A prescrição aplicada ao poder disciplinar

09/08/2014 às 14:28
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A prescrição, em todas as matérias do direito, tem a função de ser meio de segurança jurídica aos litigantes em processo, seja este judicial ou administrativo. Assim, torna-se uma garantia, um direito fundamental que deve ser reconhecido imperativamente, e por esse motivo é que tem força de norma cogente (de ordem pública).

Frequentemente observamos que os responsáveis pela condução da máquina estatal agem em desobservância às regras e princípios administrativos, ou causam prejuízos à Administração. Deste modo, é dever do Estado apurar e punir transgressões administrativas e garantir que os seus servidores ou aqueles que com ele contratam, ajam estritamente de acordo com a lei, posto que esta é a manifestação da vontade coletiva.

Considerando-se a indisponibilidade de escolha dos servidores, o que gera o fato de a contratação e a demissão, bem como a imposição de qualquer outra sanção disciplinar, não poderem ocorrer por discricionariedade do administrador, o próprio Estado tem de estabelecer limites ao seu poder de punir os servidores envolvidos em situações de transgressões. A limitação do jus puniendi estatal está ligada sobremaneira às formalidades de processo, as quais são pressupostos, e também pelo transcurso do tempo máximo, tudo isso para aplicação de sanção imposta.

A prescrição, em todas as matérias do direito, tem a função de ser meio de segurança jurídica aos litigantes em processo, seja este judicial ou administrativo. Assim, torna-se uma garantia, um direito fundamental que deve ser reconhecido imperativamente, e por esse motivo é que tem força de norma cogente (de ordem pública).

A regra da prescritibilidade para as sanções de processo administrativo disciplinar, hoje unânime, salvo expressas exceções, foi, outrora, mitigada. Regulamentos estatutários anteriores e entendimentos em pareceres normativos e doutrina majoritária, chegaram a punir pela imprescritibilidade de algumas punições disciplinares em um passado não muito distante (COSTA, 2008).

O sistema administrativo disciplinar francês, que tem como expoente doutrinário Gaston Jèze, é regido de forma que o servidor com vínculo empregatício com a administração possa ser punido a qualquer tempo pelas faltas cometidas. Nas palavras do citado autor:

A prescrição da ação pública decorrente da repressão penal não é obstáculo ao exercício do poder disciplinar para infração acobertada pela prescrição. Em consequência, quando um funcionário vai ser atingido disciplinarmente, toda sua conduta funcional, desde sua nomeação pode ser examinadae tomada em consideração. (JÈZE, apud, PEREIRA, 1966, apud COSTA, 2008, p.271)

Por conta disso se faz urgente a análise da prescrição aplicada aos processos administrativos disciplinares brasileiros, para que se observe se os seus efeitos são compatíveis com o interesse público e, também, se está em harmonia com a sensação de segurança a qual se propõe.

1 Prescrição Aplicada aos Processos Administrativos Disciplinares

A normatização do serviço público no Brasil tem seu marco na República com a instituição, em 1939, no governo de Getúlio Vargas, do primeiro estatuto dos funcionários públicos da União, consubstanciado no decreto-lei 1.713/1939. Nessa legislação, nada é regulado quanto a prazos prescricionais para as infrações administrativas que aqueles funcionários viessem a cometer. As primeiras normas nesse sentido somente surgiram após a Constituição Federal de 1946 e o advento da lei 1.711/1952.

Esse Estatuto, instituído pela lei 1.711/52, inovou em diversos aspectos, principalmente quanto às formas de admissão por meio de aprovação em concurso (Artigo 13), a fixação do número de cargos (Art. 1°), a fixação dos vencimentos em lei (Artigo 3°) e a própria previsão de prescrição da pretensão punitiva do Estado em relação aos servidores (Art. 213).

Essas inovações, características do Estado democrático de direito, começaram a ser vistas, a época, como dificultadoras pelo próprio Estado em face de tamanhos “rigores” a serem observados na condução da máquina pública e de seus colaboradores (MARQUES Jr.). Em relação ao processamento das transgressões cometidas pelos servidores, eram definidos os seguintes prazos como limites para a devida apuração:

Art. 213. Prescreverá

I – Em dois anos, a falta sujeita às penas de repreensão, multa ou suspensão;

II – Em quatro anos, a falta sujeita:

a) à pena de demissão, no caso do § 2º do art. 207;

b) à cassação de aposentadoria ou disponibilidade

Parágrafo único – A falta também prevista na lei penal como crime prescreverá juntamente com este.

Assim, da leitura do citado artigo vigente à época, podemos rapidamente concluir que algumas transgressões eram prescritas e outras não, sendo imprescritíveis aquelas não alcançadas pelo texto normativo. Eram isentas de prescrição, as faltas puníveis com demissão, que não fossem as previstas no § 2º do art. 207(abandono de cargo por ausência injustificada durante 60 dias interpolados dentro de 12 meses) e que também não fossem previstas como crime. Esse era o entendimento majoritário naquele período.

Após a promulgação da C.R.F.B./88 foi necessário rever o estatuto dos servidores públicos civis federais, sendo editada pelo Congresso Nacional a lei 8.112/90, a qual revogou o códex anterior na sua totalidade. Na nova legislação, vigente até os dias atuais, a prescrição aplicada aos processos administrativos disciplinares e suas sanções passou a ser regulada da seguinte forma:

Art.142. A ação disciplinar prescreverá:

I - em 5 (cinco) anos, quanto às infrações puníveis com demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade e destituição de cargo em comissão;

II - em 2 (dois) anos, quanto à suspensão;

III - em 180 (cento e oitenta) dias, quanto à advertência.

§ 1o O prazo de prescrição começa a correr da data em que o fato se tornou conhecido.

§2o Os prazos de prescrição previstos na lei penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas também como crime.

Dessa forma, atualmente, as transgressões disciplinares que não forem apuradas em até cinco anos deixam de ser processadas e consequentemente o infrator deixará de ser punido, tendo em vista que o devido processo legal é requisito para aplicação de pena administrativa disciplinar, conforme explicado anteriormente.

Apesar da previsão legal exposta, é necessário que façamos a devida diferenciação entre o processo administrativo apuratório e a sanção aplicada consequente dele. Aquele é apenas meio desta. Conforme dito nos capítulos anteriores, o poder disciplinar é exercido por apuração por meio de processo administrativo, sendo este de cunho obrigatório. Constatada a transgressão praticada pelo servidor por meio desse processo, o Estado tem o poder-dever de puni-lo.

Fundamentado nisso, podemos chegar facilmente ao fato de que o decurso do tempo gera a perda do direito de punir, mas de forma alguma do direito de apurar os fatos que por ventura tenham causado prejuízo a Administração ou que tenham maculado a imagem desta. Isso é o que podemos concluir, por exemplo, do seguinte trecho:

Na verdade, revela-se ofensivo ao princípio da segurança jurídica que um servidor, depois de dez, quinze, trinta anos do cometimento de um ilícito, esteja ainda sujeito à interminável e imprevisível expectativa de ser punido pela Administração Pública, quiçá ao ponto de atingir o faltoso com absurdo de representar a cassação da aposentadoria do funcionário já inativo, tamanha a demora na imposição da reprimenda administrativa. (CARVALHO, 2011, p. 947, grifo nosso)

O assunto é tratado da mesma forma por José Armando da Costa:

A falta cometida por um funcionário faz nascer para a administração, nos termos do regime disciplinar aplicável, o direito de punição. Todavia, pode essa punição prescrever, se a Administração dentro de um certo lapso de tempo, não promover a responsabilização do servidor.que cometeu a transgressão. (COSTA, 2009, p. 78, grifo nosso) 

Esse entendimento está em consonância, também, com os fundamentos da prescrição, os quais repousam, dentre outros, no fato de uma punição tardia não cumprir com suas finalidades pedagógicas e de exemplaridade. Assim, podemos dizer que após o decurso do tempo de prescrição para determinada sanção, esta se torna nula. O mesmo não pode ser aplicado de forma obrigatória para o dever e direito da Administração de apurar determinado ato contrário a lei, devendo, inclusive, anotar os fatos, mesmo que prescritos, nos registros individuais do servidor envolvido na apuração, de acordo com o que rege o artigo 170 da lei 8.112/90, sendo defeso apenas a aplicação da sanção.

A extinção do processo, portanto, deve ser tratada como faculdade, cabendo à administração pública, de acordo com a conveniência, decidir pela conclusão, principalmente em se tratando de fatos graves e que gerem prejuízo à imagem desta ou aos cofres públicos. Isso é o que defende o doutrinador Themístocles Brandão: “A prescrição tem a faculdade de extinguir a ação repressiva, tornando nula a aplicação da pena, uma vez decorrido o prazo legal” (1966, apud CARVALHO, 2011, p. 949, grifo nosso).

Esclarecendo a importância da apuração administrativa disciplinar, mesmo que com seu objeto final prejudicado, orienta a Controladoria Geral da União, órgão de assistência correcional da Presidência da República, em seu Manual de Processo Administrativo Disciplinar (BRASÍLIA, 2013, p. 63): “Em casos graves, independentemente da prescrição, recomenda-se a instauração do procedimento disciplinar, até mesmo para que haja uma investigação profunda do que ocorreu, objetivando a adoção de medidas preventivas futuras”.

Diante de todas as informações trazidas e sem entrar no mérito da polêmica discussão entre prescrição e decadência, concluímos que o decurso do tempo, e seu fator erosivo nas relações faz surgir dentro do poder disciplinar do Estado, a perda da capacidade de punir o servidor, mas jamais a perda da prerrogativa de apurar os fatos por meio de processo, por conta, principalmente, do interesse público intrínseco a este, conforme descrito anteriormente.

É importante destacar que a apuração de transgressão disciplinar com sanção prescrita, antes mesmo da apuração ou da conclusão desta, não desrespeita as garantias constitucionais individuais do servidor. Isso porque ela oferta, na verdade, a possibilidade deste provar sua inocência, por exemplo. Caso contrário, em se comprovando sua culpabilidade, estará isento da pena aplicável, mas conforme visto, ainda assim terá os fatos anotados em seus registros funcionais.

Dessa maneira, garantimos o respeito à norma cogente da prescrição sem ferir o interesse público na apuração das irregularidades administrativas dos servidores do Estado. Essa simples apuração, sem consequências punitivas, não pode ser vista, como alguns poderiam defender, como constrangimento ao servidor. Afinal, o que é um processo administrativo disciplinar senão uma proteção, um exercício das garantias constitucionais do próprio servidor, sobretudo à ampla defesa e ao contraditório? É nesse contexto que Romeu Felipe Bacellar Filho (1998, apud, CARVALHO, 2011, p. 100, grifo nosso) particulariza: “Quem quer que seja acusado de fato que possa gerar efeito punitivo (não importando a sua gravidade) tem a proteção do processo administrativo”.

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Por outro lado, tendo em vista evitar um desprendimento de força estatal na apuração de processos “prescritos”, deve-se seguir as orientações da Controladoria Geral da União citadas, que apuram preferencialmente as faltas de natureza grave, como meio para tomar medidas preventivas futuras.

Esclarecido o fato de que é cristalino o poder, e porque não dizer o dever, de a Administração pública instaurar e concluir apuração de fatos que tenham suas possíveis sanções prescritas; é salutar o debate quanto à finalidade dessa apuração, posto que sua razão angular, a aplicação da pena, estaria prejudicada (prescrita).

2 A Importância da Apuração de Transgressões Disciplinares com Sanção Prescritas

Ao final de um processo administrativo disciplinar, diversos são os resultados possíveis, dentre eles estão: reconhecimento provado da inocência do acusado (excludente de ilicitude ou negativa de autoria), reconhecimento de inocência por falta de provas, reconhecimento de culpa.

O contraditório, princípio constitucional e direito garantido a todos litigantes em processo judicial e administrativo (Artigo 5°, LV da C.R.F.B/88), garante ao servidor o direito de provar que denúncias feitas contra sua pessoa são falsas. No entanto, aqueles fatos que não são regularmente apurados em todas as suas fases ficam impossibilitados de possuir um desses finais disponíveis. Assim, quando a administração decide não instaurar processo apuratório de fatos, que por ventura estejam com sua sanção consequente prescrita, está manifestamente tolhendo o direito de o servidor provar a sua inocência e esclarecer os fatos.

Pensar que esse tipo de apuração é irrelevante e desnecessário seria defender que o processo administrativo disciplinar é um mero meio de impor punição a servidores sabidamente culpados, quando sua real finalidade é apurar os fatos e possibilitar à Administração o conhecimento da verdade. A aplicação de sanção é uma consequência possível, mas não obrigatória.

Em suma, o direito ao contraditório do servidor, sobretudo com o fim de provar sua inocência, é uma das razões que fundamenta a regular apuração processual de transgressões que são a ele imputados mesmo que prescritas suas possíveis sanções, afinal, o instituto da prescrição como anteriormente dito, extingue a punibilidade, mas não a ilicitude (transgressão disciplinar).

Outro ponto necessário que se analise são as razões de existência do Artigo 170 a lei 8.112/90, citado anteriormente, mas que não é demais fazê-lo novamente, tendo em vista ser objeto do estudo: “Extinta a punibilidade pela prescrição, a autoridade julgadora determinará o registro do fato nos assentamentos individuais do servidor”. Sobre o referido artigo Ivan Barbosa Rigolin dispôs:

Parece estranho o dispositivo, uma vez que menciona ´extinção da punibilidade´ e não se poderia referir a lei a algo assim senão para significar que algum servidor era passível de ser punido, e contra ele havia a possibilidade de punição. Se existia, alguma falta grave deve ter cometido, mas esta falta, que afinal não ensejou sequer instauração de sindicância, enquanto não devidamente apurada pela Administração, jamais pode ser registrada no assentamento do servidor supostamente irregular, por de fato inexistente sob o aspecto formal. Como, então, anotar que foi extinta a punibilidade por prescrição de suposta falta cometida pelo servidor, se essa falta não foi nem mesmo objeto de sindicância? Como presumir culpa contra servidor, deixar de apurá-la e anotar em seu assentamento que em dado momento ´extinguiu-se a punibilidade´ daquele mesmo servidor por prescrição? A L. 8.112 traça aqui mais um grave descaminho até mesmo de ordem lógica, suscetível de reparação caso efetivamente praticado, inclusive, segundo parece, pela via do mandado de segurança: violação do direito líquido e certo de não ter assentamento funcional anotado por falta apenas suposta. (RIGOLIN, 2007, p. 333)

Note-se que o autor não compreende anotação de fatos transgressivos no resumo de assentamentos do servidor, sem que haja a devida apuração em processo. É nesse diapasão que José Armando da Costa também leciona:

Daí haver o então DASP, ainda sob o regime da Lei n 1.711/52 (que vigorou até o advento do atual estatuto de 1990), pacificado o entendimento de que somente se deve fazer tal registro quando a prescrição for reconhecida depois de haver sido apurada a falta no respectivo procedimento. Transcreva-se, pois, o inteiro teor da Formulação 36, que assim dispõe: Se a prescrição foi posterior à instauração do inquérito, deve-se registrar nos assentamentos do funcionário a prática da infração apurada.

(COSTA, 2006, p. 70-71)

A rigor, conclui a doutrina que a obediência ao artigo 170 da lei 8.112/90 pressupõe a devida apuração em processo disciplinar. Esse é o entendimento mais acertado, tendo em vista que anotação de transgressão nos registros de um servidor, sem que tivesse dado oportunidade para sua defesa e contraditório seria ir de encontro a todos os princípios da administração pública.

No presente caso, em virtude da necessidade de interpretação sistemática e adequada ao interesse público, sem contanto ferir as garantias individuais do servidor, é que a norma de ordem pública da prescrição ajoelha-se frente aos princípios da ampla defesa e do contraditório, sendo necessária a apuração de transgressão, mesmo que esta tenha suas possíveis sanções prescritas em razão do decurso do tempo. Após anotado no registro do servidor, aqueles fatos comporão seus antecedentes disciplinares, devendo ser para todos os efeitos considerados, inclusive para casos de reincidência, tendo em vista que, conforme exaustivamente demonstrado, a prescrição não extingue a ilicitude do ato.

Por conseguinte, os registros anotados hão de ser considerados ainda em casos de punições posteriores nos termos do artigo 128 da lei 8.112: “Na aplicação das penalidades serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais”.

Pensar diferente seria desconsiderar qualquer função para as anotações de transgressão com sanção prescrita. Ou seja, a prescrição, quando aplicada aos procedimentos administrativos disciplinares exime o servidor, exclusivamente, do cumprimento da sanção, jamais dos seus demais efeitos referentes à anotação nos registros e consideração nos antecedentes funcionais.

Ademais, é importante que se ressalte que a apuração desses procedimentos, apesar de importantes para a Administração, deve obedecer à conveniência, motivo pelo qual deve ser dada maior conotação aos casos de maior gravidade e que geraram maior prejuízo a Administração.

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Sobre o autor
Alan Lúcio de Andrade

Oficial do Corpo de Bombeiros do Estado do Estado do Ceará. Bacharel em Direito -Faculdade Farias Brito. Instrutor da Academia Estadual de Segurança Pública do Ceará.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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