1. INTRODUÇÃO
Entender a norma jurídica não é apenas um exercício de jusfilosofia, desprovido de qualquer significado prático. É através da compreensão do verdadeiro sentido da norma que melhor podemos apreender os comandos que o ordenamento imperativamente nos impõe e com os quais o profissional do direito lida diariamente. Só quem conhece domina e somente quem domina aplica corretamente. A revelação do sentido intrínseco da norma jurídica e de sua estrutura lógica é fator que grandes contribuições oferece à dogmática jurídica, particularmente no campo da interpretação.
A teoria da norma jurídica é pressuposto indispensável ao estudo da ciência do direito, que nada mais é do que a ciência das normas de direito.
Na análise estrutural da norma destacaram-se inúmeros mestres, não sendo possível deixar de sublinhar a posição de Hans Kelsen, inaugurador de uma nova era no pensamento jurídico. Deve-se a Kelsen a formulação definitiva de um juízo lógico-explicativo sobre a norma jurídica, o juízo hipotético condicional, diferenciando a norma da proposição jurídica, conforme será visto no decorrer do trabalho. O esquema explicativo de Kelsen pode mesmo não ser o mais adequado, mas é, sem dúvida, o marco fundamental na teoria da norma jurídica, sendo a partir dele que se construíram os demais modelos, restando intocada a magnífica construção do dever-ser.
2. PROBLEMÁTICA DA DISTINÇÃO
Embora intimamente relacionados, os conceitos de norma jurídica e de proposição jurídica não se confundem. Norma jurídica é um comando positivado pelo Estado; proposição jurídica, a estrutura lógica da norma. As normas de direito são formuladas pelo poder estatal, ou por este reconhecidas, tendo caráter imperativo, não obstante posição contrária de autores como Binding, negando a imperatividade da regra de direito. Já as proposições jurídicas são frutos da ciência jurídica, e não prescrevem nada por si, apenas transcrevendo o sentido da norma jurídica.
A proposição é um juízo revelador da norma jurídica, consistindo esta num imperativo geral, abstrato, bilateral e coativo. A generalidade consiste em ter a norma várias pessoas como destinatárias, quer sejam todos os indivíduos da sociedade (norma geral), quer um grupo em particular (norma especial), mas obrigando todos os indivíduos deste grupo. Os sistemas jurídicos modernos repugnam dispositivos normativos não revestidos de generalidade, atributivos de direitos ou privilégios a indivíduos ou grupos em particular. A característica da generalidade somente não está presente nas chamadas normas individuais, singulares ou particulares, como é o caso dos contratos, das decisões judiciais e de alguns atos administrativos normativos. Abstração é a qualidade da norma estabelecer uma ação ou ato em abstrato. A regra de direito é imperativa pois estabelece comandos que devem ser compulsoriamente observados, compulsoriedade esta que é garantida pela sanção, imposta pelo Estado, e dita aparelhada . Por fim, temos a característica da bilateralidade, que consiste na norma estabelecer a uns determinado dever jurídico e a outros a possibilidade de exigir seu cumprimento, através de um instrumento próprio, a ação judicial, dentro da dicotomia direito subjetivo-dever jurídico.
A norma jurídica, revelada logicamente por sua proposição é o objeto principal da ciência do direito, ou mesmo seu objeto único e exclusivo, como o querem os adeptos do positivismo jurídico. É através da norma jurídica que o jurista conhece o mundo, na medida em que uma conduta só se torna relevante ao direito quando contida em uma norma jurídica, seja legal ou consuetudinária. Deste modo, o ato de coçar o dedo não interessa ao direito, pois não regrado, salvo na condição de ato de livre prática. Diferentemente ocorre, "exempli gratia" com a emissão de um cheque, que gera inúmeros efeitos juridicamente relevantes. Distinguimos assim fatos jurídicos e fatos não-jurídicos, acontecimentos dos quais o direito se ocupa e acontecimentos dos quais o direito não se ocupa.
O conjunto das normas jurídicas vigentes num determinado Estado forma o ordenamento jurídico, que é o arsenal de que pode valer-se o jurista. Se o conjunto de normas revestir algumas características, dentre as quais destacamos a hierarquização e a interligação entre os diferentes dispositivos, dizemos que o ordenamento é um sistema jurídico. O sistema jurídico é dinâmico, pois constantemente nele entram e saem normas, de um lado, pela produção da lei e das demais fontes e, de outro, pela revogação e pelo término da vigência, ocorrendo esta com as chamadas normas auto-revogáveis, temporárias ou excepcionais. Normas temporárias são normas que prevém o término de sua vigência através do decurso de prazo determinado. Normas excepcionais são aquelas cuja vigência extingue-se pelo desaparecimento da situação fática para as quais foram editadas, como um desastre natural, guerra ou revolução.
Trabalhar com o direito é trabalhar com normas, constatação que se faz sentir de modo particularmente forte com a positivação do direito, efetuada principalmente a partir do século XIX. A preocupação com a natureza da norma jurídica faz-se presente de modo não vivido nos momentos anteriores, dominados predominantemente pelo direito consuetudinário.
O primeiro grande mestre a abordar a dicotomia norma/proposição jurídica foi Rudolf Von Jhering. Para Jhering, o conteúdo da norma jurídica seria uma proposição, uma orientação para o agir. Todavia, foi Hans Kelsen quem definitivamente legou ao mundo jurídico as bases científicas da distinção, abordando a proposição jurídica como juízo hipotético condicional.
3. O JUÍZO HIPOTÉTICO CONDICIONAL
A representação lógica do juízo hipotético condicional é por Kelsen concentrada na seguinte fórmula: "Se A é, B deve ser". A primeira parte do juízo lógico ("Se A é") recebe a denominação de condição, hipótese legal, hipótese de incidência, suporte fático ou preceito. A segunda parte ("B deve ser") é chamada consequência jurídica. A hipótese legal consiste num fato ou conduta, comissivo ou omissivo, livre, obrigado ou proibido, que tem como consequência sua validação ou uma sanção.
Assim, exemplificando, da norma contida no artigo 328 do Código Penal pátrio : "Usurpar o exercício de função pública: Pena – detenção, de 3 meses a 2 anos, e multa", extrairíamos a seguinte proposição, o seguinte juízo hipotético condicional: "Se usurpar o exercício de função pública, deve ser condenado com detenção de 3 meses a 2 anos, e multa".
A relação que se estabelece entre a hipótese legal e a consequência jurídica não é uma relação de causalidade, típica das ciências da natureza, mas uma relação de imputação, característica da ciência do direito. As ciências da natureza são o universo do ser; a ciência do direito, o campo do dever-ser.
Para Hans Kelsen, o juízo hipotético não conteria nenhum valor moral ou ético. Estes estariam presentes na produção da norma jurídica pelo órgão político, mas inexistentes na proposição jurídica, que despe-se de qualquer valor axiológico a fim de tornar-se objeto idôneo para a construção de uma verdadeira ciência jurídica.
Para o elaborador da Teoria Pura do Direito, a norma e seu juízo hipotético somente serão completos e bastantes em si se contiverem uma cominação de sanção, pois do contrário vão estar na dependência de uma norma sancionatória que lhe complete o sentido, dando-lhe efetividade. Assim, distingue Kelsen entre normas autônomas e normas dependentes. Norma autônoma é aquela que prescreve sanção a um comportamento estatuído, por ela ou por outra regra. Dependente é a norma que estatui um comportamento, sem prescrever sanção, ficando na dependência da norma sancionadora. Por exemplo, a norma constitucional que assegura a todos o direito à vida, não obstante seu nível hierárquico supremo, é dependente, ligada às normas que disciplinam sanção, principalmente aquelas do Código Penal. Todavia, o pensamento de Kelsen, neste particular, não pode ser aceito sem restrições. Não apenas a norma sancionatória é autônoma, mas também a norma revogatória, e.g. Daí entendermos pela modificação desta distinção, na linha já seguida por outros mestres: são autônomas as normas que esgotam o comportamento que estatuem; são dependentes aquelas que necessitam do complemento de outros dispositivos normativos.
4. O JUÍZO HIPOTÉTICO CONJUNTIVO
O mestre argentino Carlos Cossio, fundador da escola do Egologismo Existencial, critica a estrutura proposicional formulada por Hans Kelsen. Sua crítica volta-se tanto contra a distinção entre normas autônomas e dependentes quanto em relação a própria estrutura do juízo hipotético condicional. Para Cossio, o juízo hipotético kelseniano supervalorizaria a transgressão, o ilícito, sendo, pois, incompleto, na medida em que a proposição jurídica deveria conter tanto o enunciado do cumprimento da norma quanto o de sua desobediência.
Cossio formula então, a partir da estrutura kelseniana, um novo modelo de proposição jurídica, mais amplo, baseado simultaneamente no lícito e no ilícito, no cumprimento e na transgressão da norma. Este juízo foi por Cossio denominado juízo hipotético disjuntivo, que resumimos na seguinte fórmula: " Dado fato deve ser prestação ou dada a não prestação dever ser sanção".
O juízo hipotético disjuntivo compõe-se de dois juízos hipotéticos ligados pelo disjuntivo "ou". Ao enunciado do cumprimento da norma ("Dado fato deve-ser prestação") Carlos Cossio denominou endonorma. O juízo do descumprimento ("Dada a não prestação deve-ser sanção") foi chamado perinorma. Perinorma e endonorma correspondem aos conceitos de normas autônomas e normas dependentes em Hans Kelsen, com a vantagem de estarem reunidos num mesmo juízo lógico.
Deste modo da norma contida no artigo 129 do Código Penal : "Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena – detenção, de 3 meses a 1 ano", formularíamos o seguinte juízo hipotético disjuntivo: "A integridade corporal ou a saúde deve ser respeitada; ou, se não o foi, deve ser aplicada uma pena de detenção de 3 meses a 1 ano".
No esquema cossiano tanto a prestação como a sanção gozam de igual importância. A estrutura da proposição não deveria estar centrada no ilícito, no enunciado do descumprimento, visto que a consequência normal e esperada é o cumprimento da norma, consistindo a sua transgressão numa exceção. O lícito e o ilícito são lados opostos de uma mesma realidade normativa, devendo ambos estarem contidos no mesmo juízo proposicional, condição necessária para a completude deste, o que não se verificaria no juízo hipotético condicional de Kelsen, cuja estrutura lógica é incapaz de examinar cumprimento e transgressão na mesma proposição. Ao enlaçar o dever-ser da prestação (endonorma) e o o dever-ser da sanção pela não prestação (perinorma), Cossio torna o juízo hipotético supostamente completo.
O pensamento de Cossio valoriza sobremaneira a liberdade do agente diante do comando expresso pela norma, chegando a negar o caráter imperativo da regra jurídica. O homem é livre para não cumprir a endonorma, a prestação, sendo então sujeitado a uma sanção aplicada pelo órgão competente. A norma é um juízo que diz algo a respeito da conduta em sua liberdade.
5. OUTROS MODELOS PROPOSICIONAIS
Diversas críticas são dirigidas ao esquema proposicional de Carlos Cossio. A principal delas reside no fato do disjuntivo "ou" resultar na necessária exclusão de uma partes da proposição, quer a endonorma quer a perinorma, de modo que o juízo hipotético disjuntivo, não obstante suas pretensões de completude, jamais seria completo. O próprio Kelsen ao analisar o juízo hipotético cossiano entendeu ser conveniente substituir o disjuntivo "ou" pela expressão "e se não".
Tentando suprir esta deficiência , propôs Jorge Millas a substituição do disjuntivo "ou" pelo conjuntivo "e" de modo que se construísse um juízo hipotético conjuntivo, com a seguinte estrutura: "Dado fato deve-ser prestação e dada a não prestação deve-ser sanção".
Por outro lado, preferem autores como Avelino Quintas o uso do adversativo "mas", produzindo um juízo hipotético adversativo resumível na fórmula: "Dado fato deve-ser prestação e dada a não prestação deve-ser sanção".
6. CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS
A estruturação da proposição jurídica como juízo hipotético adversativo demonstra ser o mais completo de todos os esquemas lógico-proposicionais, suprindo tanto a incompletude do modelo kelseniano quanto a exclusão mútua que se verifica na proposição disjuntiva de Carlos Cossio. Possui ainda o mérito de superar o inconveniente perceptível no juízo hipotético conjuntivo, no qual a partícula "e" dá a entender que podem coexistir na mesma conduta o lícito e o ilícito, a prestação e seu descumprimento, o que é logicamente impossível.
Sem embargo a esta preferência, temos, porém, por valiosos também os demais juízos hipotéticos, momentos importantes no árduo trabalho de decifrar o objeto máximo da ciência do direito: a norma jurídica.
BIBLIOGRAFIA
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