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Julgamento liminar de improcedência do pedido

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É recomendável que os magistrados, ao julgarem liminarmente pela improcedência do pedido, utilizem pré-julgados nos quais se tenha decidido em conformidade com a jurisprudência nacional, com ênfase para os entendimentos sumulados do STF e do STJ.

Resumo: O artigo analisa aspectos controvertidos do instituto previsto no art. 285-A, do CPC, de sorte a esclarecer as possibilidades legais de sua utilização à luz dos princípios norteadores das reformas do CPC/73 e do Projeto do Novo Código de Processo Civil.

Sumário: 1. Introdução. 2. Dos requisitos. 2.1. Da questão “unicamente de direito”. 2.2. Da identidade das demandas. 2.3. Da “total improcedência” do precedente. 2.4. Do “juízo” prolator do paradigma. 3. Conclusão. Notas. Referências.


1. Introdução

A Lei n.º 11.277, de 7 de fevereiro de 2006, introduziu ao Código de Processo Civil Brasileiro o art. 285-A, [1] que outorgou aos magistrados a faculdade de, recebida a petição inicial, dispensar a citação do réu e efetuar liminarmente o julgamento de mérito pela improcedência do pedido, quando a questão for “unicamente de direito” e, “no juízo, já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos” (BRASIL, 1973, p. 1). No mesmo ano, a Lei n.º 11.382, de 6 de dezembro, alterou a redação do inciso III, do art. 739 do CPC, [2] para admitir a rejeição liminar dos embargos à execução quando “manifestamente protelatórios” (BRASIL, 1973, p. 1).

Originalmente, a extinção liminar do processo no direito brasileiro estava associada às hipóteses de indeferimento da petição inicial, constantes do art. 295 do CPC, que versam, em sua maioria, sobre questões processuais (exceções à regra são o inciso IV do caput do dispositivo, que admite o indeferimento da exordial com base na consumação da prescrição ou decadência, e o inciso III do parágrafo único, do mesmo art. 295, do CPC, que versa sobre a impossibilidade jurídica do pedido, ambos constituindo fundamento de mérito para a medida). [3] Com o advento das leis n.º 11.277/2006 e n.º 11.382/2006, ampliou-se o rol de situações que permitem o julgamento do mérito in limine litis, isto é, no início da lide, sem que sequer se proceda à citação do réu. Trata-se de instituto denominado pela doutrina de julgamento liminar do mérito ou juízo de improcedência prima facie.

A rejeição sumária dos embargos à execução manifestamente protelatórios pode ser motivada exclusivamente pelas circunstâncias do caso concreto, bastando ao julgador apontar elementos intrínsecos à causa que demonstrem o evidente descabimento da impugnação e o inequívoco intuito protelatório do executado. Diversamente, o julgamento liminar de mérito com base no art. 285-A do CPC exige seja a sentença fundada em decisão anterior prolatada pelo juízo, a ser obrigatoriamente reproduzida pelo magistrado no veredicto de improcedência. Como se vê, nessa última hipótese, está-se diante de nítido exemplo do poder conferido aos precedentes judiciais por recentes alterações no processo civil brasileiro, pelo que o instituto se mostra de interesse para o presente estudo. É a eficácia persuasiva do precedente que permitirá ao juiz, por questões de economia e celeridade processuais, deixar de comunicar ao réu a propositura da demanda e proferir de imediato a sentença de improcedência – rito especial que propicia uma rapidíssima entrega da prestação jurisdicional.


2. Dos requisitos

A lei estabelece dois requisitos para a utilização da prerrogativa do julgamento prima facie de improcedência do pedido no processo de conhecimento: 1) a matéria controvertida deve ser “unicamente de direito”; 2) é preciso que haja, “no juízo”, prévia sentença de “total improcedência” em outros “casos idênticos”. (BRASIL, 1973, p. 1) Ambas as condicionantes comportam temperamentos, diante do que se faz necessário um exame mais detido de cada uma delas.

2.1. Da questão “unicamente de direito”

Em primeiro lugar, ao referir a questão “unicamente de direito”, não está o legislador, por óbvio, a supor a existência de demanda fundada exclusivamente em tese jurídica, já que toda causa de pedir processual comporta, necessariamente, a presença de elementos de fato. [4] Há, longe disso, a simples indicação de que a matéria controvertida deve ser a de direito, o que leva a crer que a narrativa fática já deve estar comprovada de plano pelo autor da ação.

É preciso ponderar, porém, que uma questão somente pode ser tida como juridicamente incontroversa após operada a confissão expressa ou tácita, que se dá pelo reconhecimento manifesto dos fatos pelo réu ou pela ausência, na contestação, da impugnação específica dos fatos narrados na exordial (BRASIL, 1973, p. 1). [5] Uma vez que não há citação no procedimento do art. 285-A do CPC, tem-se que, a despeito da potencial robustez da prova acostada à inicial, tecnicamente, os fatos alegados pelo autor não serão incontroversos no momento do julgamento. De igual forma, no referido procedimento, não se pode considerar que a tese jurídica seja necessariamente controvertida, já que o réu poderia, no todo ou em parte, admitir o direito alegado, efetuando o pagamento espontâneo da obrigação ou realizando transação em torno do objeto litigioso.

Logo, inadequada a nomenclatura utilizada pelo legislador, que, em verdade, quis referir-se às situações em que a tese jurídica, abstraídas as alegações de fato, já tiver sido rechaçada por anterior deliberação do juízo. A problemática terminológica se justifica pela novidade que é, no Brasil, a ideia de processo e julgamento sem citação do réu, vez que, segundo a teoria clássica, que remonta ao vetusto CPC de 1939, a relação jurídica processual somente se formava com a triangulação operada pelo chamamento ao processo do réu ou interessado a fim de se defender (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2009, p. 310-311).

Nessa perspectiva, poder-se-ia arguir que, sob o rito do art. 285-A, do CPC, seria irrelevante que a matéria fática estivesse previamente demonstrada pelo autor da demanda. Com efeito, em respeito ao princípio do contraditório, a lei somente permite o julgamento liminar de mérito quando a sentença for pela improcedência do pedido. Em se tratando de julgamento desfavorável ao autor, poder-se-ia considerar desnecessário que a questão de fato fosse “incontroversa”, no sentido de estar suficientemente demonstrada com a documentação trazida junto à inicial, vez que a não aceitação das premissas de direito já serviria de fundamento à decisão.

A reflexão não merece prosperar, contudo. É que, nos termos do § 1º, do art. 285-A, do CPC, é facultado ao autor apelar da sentença de improcedência liminar, diante do que pode o tribunal, acolhendo a tese jurídica que embasa a ação, reapreciar a matéria de fato e, à luz das circunstâncias, julgar pela procedência do pedido autoral (BRASIL, 1973, p. 1). Tal é a razão pela qual, na dicção legal, a matéria “controvertida” tem de ser “unicamente de direito”, isto é, os fatos que justificam a demanda devem ser passíveis de verificação por prova pré-constituída. Não obstante a péssima redação, o que se extrai do texto legal é que o novel procedimento somente deve ser aplicado quando a causa estiver efetivamente pronta para julgamento, tanto na perspectiva do direito quanto da dos fatos.

Realmente, generalizar o julgamento liminar do mérito para as hipóteses em que a demonstração dos fatos exige larga dilação probatória seria tratar a improcedência prima facie de forma idêntica à impossibilidade jurídica do pedido. E é cediço que há uma diferença gritante entre os institutos: na impossibilidade jurídica, há uma vedação legal ao pedido constante da exordial (NEVES, 2013, p. 94), a tal ponto que o requerimento de mérito produz a inépcia da inicial, autorizando o magistrado a indeferi-la de plano (BRASIL, 1973, p. 1); [6] na improcedência prima facie, não obstante inexista expressa previsão legal autorizando a tutela jurisdicional do pedido, a ordem jurídica, a priori, não o proíbe, pelo que não se pode tachá-lo de impossível, embora não plausível. Por essa razão, o próprio legislador processual autoriza o magistrado a, interposta a apelação, retratar-se da sentença liminar (§ 1º, do art. 285-A, do CPC), [7] cercando-se, ainda, para a utilização do instituto, de cuidados quanto à possibilidade de demonstração in limine litis das questões de fato, o que faz, precisamente, por vislumbrar chances reais de reforma da juízo sumário pelas instâncias recursais. Por conseguinte, no rito de julgamento pela improcedência prima facie, faz diferença que os fatos sejam ou não passíveis de prova no momento da propositura da ação.

Compartilhando dessa visão, Fredie Didier afirma que, na sistemática do art. 285-A, do CPC, o pressuposto legal de ser a causa “unicamente de direito” deve ser entendido como a exigência de que a matéria fática possa ser comprovada pela via documental. Sustenta o autor que o julgamento liminar de mérito é uma hipótese excepcional de julgamento antecipado da lide (art. 330, do CPC) [8] – uma na qual se antecipa ainda mais a fase decisória para se admitir a realização do julgamento antes mesmo da citação do réu, nos casos em que a decisão seja pela improcedência do pedido (DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 458). A concepção, aqui, é a de que o permissivo legal para o repúdio prima facie do pleito autoral repousa na ideia da desnecessidade de manifestação do réu, a quem interessa o julgamento de improcedência, nos mesmos moldes do que já ocorria com o instituto do julgamento antecipado da lide, em que se reputava dispensável a fase instrutória. [9] O raciocínio procede, já que, consoante o imperativo do  art. 396, do CPC, [10] é dever do autor trazer junto com a inicial todos os elementos probatórios de natureza documental, pelo que, sendo os fatos plenamente demonstráveis por essa via, estaria a causa, ao menos na perspectiva do autor, pronta para julgamento desde o momento da propositura da demanda (BRASIL, 1973, p. 1). Essa qualidade do feito, que permite a cognição profunda do pleito autoral já no primeiro exame dos autos pelo magistrado, autoriza, inclusive, que o tribunal, no julgamento de eventual apelação interposta pelo demandante, aplique por analogia a teoria da “causa madura”, prevista no art. 515, § 3º, do CPC, [11] e, em vez de anular a decisão, determinando o retorno dos autos para a instrução na inferior instância, proceda à reforma da sentença com o juízo de procedência da demanda, já que se terá oportunizado o contraditório na forma da intimação do réu para oferecer contrarrazões:

Como se trata de causa cujo julgamento dispensa a produção de outras provas (porque as questões de fato se provam documentalmente), não assustará se o tribunal, acaso pretenda reformar essa sentença, ao invés de determinar a devolução dos autos à primeira instância, também examine o mérito e julgue procedente a demanda, sob o argumento de que o réu já apresentou a defesa (em forma de contrarrazões) e a causa dispensa atividade probatória em audiência (está pronta para ser decidida, em uma aplicação analógica do art. 515, § 3º, CPC). É possível que os tribunais interpretem o dispositivo dessa maneira; por isso, o réu, em tal situação, deverá fazer as suas contrarrazões considerando essa circunstância. (DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 460)

2.2. Da identidade das demandas

Em segundo lugar, coloca o legislador como requisito para o veredicto de improcedência prima facie a condição de “no juízo” já haver sido proferida sentença de “total improcedência” em outros “casos idênticos” (BRASIL, 1973, p. 1). A ideia núcleo da exigência legislativa é que o procedimento do art. 285-A do CPC se presta ao julgamento de causas repetitivas, restando autorizado ao juiz indeferir liminarmente o pedido principal quando já se tenha concluído pela improcedência da tese jurídica em demandas anteriores, nas quais a questão foi debatida à exaustão, sob a égide do contraditório.

Logo, uma primeira observação a ser realizada é de que a identidade apta a permitir o procedimento é a das questões jurídicas suscitadas, e não a da demanda integralmente considerada (partes, pedido e causa de pedir). Conforme leciona Daniel Amorim Assumpção Neves:

Não resta dúvida de que por “casos idênticos” o intérprete deve entender casos similares, nos quais a questão jurídica discutida é a mesma. Caso contrário, a interpretação literal do dispositivo legal exigiria do juiz não um julgamento de improcedência liminar, mas um julgamento sem resolução do mérito por litispendência ou coisa julgada, formas de julgamento geradas pela repetição de demandas idênticas. Dessa forma, o campo de aplicação do art. 285-A do CPC não é a identidade de demandas, mas a proximidade delas em razão da identidade de questões jurídicas e proximidade das questões fáticas que compõem seu objeto. (NEVES, 2013, p. 318)

De fato, o instituto do julgamento liminar de mérito no processo de conhecimento foi desenvolvido com o fito de conferir um tratamento mais econômico e racional pelo Judiciário às ações repetitivas, também denominadas demandas de massa, próprias, dentre outras, das relações de consumo, das causas previdenciárias, das causas tributárias e das que versam sobre servidores públicos, em que se põe sob julgamento a mesma questão jurídica, estando os sujeitos em situação fática bastante semelhante. Como bem esclarece  Didier,

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Nessas causas, discute-se normalmente a mesma tese jurídica, distinguindo-se apenas os sujeitos da relação jurídica discutida. São causas que poderiam ser reunidas em uma ação coletiva. São exemplos: discussão de reajuste para uma categoria profissional, inexigibilidade de certo tributo, determinado direito em face de uma concessionária de serviço público etc. Se o magistrado já tiver concluído, em outros processos, que aquela pretensão não deve ser acolhida, fica dispensado de citar o réu, podendo julgar antecipadamente o mérito da causa. (DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 459)

2.3. Da “total improcedência” do precedente

Uma segunda anotação cabe relativamente à expressão “sentença de total improcedência”, escolhida pelo legislador. Daniel Amorim Assumpção Neves (2013, p. 319) afirma que é “plenamente possível que a improcedência tenha sido parcial, desde que referente à matéria que será objeto da demanda a ser extinta com julgamento de improcedência liminar.” Aduz, ainda, que, não obstante o dispositivo legal mencione expressamente “sentença”, “parece possível a interpretação extensiva para permitir a aplicação do art. 285-A do CPC nas ações de competência originária dos tribunais” (NEVES, 2013, p. 319).

No que tange à utilização de paradigmas de improcedência parcial, parece inegável que a intenção do legislador foi que a ratio decidendi dos pré-julgados servisse de fundamento à abreviação do rito comum ordinário. Logo, ao referir a “total improcedência” não estabelece a lei uma necessária identidade entre o dispositivo do precedente e o da decisão que se está a prolatar, mas, antes, uma identidade entre as razões de decidir. Isto é, nada impede que o dispositivo da sentença-paradigma seja de improcedência parcial, desde que a improcedência seja total na parte concernente à questão jurídica que se quer rejeitar liminarmente. O que tem de ser totalmente improcedente é a sentença proferida prima facie, a qual tem de reproduzir julgado anterior em que houve o afastamento total da proposição de direito. Noutras palavras: a tese jurídica discutida na causa repetitiva precisa ter sido julgada totalmente improcedente pela sentença paradigma, mas o dispositivo desse mesmo pré-julgado não tem de ser de total improcedência, vez que a demanda pode ter abrangido outros pedidos, reputados procedentes, que não guardam relação com a proposição de direito afastada.

Na verdade, é possível até que um mesmo pedido julgado parcialmente improcedente comporte um juízo de total improcedência de uma tese jurídica utilizada como causa de pedir. “É que, eventualmente, um mesmo pedido pode estar baseado em mais de uma tese, sendo julgado parcialmente procedente pelo acolhimento de uma e total rejeição de outra.” (WOLKART, 2013, p. 77) Logo, perfeitamente possível que um pedido parcialmente improcedente seja utilizado como paradigma para fins de julgamento liminar de mérito, bastando, para tanto, que a tese jurídica que se pretende reproduzir tenha sido integralmente rechaçada nos fundamentos da sentença-tipo.

2.4. Do “juízo” prolator do paradigma

Um terceiro e último comentário acerca dos requisitos previstos no art. 285-A do CPC diz respeito à regra de que o julgado paradigma deve advir do “juízo” que busca se valer do rito de improcedência prima facie. Para Arruda Alvim (2008, p. 245), no que é secundado pela maior parte da doutrina, a decisão que serve de base ao julgamento liminar do mérito deve estar de acordo com a jurisprudência das cortes hierarquicamente superiores ao órgão sentenciante, devendo-se dar ênfase especial aos entendimentos do STF e do STJ. Em palavras do autor:

O art. 285-A do CPC deve ser interpretado sistematicamente, à luz de outras regras jurídico-processuais relativas à formação, revisão e estabilização das decisões judiciais. Considerando que o sistema jurídico-processual mostra evidente preferência pelos entendimentos sumulados ou, até mesmo, manifestados pela jurisprudência dominante (cf., por exemplo, art. 518, § 1º, na redação da Lei n.º 11.276/2006 e art. 557, ambos do CPC), o novo art. 285-A do CPC deve ser compreendido dentro desse contexto, devendo o juiz evitar a reprodução de sentenças que adotem orientação contrária àquela manifestada por órgão jurisdicional que lhe seja hierarquicamente superior, em especial pelo STF e STJ, já que uma sentença assim proferida, justamente por destoar de orientação jurisprudencial dominante ou sumulada, fatalmente será objeto de apelação. Não sendo assim, a aplicação do art. 285-A do CPC poderia resultar em manifesto desperdício de tempo e de atividade jurisdicional, o que estaria em descompasso com a garantia constitucional de duração razoável e celeridade da tramitação do processo (ALVIM, 2008, p. 245)

A noção de que o paradigma proferido no “juízo” deve estar em consonância com a jurisprudência das cortes superiores ou do tribunal a que estiver vinculado o órgão de primeira instância encontra guarida na interpretação teleológica do instituto da improcedência liminar. De fato, busca-se, com a medida, abreviar o curso de processo fundado em tese jurídica reiteradamente tida por improcedente pelo Poder Judiciário. A sentença bem fundamentada, que demonstre encontrar-se o entendimento consolidado na jurisprudência local e nacional, por certo há de desestimular o prolongamento do feito pela via recursal, ante a previsão do insucesso da pretensão deduzida. Se, porém, o juízo reproduz sentença que destoa da orientação da corte de apelação ou dos tribunais superiores, por vezes sedimentada em enunciados sumulados, viola-se francamente o fim legal, na medida em que o julgado, acertadamente, desafiará o recurso de apelação, cujo provimento causará ainda mais instabilidade às relações de direito material e processual, com o inevitável fomento da condução do feito à jurisdição superior, ante o justificado clima de insegurança jurídica instalado.

Uma perspectiva contrária, porém, é a de que, com fundamento na autonomia funcional, podem os juízos de primeira instância reproduzir o teor de julgados seus, independentemente do que venha a ser a orientação dos tribunais. Daniel Assumpção, nesse sentido, não obstante registre haver crítica por parte da doutrina, entende ser o texto legal “suficientemente claro ao prever o juízo responsável por suas prolações”, aduzindo que “pouco importa também a posição dos tribunais a respeito da matéria, porque o dispositivo não leva em consideração esse dado” (NEVES, 2013, p. 319). A ideia possui algum sentido, porquanto, como já referido, tratando-se de causa pronta para julgamento (matéria “controvertida” que é “unicamente de direito”) e, respeitado o contraditório pela intimação do réu para o oferecimento de contrarrazões, poderá o tribunal, caso interposta apelação, dar provimento ao recurso, reformando a sentença liminar para julgar procedente o pedido do autor (DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 460). Isto é, eventual “dano” causado pelo julgamento que contraria a orientação jurisprudencial poderá ser sanado na etapa decisória imediatamente seguinte, sendo certo que se resguarda, aqui, a autonomia dos órgãos judiciários de inferior instância, princípio de elevada importância no sistema jurisdicional, que possui a inegável função de inspirar o debate, estimulando a renovação de compreensões e horizontes pelas cortes superiores, incumbidas de dar a última palavra sobre o direito. E é razoável esperar-se que um feito tramite por, no mínimo, duas instâncias, já que a instauração da demanda recursal, que implementa o princípio universal do duplo grau de jurisdição, não é algo que possa ser controlado pelo Judiciário, representando, ao revés, iniciativa relegada ao talante da parte vencida, a qual, dada a insatisfação própria da sucumbência, em regra, explora todas as alternativas passíveis de reverter um resultado que lhe seja desfavorável. A esse respeito, há de se convir que, sendo a jurisdição obra humana, e, como tal, falível, um mínimo de cautela, consistente na revisão do julgado por um segundo órgão judiciário, chega a ser salutar e recomendável – do que é prova o reexame necessário nos casos de sucumbência do poder público – não se podendo atropelar o bom senso por uma sanha desenfreada pela celeridade processual.

Ocorre que essa noção esbarra em outros problemas de ordem teórica e prática. Se o magistrado sentencia em desconformidade com a jurisprudência consolidada e a parte, por razões diversas, dentre as quais a própria deficiência de representação, deixa de recorrer, autorizando a formação da coisa julgada, ter-se-á a negativa ao jurisdicionado de um direito reconhecido indistintamente em território nacional por força de uma estreita e localizada visão judicial. Como é possível aceitar teoricamente que partes em idêntica situação fático-jurídica, e em circunstâncias espácio-temporais extremamente semelhantes, por isso mesmo ensejadoras de causas consideradas repetitivas ou demandas de massa, recebam de um mesmo Judiciário nacional provimentos diametralmente opostos? Seria razoável admitir uma quebra assim ostensiva do princípio da isonomia em nome da defesa do principio da autonomia funcional, quando é certo que pode o magistrado, no julgado em que aplica a orientação jurisprudencial, fazer a ressalva de seu próprio ponto de vista e, ainda, defendê-lo em obras de doutrina?

Ademais, a se compreender o “juízo” como a primeira instância de julgamento, haveria problemática relativamente às varas recém-instaladas, em que não há julgados a servir de paradigma. E, caso se pretendesse solver essa questão por considerar-se a jurisprudência do juiz, mais gritante ainda seria o império da desigualdade, na medida em que, havendo mais de um magistrado em exercício na vara (o que, na prática, ocorre por razões diversas, desde a lotação permanente de um juiz substituto até a acumulação do juízo por um magistrado de outra vara, nas hipóteses de afastamento legal do titular), e tendo os julgadores entendimentos dissonantes sobre a questão jurídica, vislumbrar-se-ia, em um mesmo “juízo”, e para casos “idênticos”, diferentes procedimentos – um em que se teria aplicado o art. 285-A do CPC, com o encerramento célere do processo, e outro demandando longa tramitação, ante a impossibilidade legal de julgamento de procedência sem citação. Nesse cenário, em um mesmo “juízo”, a economia processual de um magistrado seria anulada pelo desperdício de jurisdição do outro (WOLKART, 2013, p. 79-80).

A ideia de que a sentença-paradigma para a improcedência prima facie deve estar de acordo com a jurisprudência nacional, atendendo ao forte apelo da doutrina, foi incluída no Projeto de Lei do Novo Código de Processo Civil, [12] atualmente em trâmite no Congresso Nacional. Segundo Daniel Assumpção,

O tema é tratado no art. 307, do PLNCPC, que amplia as hipóteses de cabimento do julgamento liminar de improcedência. Nota-se a adoção de entendimento doutrinário no sentido de que o julgamento liminar de improcedência não poderia ser realizado exclusivamente em razão de precedentes do próprio juízo, sendo mais seguro se vincular essa espécie de julgamento a posicionamentos pacificados pelos tribunais. São três as novas hipóteses de cabimento: (i) pretensão que contrariar sumular do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça; (ii) pretensão que contrariar acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; e (iii) pretensão que contrariar entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência. No seu § 1º, o dispositivo inclui a prescrição e a decadência, atualmente prevista no art. 295, IV, do CPC, limitando o indeferimento da petição inicial somente às sentenças terminativas. (NEVES, 2013, p. 319)

Logo, ao que tudo leva a crer, dentro em breve, a prolação de sentença de improcedência sem citação exigirá que a ratio decidendi reproduzida na primeira instância esteja em consonância com o entendimento do STF ou do STJ cristalizado na forma de súmula ou de acórdão proferido em sede do procedimento especial de julgamento de causas repetitivas. É a postura coerente com a finalidade precípua do instituto, que se alinha ao movimento maior do moderno processo civil, centrado na racionalidade e economia inerentes à observância dos precedentes judiciais.

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Sobre o autor
Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - dupla diplomação. Ex-Assessor da Justiça Federal de Primeira Instância na 5ª Região. Ex-Assessor do Ministério Público Federal na 1ª Região. Atualmente, é Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA JÚNIOR, Cláudio Ricardo Silva. Julgamento liminar de improcedência do pedido. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4037, 21 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30332. Acesso em: 20 abr. 2024.

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