituição de Bonn.


11. Retomando o que dissemos no item 6, insistir-se em ver, como possível, em nossos dias, conter-se o julgador, impondo-lhe apenas os freios da racionalidade cognitiva da lógica formal e da hermenêutica tradicional é preservar no inalcançável. O mundo de hoje obrigou o juiz a ser, dentre os produtores jurídicos, o que tem relevo crescentemente significativo. Ao invés de insistirmos no inviável, que só tem contribuído para tornar o julgador, em nossos dias, politicamente livre para ser arbitrário, sobrepondo-se, sem que para isso tenha representatividade e esteja submetido aos necessários controles políticos, à vontade social predominante, convém que de uma vez por todas nos convençamos de que o urgente, necessário, diria inadiável é repensar a figura do julgador estatal. Em lugar de insistirmos em conservar a institucionalização arcaica do Poder Judiciário, legitimado para a concepção oriunda de Montesquieu e da crença na suficiência do princípio da separação dos poderes e na submissão de todos ao império da lei, como expressão de vontade geral, em lugar disso cumpre "institucionalizar" um Poder Judiciário adaptado ao Estado Social de nossos dias, intervencionista, promotor do desenvolvimento, constitucionalmente responsabilizado por efetivar procedimentos que gerem igualdade substancial na sociedade, vale dizer, que a democratizem, como já se logrou, com o modelo antigo ( que inclui o juiz de hoje) a democratização do Estado, por si só, hoje insuficiente ( e à qual não pode ser adaptado o juiz de ontem).


12. No entender quase pacífico do constitucionalismo contemporâneo, o princípio da igualdade (conseqüentemente o de não discriminação) é preceito que se dirige tanto ao aplicador da lei como ao próprio legislador. A igualdade no sentido constitucional, significa igualdade na aplicação do direito.

Inicialmente, entendeu-se esse princípio como traduzindo a igualdade perante a lei; consistiria ele numa exigência dirigida ao juiz estatal e às autoridades administrativas no sentido de assegurarem formalmente uma igual aplicação da lei a todos os cidadãos. O aplicador da lei é que deveria fazê-la incidir no caso concreto de modo igual e não discriminador. Eram assim confundidos o princípio da igualdade de todos perante a lei com o princípio objetivo da prevalência da lei: obediência das autoridades judiciais e administrativas ao ato de decisão (estruturalmente considerado igualitário) dos representantes do povo. Mas, como adverte Gomes Canotilho11 a igualdade na aplicação do direito é mais do que uma positivística igualdade de aplicação da lei; é igualdade através da lei. Igualdade nos encargos (ênfase dada pelos liberais) mas também igualdade nas vantagens (assinalou a doutrina do Estado Social).

Com essa postura, não se exige apenas que ao legislar o legislador trate igualmente quantos são destinatários da norma, sim que legisle para que, na convivência social, as desigualdades constitucionalmente desautorizadas não sobrevivam ou se instalem. Assim sendo, cumpre legislar desigualando quando necessário para produzir igualdades em termos sociais, políticos, econômicos, ou seja: cumpre que a igualdade formal se some a igualdade material.

Nessa linha, teríamos um conceito "ampliado" da discriminação. Haveria ela, em termos constitucionais, não apenas no tocante à lei que trata desigualmente sem que o faça para proporcionar, materialmente, mais igualdade, mas principalmente na omissão do legislador, deixando de editar as leis que proporcionariam maior igualdade substancial ainda não alcançada na praxis social, isto é, omissão do legislador no seu dever de proporcionar mais igualdade mediante o direito.

Teríamos, assim, discriminação por omissão sempre que existisse um descompasso entre a vontade política a ser institucionalizada (posta constitucionalmente como de imediata eficácia) e a vontade social operante (o que é posto como prática na sociedade e é discriminatório em termos constitucionais). Em outras palavras: Haveria discriminação por omissão sempre que na prática social se operasse um tratamento desigual constitucionalmente desautorizado, mas que se perpetua impunemente por falta de disciplina normativa que imponha legalmente a não discriminação.


13. O problema é extremamente delicado, ainda quando não me pareça deva, só por isso, ser descartado. A inconstitucionalidade por omissão, importando um agir do Estado, vale dizer, uma sua prestação que envolve custos, organização e vontade política efetiva, é indissociável, para ser juridicamente posta, da real correlação de forças políticas subjacentes ao ordenamento jurídico formal. Adquire, aqui, relevo particular, a ineliminável correlação entre o direito e o poder político, que, se ignorada pelo aplicador ou pelo intérprete, redundará, na prática, em impotência ou em conflito que necessariamente será solucionado em desfavor do direito formal. Na inconstitucionalidade que envolve um não agir do Estado, em que dele se reclama apenas omissão, tudo é diferente. Obtém-se o resultado no caso concreto e tanto basta, permanecendo inatingido o aparato institucional e sua filosofia de agir, se assim quisermos chamar o modo concreto por que atua o Poder em face da sociedade, resultando da efetiva correlação de forças que nela operam politicamente. Na inconstitucionalidade por omissão tudo é diferente. Impondo um agir, obriga a mudanças institucionais e procedimentos que não pedem produzir efeitos só para o caso concreto; e por força dessa vocação à durabilidade, envolve mudanças que jamais ocorrerão se para sustentá-las não existirem, no seio da sociedade, forças políticas em condições de oferecer-lhes a sustentação que reclamam.

Em suma, correndo o risco de ser incompreendido pelo sumário da abordagem, inconstitucionalidade por omissão, em termo de não discriminação, mostra-se evidente o drama da impotência do jurídico para "conformar" o social, o político e o econômico, sendo ele, na verdade, e só, mera compreensão dessa realidade subjacente, com o objetivo de dar-lhe, prospectiva e impositivamente, certo direcionamento. Sem dúvida que há sempre um "retorno" do jurídico sobre o político, o econômico e o social, mas retorno que só opera efetivamente se respaldado numa vontade social, que esta, sim, é realimentadora do jurídico.

Ainda aqui tentarei um exemplo para elucidar.

O acesso ao ensino, em nível superior, no Brasil, é restrito (não formalmente, sim materialmente) aos melhor aquinhoados financeiramente. Sendo gratuito, ele finda por desigualar mais ainda os desiguais. Favorece os ricos pela concorrência desleal na competição do vestibular; e acresce esse favorecimento com proporcionar-lhes ensino gratuito, compelindo os economicamente menos favorecidos a se socorrerem das Universidades pagas. Esses dados não são fantasiosos, mas eles estão aí, apurados objetivamente e ao dispor de quem deles deseje se inteirar. Há conseqüentemente, uma prática social discriminatória, quando o preceito constitucional é impositivo no sentido de estigmatizá-lo.

A dar-se ao princípio constitucional todo o alcance que precisa ter, teríamos, na espécie, uma inconstitucionalidade por omissão. O legislador deixou de promover a edição de leis que eliminem, na prática, esse tratamento desigual, constitucionalmente condenado mas socialmente efetivado. Assim, qualquer pessoa economicamente hipossuficiente poderia reclamar fossem editadas leis que compensassem as desigualdades, de modo a se obter na prática a igualdade de oportunidade com os estudantes filhos de pessoas ricas. Ou mesmo se poderia pretender individualmente a tutela desse direto. Num ou noutro caso, isso importaria na responsabilidade do Estado, cm recursos públicos, proporcionar alimentação, habitação, segurança financeira aos estudantes hipossuficientes, de modo a que pudessem ter acesso aos mesmos recursos e gozar das mesmas oportunidades dos estudantes ricos, com eles competindo em condições de igualdade. E isso só é viável em termos institucionais e em caráter permanente e geral. Sem contar com o "rescaldo" que permaneceria, com a indagação: não será discriminatória a gratuidade do ensino superior assegurado aos mais ricos? Isentando-os desse desembolso não se tornam mais ricos? pois não são eles liberados de encargos que terão de ser assumidos por toda a coletividade, o que significa transferir custos para quem não beneficiado, favorecendo quem já largamente beneficiado? Assim agindo, produziu-se mais igualdade ou não?

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A magnitude do problema termina por convencer que, no mínimo, a inconstitucionalidade por omissão, em termos de não discriminação, redundará quase que em mero devaneio poético, se não houver, subjacente ao jurídico, uma forte e decisiva vontade política em condições de promover mudanças na correlação de forças existentes na sociedade, de modo a produzir condições materiais que eliminem, em termos substanciais, a desigualdade que o direito formalmente já proclama como inaceitável.

Por força disso é que tenho insistido em dizer que constitui a mais perversa das alienações políticas o discurso mistificador, que transmite aos desfavorecidos a ilusória impressão de que obterão justiça com a só edição das leis, mesmos leis que por falta de suporte numa vontade política efetiva terminarão sendo apenas "lei para ler", como, entre surpreso, perplexo e revoltado me disse um ilustre mestre italiano, bom conhecedor de nossa realidade.


14. As Constituições, como por nós já frisado, associam geralmente princípio da igualdade e o princípio de não discriminação. Depois de afirmarem a igualdade de todos perante a lei, vedam qualquer discriminação em função de sexo, ascendência, raça, cor, língua, país de origem, crenças, opiniões religiosas ou políticas, condição pessoal e social, ideologia ou instrução.

Certo é, entretanto, construir-se entendimento pacífico o de que essa enumeração constitucional é meramente exemplificativa, não taxativa, pelo que outros discrimens não expressamente postos a nível de texto constitucional expresso podem e devem ser considerados. No particular, o art. 14. da Convenção Européia dos Direitos do Homem é exemplar, colocando, como norma de encerramento, após sua enumeração de discrimens vetados, cláusula "ou toute situation".

A nossa Constituição de 1988 não usou a técnica que vem de ser referida. Nela os princípios se distribuem por vários dispositivos. Começa em seu art. 3º, por colocar como um dos objetivos fundamentais da República federativa do Brasil o "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, ou quaisquer outras formas de discriminação". Em seu art. 5º afirma a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se ao brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança, à propriedade, nos termos enunciados em seus muitos incisos. E nesses incisos fazem especial referência à não discriminação os de ns. VIII (ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir a prestação alternativa fixada em lei), LXI ( a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais), LXII (a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei).

Disposições pertinentes ainda existem as do art. 7º, relativas aos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, em seus incisos XXX (proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil), XXXI (proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência), XXXII (proibição de distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre profissionais respectivos) e XXXIV (igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso).

O art. 12, § 2º (proibição de distinção entre brasileiros natos e naturalizados, salvo as estabelecidas constitucionalmente), o art. 39, § 1º (isonomia entre os servidores da administração direta no tocante a cargos de atribuições iguais ou assemelhados bem como entre os servidores dos três Poderes), art. 194, I (universalidade da cobertura em termos de seguridade social) e II (uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços relativos à saúde, previdência e assistência social às populações urbanas e rurais), 206, I (assegurado igualdade de condições para o acesso e permanência na escola), 215 (a garantia de todos do pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional), 226, § 5º (exercício, em condições de igualdade, pelo homem e pela mulher, dos direitos e deveres referentes à sociedade conjugal).

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Sobre o autor
José Joaquim Calmon de Passos

Falecido em 18 de outubro de 2008. Foi advogado e consultor jurídico em Salvador (BA), coordenador da Especialização em Direito Processual da Universidade Salvador (UNIFACS), professor catedrático de Direito Processual da Universidade Federal da Bahia (aposentado)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PASSOS, José Joaquim Calmon. O princípio de não discriminação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. -366, 1 jul. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2990. Acesso em: 22 nov. 2024.

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