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Hipóteses contemporâneas da deserdação do testamento

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06/07/2014 às 08:08
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4 Hipóteses contemporâneas da deserdação no testamento                

A sociedade hodierna enfrenta novos contornos sociais. E o direito, como uma ciência, deve acompanhar a sociedade, moldando-se a ela. As transformações do mundo globalizado requerem um direito que possa ser aplicado às mais diferentes situações. Não se pode estagnar; prender-se aos dogmas de uma sociedade calcada no preconceito e detentora de uma visão pouco humana das pessoas.

É com base nisso que tudo o que envolve a vida humana e que, sobretudo, pode repercutir negativamente no desenvolvimento das pessoas, merece a atenção do direito.

4.1 A deserdação como decorrência do abandono afetivo na relação parental

Preliminarmente, cumpre destacar a importância do afeto como o principal fundamento das relações parentais. Nessa esteira é que atualmente fala-se em repersonalização das relações familiares, como forma de atender aos interesses mais valiosos das pessoas, que são o afeto, a solidariedade, a confiança, a lealdade, o respeito e o amor.  O instituto Família não se restringe ao modelo tradicional formado por um homem e uma mulher unidos pelo matrimônio e cercados de filhos. Uma série de transformações ao longo do tempo serviu para moldar o que hoje se entende por família. A própria Constituição Federal de 1988 apresenta um rol exemplificativo a esse respeito, com caráter pluralista, disposto no artigo 226[16] (famílias monoparentais, heterossexuais, etc.), o qual consagra a inclusão e o respeito à dignidade humana. E a ruptura desse paradigma de família convencional, moldada por conceitos até mesmo patriarcais, conferiu ao princípio da afetividade uma maior ênfase.

Segundo Dias (2012), o marco inicial na construção de um novo paradigma da relação entre pais e filhos se deu com o surgimento da possibilidade de identificar a verdade biológica através de indicadores genéticos. Posteriormente, ocorreu a aglutinação do direito com as ciências psicossociais, o que tornou indispensáveis as presenças do pai e da mãe para o adequado desenvolvimento do filho. De forma correlata, nasceu o conceito de paternidade responsável, o que levou a lei a dar prioridade à chamada guarda compartilhada. Todas essas mudanças provocaram a valorização dos vínculos familiares, tendo como referencial, o compromisso ético das relações afetivas.

Cumpre destacar, ainda de acordo com Dias (2012), que:

De nada adiantam todas essas regras, princípios e normas se a postura omissiva ou discriminatória dos genitores não gerar consequência alguma. Reconhecer - como historicamente sempre aconteceu - que a única obrigação do pai é de natureza alimentar, transforma filhos em objeto, ou melhor, em um estorvo do qual é possível se livrar mediante pagamento de alimentos.                                                 

Segundo Lôbo (2004, p. 138), “na visão moderna do direito das famílias (não do vetusto direito de família), a família é identificada pela comunhão de vida, de amor e de afeto no plano da igualdade, da liberdade, da solidariedade e da responsabilidade recíproca”.

De fato, o que verdadeiramente enaltece o vínculo entre pais e filhos, bem como o termo família, é a afetividade, o amor, a solidariedade, o respeito, o carinho, o cuidado, etc., e não apenas o vínculo biológico ou consanguíneo. Aliás, há uma grande diferença entre ser pai e ser genitor. Para Oliveira (2010, p. 51), “a importante presença do afeto no pensamento jurídico dos dias de hoje, se dá a partir da significativa mudança na percepção e na vivência das famílias”.

Nesse sentido,

Inserir a afetividade como princípio fundamental ao estabelecimento de vínculos formais entre pessoas (seja uma relação sexual ou uma relação fraterna), nada mais é do que finalmente retirar o véu da hipocrisia que cobriu os 77 (setenta e sete) anos em que vigorou o Código Civil de 1916. Os sentimentos humanos sempre existiram; sempre alguém amou outrem, mas conforme a cultura da época nem sempre puderam formalizar vínculos de filiação e de união sexual estabelecidos no afeto (ANDRADE, 2010, p. 73).

O princípio da afetividade encontra respaldo constitucional[17], ainda que implícito, uma vez que representa valor que decorre da dignidade humana. A igualdade entre os filhos, independentemente de suas origens; a adoção, que representa uma escolha afetiva; o direito à convivência familiar, etc, além de conduzirem ao princípio da afetividade, constituem a evolução social da família.

Nesse aspecto, cumpre destacar, que o direito à saúde, elencado no artigo 227 da Carta Maior, não se limita à saúde física, mas envolve também, e principalmente, a saúde mental.

Observe-se, desse modo, que a saúde psicológica relaciona-se intimamente com o ambiente em que a criança ou o adolescente vive. Para uma boa e saudável formação psicológica é necessário que aqueles que convivam com o menor sejam inteiramente responsáveis e tenham a consciência do respeito à infância. Mais que isso: tenham consciência de que o afeto é fundamental para a preservação da vida.

Para Hamada (2013),

O instituto da paternidade não deve ser visto apenas como um direito, ele é direito-dever. Mais do que a convivência e cuidados, o ato de amor perante o filho deve estabelecer um vínculo de amizade, companheirismo, proteção e confiança. Além disso, deve proporcionar o desenvolvimento saudável, uma vez que a base psicológica de pertencimento da criança nasce de uma boa relação entre pais e filhos.

Indubitavelmente, um filho que fora abandonado ou desprezado afetivamente por seu genitor ou genitora é vítima de violência, é vítima de crueldade. As sequelas emocionais e comportamentais nele instaladas se estenderão por toda a vida. Tanto que atualmente é comum a discussão acerca da possibilidade de se conceder indenização por dano moral decorrente de abandono afetivo de filho.  

Conforme ensina Lôbo (2005),

(...) a afetividade, sob o ponto de vista jurídico, não se confunde com o afeto, como fato psicológico ou anímico, este de ocorrência real necessária. O direito, todavia, converteu a afetividade em princípio jurídico, que tem força normativa, impondo dever e obrigação aos membros da família, ainda que na realidade existencial entre eles tenha desaparecido o afeto. Assim, pode haver desafeto entre pai e filho, mas o direito impõe o dever de afetividade.

Muito se tem discutido acerca da imposição do amor às relações familiares por parte do direito. Em recente julgado[18], o Superior Tribunal de Justiça concedeu a uma filha, o direito à indenização por motivo de abandono afetivo provocado pelo seu genitor. Certamente, dinheiro nenhum compensará a ausência afetiva sofrida por um filho. No entanto, por outro lado, é imperioso reconhecer o caráter pedagógico e punitivo de uma indenização.

Tamanha a gravidade do tema em foco, que torna importante mencionar o Projeto de Lei que tramita no Senado Federal, o qual modifica o Estatuto da Criança e do Adolescente para enquadrar como ilícito civil e penal o abandono moral dos filhos, como forma de prevenir, bem como solucionar os casos considerados intoleráveis de negligência dos pais em relação aos filhos, que vão muito além da mera assistência financeira (OLIVEIRA, 2013). 

O responsável pelo abandono afetivo precisa entender que o sofrimento por ele causado, isto é, os transtornos psicológicos gerados em um filho, pela falta de amor, pela frieza e desprezo, repercutirão ao longo da vida daquele filho, comprometendo seu desenvolvimento e prejudicando sua interação junto à sociedade.

Nesse sentido, cumpre destacar as palavras de Sousa (2008):

Compreender, pois que o termo “abandono” vai além do aspecto material, para alcançar o aspecto moral entre os pais e sua prole, pode até configurar uma exegese revolucionária ou audaciosa, mas é acima de tudo uma reverência à lei que a exprime. Portanto, os pais são obrigados a absterem-se de abandonar afetivamente os filhos. O abandono afetivo, expressão de sentido bastante elástico, significa mais que privar os filhos de amor, carinho e ternura. Ela representa acima de tudo, privação de convivência, a omissão em sua forma mais erma e sombria. O mesmo que inclinar a mente infanto-juvenil a entender seus genitores como meros personagens da reprodução, figuras estanques e frias que a deixam por muito tempo ou mesmo por toda a vida à míngua de uma amizade pura, exilando-a a um desenvolvimento indigno, vulnerável e solitário.

Não se pode olvidar, ademais, que a falta de afetividade também pode existir nos filhos em relação aos pais, principalmente quando estes são idosos. Comumente observam-se casos em que os filhos se distanciam dos pais, não buscam notícias, não se importam com a situação em que vivem. Privados do contato, do afeto, do cuidado e do amor que os filhos poderiam ofertar, também sofrem violência em sua dignidade.

Tecidas todas essas considerações, passa-se à análise da deserdação como uma das consequências do abandono afetivo.

Fazendo-se um paralelo entre o abandono afetivo e a deserdação, é plausível considerar, hodiernamente, que a relação entre ambos os institutos pode ser de causa e efeito. Ora, o afeto é um valor inerente à formação da dignidade humana e indispensável ao aperfeiçoamento da vida. E, assim sendo, torna-se urgente o seu reconhecimento.

Conforme explanado em tópico anterior do presente trabalho, a deserdação consiste em ato unilateral pelo qual o testador exclui da sucessão herdeiro necessário, através de disposição testamentária motivada em uma das causas previstas em lei (artigos 1.814, 1.962 e 1.963 do Código Civil).

Todavia, apesar de as hipóteses que autorizam a deserdação serem consideradas numerus clausus, não admitindo interpretação extensiva, outras modalidades poderiam ser inclusas, de forma a tornar o rol exemplificativo.    

Nessa esteira, cumpre destacar o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 118/2010, que hoje tramita na Câmara dos Deputados, de autoria da senadora Maria do Carmo Alves, o qual altera os capítulos V e X do Livro V do Título I do Código Civil, para conferir novo tratamento aos institutos da exclusão da herança, relativamente à deserdação e à indignidade sucessória. Desta forma, pretende o legislador atualizar o ordenamento jurídico, colocando-o em consonância com a realidade social.  

De acordo com o PLS[19], o atual Capítulo X – Da deserdação, deverá ser chamado Da privação da Legítima. Sendo assim, fica autorizada a deserdação do herdeiro, quando este houver se omitido no cumprimento das obrigações do direito de família que lhe incumbiam legalmente; tenha sido destituído do poder familiar; ou não tenha reconhecido voluntariamente a paternidade ou maternidade do filho durante a sua menoridade civil. Ademais, o PLS 118/10 reduz o prazo do direito de demandar a privação da legítima de quatro para dois anos, contados da abertura da sucessão ou do testamento cerrado.

Registre-se que o Direito não é formado estritamente por leis. Os princípios, sobretudo ao se enxergar o Direito Civil a partir de uma ótica constitucional, possuem uma alta carga valorativa, podendo ser, pois, fundamento suficiente para o julgador que busca uma resposta justa para um determinado caso concreto.

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Nesse mister, Hironaka (2001) ensina que:

O direito do século XXI será diferente do direito dos anteriores séculos, exatamente porque o jurista de hoje tem uma atitude muito diferente da atitude do jurista de séculos anteriores. (...) Os seres humanos mudam e mudam os seus anseios, suas necessidades e seus ideais, em que pese a constância valorativa da imprescindibilidade da família enquanto ninho. A maneira de organizá-lo e de fazê-lo prosperar, contudo, se altera significativamente em eras até próximas, ou mesmo em culturas próximas. Ora, sob o vigor e a rigidez do direito codificado esse fenômeno pode se revelar engessado, por ser estreita demais a norma para tão expansível realidade.

A herança pautada no mero fator genético não parece ser, atualmente, fundamento jurídico plausível. Diante de uma clara, gradual e natural tendência para um direito mais humanizado, e considerando a grande incidência e importância dos princípios no ordenamento jurídico Pátrio, sobretudo o princípio da afetividade (no Direito das Famílias e Sucessório), encontra respaldo a ideia da deserdação por abandono afetivo. A afetividade é um princípio que abarca, na seara da família, outro princípio: o da solidariedade. Assim, com base na alegação e comprovação de ausência de vínculo afetivo, o autor da herança, por meio de testamento válido, está autorizado a deserdar seu herdeiro necessário.

4.2 A deserdação ante a alienação parental

Importante destacar, propedeuticamente, que os pais exercem sobre os filhos o poder familiar, decorrente do vínculo jurídico de filiação, alicerçado, sobretudo, no afeto. O artigo 1.631 do Código Civil reza que durante o casamento e a união estável, o poder familiar compete aos pais e na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade.

Note-se que o poder familiar consiste em um conjunto de direitos e responsabilidades que preenchem a relação entre pais e filhos. Sendo assim, a separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos, conforme determina o art. 1.632, do Diploma Civil. “O dispositivo acaba trazendo um direito à convivência familiar e, ao seu lado, um dever dos pais de terem os filhos sob sua companhia. Nessa norma reside fundamento jurídico substancial para a responsabilidade civil por abandono afetivo” (TARTUCE, 2011, p. 1139).

Fazendo-se uma correlação entre a alienação parental e o abandono afetivo, depreende-se que um dos pontos comuns entre ambos reside nos transtornos psicológicos que se originam da ausência de solidez do seio familiar, o que seria suficiente para gerar nos filhos grandes sequelas emocionais.

Indiscutivelmente, a boa formação familiar repercute não apenas no indivíduo de forma isolada, mas também produz reflexos nas relações sociais como um todo. A assistência moral e afetiva revela, pois, importante valor para o adequado desenvolvimento dos filhos (GOMES, 2008).

Quando um magistrado estabelece regime de visitas, após um divórcio conjugal, por exemplo, o objetivo maior é assegurar a convivência entre o filho e o genitor que não deteve a guarda, possibilitando a este a continuidade no acompanhamento do desenvolvimento, da educação e da formação daquele menor, priorizando, assim, o melhor interesse da criança ou adolescente.

O problema da alienação parental ou implantação de falsas memórias representa uma forma de abuso emocional. São inúmeras as causas que determinam o processo de alienação. Muitas vezes, o afastamento da criança de seu pai ou sua mãe pelo genitor que detém sua guarda, decorre de um inconformismo do cônjuge com o divórcio ou a separação, da falta - fundada ou infundada - de confiança em relação ao outro no que tange ao cuidado com os filhos, das condições econômicas após o desfazimento do vínculo conjugal, do sentimento de ódio que o genitor alienante nutre pelo genitor alienado, ou até de um sentimento exacerbado de posse sobre os filhos. Frise-se que, a imaturidade ainda permeia a vida da maioria dos casais no momento do divórcio, no tocante à guarda dos filhos.

Segundo os ensinamentos de Dias (2009, p. 418),

Esse tema começa a despertar a atenção, pois é prática que vem sendo utilizada de forma recorrente e irresponsável. Muitas vezes, quando da ruptura da vida conjugal, um dos cônjuges não consegue elaborar adequadamente o luto da separação e o sentimento de rejeição, de traição, faz surgir um desejo de vingança: desencadeia um processo de destruição, de desmoralização, de descrédito do ex-parceiro. Nada mais do que uma ‘lavagem cerebral’ feita pelo genitor alienador no filho, de modo a denegrir a imagem do outro genitor, narrando maliciosamente fatos que não ocorreram e não aconteceram conforme a descrição dada pelo alienador. Assim, o infante passa aos poucos a se convencer da versão que lhe foi implantada, gerando a nítida sensação de que essas lembranças de fato aconteceram. Isso gera contradição de sentimentos e destruição do vínculo entre o genitor e o filho. Restando órfão do genitor alienado, acaba se identificando com o genitor patológico, passando a aceitar como verdadeiro tudo que lhe é informado.

Em 26 de agosto de 2010, foi promulgada a Lei nº 12.318, denominada de Lei da Alienação Parental. Em seu artigo 2º, a lei traz a definição[20] do instituto da alienação parental. Ainda no mesmo dispositivo, a lei elenca formas exemplificativas de alienação parental, tais como realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade, omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço, dificultar contato de criança ou adolescente com genitor, ou mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós, entre outras condutas.

Note-se que o alienador pode ser o genitor, ascendente, tutor ou qualquer pessoa que represente a criança ou o adolescente, que pratique atos de alienação parental. Já o genitor afetado, que sofre com a alienação parental, é chamado de alienado.

Em que pese todo o sofrimento vivido pelo genitor vítima da alienação parental, a criança e o adolescente ainda são, indubitavelmente, as principais vítimas. Os sentimentos criados pelo alienador são de medo, rejeição, frustração, ódio. Uma violência contra a dignidade do ser humano, e de difícil reparação. A personalidade de uma pessoa que sofre alienação parental fica distorcida e futuramente pode desencadear em um mal para a sociedade.

São múltiplas as manobras utilizadas pelo genitor alienante para afastar o filho do genitor alienado, que vão desde a invenção de histórias para difamar ou denegrir a imagem do outro genitor, até a falsa denúncia de abuso sexual, maus tratos, etc. E essa situação de alienação parental pode alcançar um grau ainda maior de periculosidade, quando, não logrando êxito com a alienação pretendida, o alienante pratica crime contra aquele que seria o alienado.

É conhecido, em São Paulo, o caso de uma mulher que, inconformada com a perda do marido em decorrência da separação, assassinou os três filhos e, em seguida, suicidou-se. O homicídio e o suicídio perpetrados justificar-se-iam, consoante as palavras por ela deixadas, pelo fato de que, sem a sua presença, ninguém mais saberia cuidar de seus filhos. Daí, por não conseguir mais viver sem o marido, de quem se separara, entendia ela que os filhos também não teriam condições de continuar vivendo (FONSECA, 2006, p. 165).

Ainda de acordo com Fonseca (2006), a alienação parental pode desencadear o surgimento de uma síndrome: síndrome da alienação parental. A síndrome não se confunde com a mera alienação parental. Esta consiste no afastamento do filho de um dos seus genitores, por parte do outro genitor. A síndrome, por sua vez, relaciona-se às sequelas emocionais e comportamentais de que vem a padecer a criança vítima daquele alijamento.

Convém ressaltar que, como consequência da síndrome, a criança, quando na sua vida adulta, pode desenvolver um grave complexo de culpa por achar que foi cúmplice da injustiça contra o genitor alienado. Ademais, uma vez que são afastados do convívio, um filho e seu genitor, dificilmente conseguirão restabelecer o vínculo e o convívio destruídos.

Segundo Mendonça e Alvarenga (2011),

A síndrome da alienação parental foi descoberta nos Estados Unidos, em 1987, pelo psiquiatra infantil Richard Gardner e, posteriormente, difundida na Europa por François Podervyn, em 2001. A partir daí, aos poucos, foi difundida pelo mundo. No Brasil, essa síndrome vem sendo detectada há, mais ou menos, uns cinco anos.

A alienação parental, conduta geradora da síndrome de alienação parental, a julgar da postura do genitor alienante, fere brutalmente os direitos da personalidade e a dignidade humana. Desse modo, quanto mais cedo for detectada, para que haja uma intervenção por parte do Poder Judiciário, melhor será para a vida do menor - vítima desse tipo de abuso – e para o genitor alienado.

Nesse sentido, forçoso reconhecer, conforme explanado no tópico anterior, a grande relevância que possuem os princípios, uma vez que são orientadores da interpretação do ordenamento jurídico.

Assim, ensina Mello (2006, p. 271) que:

Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais.

Dessarte, da mesma maneira que o abandono afetivo, a alienação parental, por afetar de maneira profunda a saúde emocional de uma criança ou adolescente, representa uma forte razão para ensejar a deserdação, malgrado sejam as hipóteses autorizadoras desta, um rol taxativo.

4.3 A deserdação ante o abandono de incapaz

O direito civil contemporâneo começa a traçar novos caminhos em relação ao seu objeto de estudo. O Direito Constitucional, e em especial os direitos fundamentais constitucionais, começam a fazer parte da solução das lides privadas, e até mesmo a essência do direito comum civil começa a ser mais humanizada.

O rol da deserdação é taxativo pelo Código Civil, porém, um novo pensamento começa a surgir entre os doutrinadores brasileiros sob o argumento da humanização do direito privado.

O Código Civil[21] define, em seus artigos 3º e 4º, as pessoas absoluta e relativamente incapazes. No entanto, a incapacidade ora analisada, determinante para a deserdação em caso de abandono, refere-se àquelas pessoas (restringindo-se aos ascendentes, descendentes e cônjuges) desprovidas de consciência, indefesas, que não podem agir sozinhas e impossibilitadas de responder por seus próprios atos, independente de idade. Em outras palavras, pessoas que não dispõem de condições de se defenderem dos riscos gerados pelo abandono.

Diante disso, o abandono de incapaz, sem importar o fator gerador da incapacidade (que não se restringe às hipóteses de alienação mental ou grave enfermidade de ascendente, as quais autorizam a deserdação, segundo o art. 1962 do código civil), pode surgir como um motivo determinante para a deserdação, nesta nova ótica, tendo como fundamento a falta de afetividade, que é consolidada através do abandono.

Nas palavras de Hironaka (2010, p. 440),

Poucas relações são tão propícias à violência recíproca quanto as relações de família. Embora possamos ter uma ideia romântica e pueril da vida familiar, a verdade é que, assim como não há modelo de família, cada relação familiar em particular é, por vezes, marcada por situações de confronto que ultrapassam os limites do respeito e da civilidade.

O abandono poder ser moral, psicológico, econômico. O pai ou a mãe que deixa de prestar alimentos ao filho menor, o pai ou a mãe que deixa o filho em uma situação degradante, o filho que abandona os pais idosos deixando de prestar assistência financeira ou afetiva, o filho que tem conhecimento de uma doença que acomete o pai ou vice-versa e deixa de administrar o remédio indicado para a cura, são exemplos de abandono.

Ainda de acordo com Hironaka (2010), uma família afetivamente desintegrada representa terreno propício à falta de assistência mútua e à ausência de solidariedade entre seus integrantes. Assim como a dignidade, a solidariedade consiste em um valor. Mas não um valor em si, e sim uma maneira de agir amparada pelos valores de generosidade e humanidade.

Apesar de todas as formas de abandono decorrerem da ausência de vínculo afetivo – caso contrário, dificilmente o abandono existiria - neste tópico, especificamente, dar-se-á relevo ao abandono físico e material.

Considere-se a assistência representada pela prestação de alimentos. Um pai que deixa de prestar alimentos ao filho menor, dependente, vulnerável, incapaz de prover-se por seus próprios meios. Ainda que entre alimentando e alimentante não exista vínculo afetivo, deveria haver um mínimo de dignidade, marcada pela generosidade, isto é, pela capacidade de um pai saber ir além de si, enxergar a necessidade do filho (como ser humano) e praticar o bem, a solidariedade. “Porque família é, em essência, assistência mútua movida pelo amor – ainda que precisemos passar pelos infernos da sociedade para descobrir o autêntico valor das variadas formas de assistência” (HIRONAKA, 2010, p. 446).

São as ausências – de amor, afeto, solidariedade, generosidade e humanidade, que deságuam no abandono e causam, no outro, destruição e violência. A Constituição Federal[22], que consagra o direito à vida, estabelece o apoio mútuo entre pais e filhos. O próprio Código Penal[23] prevê penalidade para aquele que pratica o crime de abandono de pessoa incapaz, destacando uma forma simples e duas formas qualificadas do delito, bem como as hipóteses agravantes. Da mesma forma, a Lei nº 10.741/2003[24] (Estatuto do Idoso), a qual estabelece pena àquele que abandona pessoa idosa.

O amparo pelas normas legais de abandono de incapaz como crime leva-nos a uma indagação: se é possível poder restringir um dos maiores bens de uma pessoa que é a liberdade, seria moral não restringir a quem cometeu tal conduta o patrimônio?

O abandono traz consequências graves à vida de um ser humano, sendo elas, de ordem física, econômica e, sobretudo, psicológica. A dor, a humilhação, o sofrimento, o desprezo, originários daqueles que têm o dever de assistência e cuidado, são sentimentos que marcam de forma negativa e permanente a vida de uma pessoa. Equipara-se, certamente, à morte. Comumente, as maiores vítimas do abandono são crianças e idosos, por se encontrarem em uma fase da vida que mais demanda cuidado.

O desrespeito à dignidade humana é cristalino e aviltante nas situações de abandono de incapaz. Consagrando o princípio da dignidade humana nas relações afetivas familiares, Lôbo (2000) traz o seguinte pensamento:

O princípio da efetividade, assentado nesse tripé normativo, especializa, no campo das relações familiares, o macroprincípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da Constituição Federal), que preside todas as relações jurídicas e submete o ordenamento jurídico nacional. Immanuel Kant, em lição que continua atual, procurou distinguir aquilo que tem um preço, seja pecuniário seja estimativo, do que é dotado de dignidade, a saber, do que é inestimável, do que é indisponível, do que não pode ser objeto de troca. Diz ele: "No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está cima de todo o preço, e, portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade".

O abandono de incapaz, como ato cruel contra a vida humana deve refletir também no processo sucessório. Não é medida justa que aquele responsável por tal conduta receba o patrimônio do seu descendente, ascendente ou cônjuge, haja vista representar uma forma de prêmio por um comportamento deveras violento, covarde e vil.

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Sobre a autora
Ilara Coelho de Souza

Advogada; pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pela Escola Superior de Advocacia - OAB/PE; conciliadora no TJ/BA - Juizados Especiais da comarca de Juazeiro-BA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Ilara Coelho. Hipóteses contemporâneas da deserdação do testamento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4022, 6 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30005. Acesso em: 24 abr. 2024.

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