4. JUSTIÇA SOCIAL E LIBERDADE
O ponto crucial da relação entre justiça social e liberdade é a total incompatibilidade existente entre ambas.
A ideia de justiça distributiva só poderia ser alcançada obrigando os indivíduos a obedecerem às normas de conduta que determinam as vantagens que serão auferidas pelos membros da sociedade. A obediência dessas regras específicas de conduta acabaria por impedir que os indivíduos atuassem segundo o seu conhecimento, o que, “é a essência da liberdade”[36].
O indivíduo livre pode estar limitado por regras de conduta, mas estas devem ser apenas normas gerais, que determinem, apenas, o caráter formal das atividades numa ordem.
Faz-se aqui, ainda, a distinção entre norma geral – que produz, apenas, meios para a consecução de objetivos individuais – e regras específicas, emitidas pelo Estado, que possuem normas com propósitos e fins pré-estabelecidos e que atingem determinados membros.
O que se combate é a produção de regras tendentes a “corrigir” intencionalmente as diferenças sociais, de modo que ele denomina o segundo volume da obra analisada de “Miragem da justiça social” exatamente com esse objetivo; segundo o autor, não é possível planejar a sociedade a ponto de presenciar uma distribuição equânime da totalidade da riqueza produzida entre os membros, propositadamente.
Nessa mesma linha de raciocínio, o trecho da obra Knowledge, Economics, and Coordination: Understanding Frederich August von Hayek’s Legal Theory traz importantes considerações acerca desta teoria:
A “miragem da justiça social” é a crença em que a distribuição específica dos rendimentos ocorre independentemente do processo de produção e transação. As regras de comportamento só servem para o governo como meio pelo qual vários propósitos e os planos que por ele são perseguidos. Como tal, estas regras se destinam a reconciliar as ações realizadas por indivíduos diferentes dentro da ordem geral regidas por estas normas. Em contraste, um comando serve a um propósito específico e, como tal, está em conflito direto com as regras de conduta justa. Em síntese, leis discriminatórias minam as regras de conduta justa e também o quadro normativo de uma sociedade justa[37].
Importante lembrar que a busca de uma ordem jurídica justa é, até hoje, alvo de constantes reflexões. André Franco Montoro ressalta:
Não há razão para que o jurista se envergonhe de sondar os fundamentos de uma ordem jurídica justa, ainda que a tarefa exija incursões laterais no campo da antropologia filosófica e de outras ciências não jurídicas. A preocupação com a ´boa sociedade` não pode ser posta de lado pela ciência social, e não deve ser relegada por ela aos políticos e legisladores absorvidos pela permanência dos problemas práticos do momento. Se a procura da justiça e da razoabilidade do direito for abandonada pelos espíritos mais esclarecidos, sob a alegação de que a justiça é uma noção sem sentido, quimérica irracional, então existe o risco de a espécie humana retroceder a uma condição de barbárie e ignorância em que o irracional predominará sobre o racional, e em que as negras forças do preconceito talvez ganhem a batalha contra os idéias humanitários e as forças do bem e da benevolência[38].
Fato é que se interpretássemos o direito como a obediência a toda e qualquer norma de conduta, bem como qualquer ordem emitida por autoridades, teríamos a mera legalidade, desprovida da liberdade individual.
Ressalvada a possibilidade de o governo garantir uma renda mínima[39] aos indivíduos, o que não restringiria a liberdade. Todavia, é inviável que o governo determine a remuneração de diferentes serviços, sob pena de interferir no mecanismo do mercado que orienta a direção dos esforços individuais.
Ao final do seu pensamento sobre justiça social, Frederich August von Hayek evidencia claramente que o conceito do termo é vazio, uma vez que descarta o funcionamento de uma sociedade que protege a liberdade individual:
O que espero ter deixado claro é que a expressão ‘justiça social’ não é, como a maioria das pessoas provavelmente supõe, uma expressão ingênua de boa vontade para com os menos afortunados, tendo, antes, se tornado uma insinuação desonesta de que se tem o dever de concordar com uma exigência feita por algum grupo de pressão incapaz de justificá-la concretamente. Para que o debate político seja honesto, é necessário que as pessoas reconheçam que a expressão é desonrosa, do ponto de vista intelectual, símbolo da demagogia ou do jornalismo barato, que pensadores responsáveis deviam envergonhar-se de usar, pois, uma vez reconhecida a sua vacuidade, empregá-la seria desonesto. Talvez, em decorrência de longos esforços para averiguar o efeito destrutivo da invocação de “justiça social” sobre nossa sensibilidade moral, e de ter encontrado repetidas vezes até eminentes pensadores usando irrefletidamente a expressão, tenha eu ficado demasiado alérgico a ela, mas adquiri a forte convicção de que o maior serviço que posso ainda prestara a meus semelhantes seria poder fazer com que, entre eles, os oradores e escritores sentissem pra sempre total vergonha de empregar a expressão “justiça social”[40].
A sociedade livre, por sua vez, é aquela em que há normas a serem aplicadas igualmente a todos “a justiça, no sentido de normas de conduta justa, é indispensável à interação de homens livres”[41].
No contexto de liberdade, insere-se o sistema de mercado, a seguir analisado, que privou a sociedade do comando de um poder político que determinaria a posição material dos indivíduos.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Notas
[1] TUMA, Eduardo. A tributação na perspectiva do estado neoliberal – Leitura da obra Law, Legislation and Liberty, de Friedrich August von Hayek. São Paulo: PUC, 2010.
[2] Cf. HAYEK, Frederich August von. Direito, Legislação e Liberdade. Tradução de Anna Maria Capovilla. São Paulo: Editora Visão, 1985, vol. II, p. 80.
[3] Idem, ibidem, p. 82.
[4] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Trad. Almiro Pisetta; Lenita M. R. Esteves, p. 12.
[5] Cf. HAYEK, Frederich August von. Idem, vol. II, p. 80.
[6] Cf. HAYEK, Frederich August von. Idem, vol. II, p. 80.
[7] Karl Marx publicou em 1848 o Manifesto Comunista, em que idealizou uma sociedade com distribuição de renda; sugere um curso de ação para uma revolução socialista através da tomada do poder pelos proletários e faz duras críticas ao modo de produção capitalista e na forma como a sociedade se estruturou sob essa égide.
[8] Cf. HAYEK, Frederich August von. Idem, vol. III, p. 182.
[9] Cf. HAYEK, Frederich August von F.A. Idem, vol. III, p. 183.
[10] Idem, ibidem, p. 183.
[11] ZACHER, Friedrich Hans, O Direito Constitucional e a Intervenção no Estado Social. Munique: Ludwing-Maximilians, 1962, p. 134.
[12] Cf. HAYEK, Frederich August von. Idem, vol. II, p. 82.
[13] KAUFMANN, Arthur. Op. cit., p. 244.
[14] Cf. HAYEK, F.A. Idem, vol. II, p. 82.
[15] Após esta reflexão, Frederich August von Hayek ressalta que, muito embora possa haver a aceitação, quase universal, de que a justiça social é a solução para transformação da vida em sociedade, de modo a satisfazer todos os anseios dos seus membros, isso não torna válido o seu conceito. Faz, ainda, uma comparação entre a busca pela justiça social e a crença religiosa, afirmando que “ambas trazem paz para quem nelas crêem, mas temos obrigação de combater quando se torna pretexto para a coerção de outros homens”. Cf. HAYEK, Frederich August von. Idem, vol. II, p. 82.
[16] Cf. HAYEK, Frederich August von. Idem, vol. II, p. 84.
[17] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1984, 6ª edição, pp. 117-118. Tradução: Marco Aurélio Nogueira.
[18] Cf. HAYEK, Frederich August von. Idem, vol. II, p. 86.
[19] TUMA, Eduardo. A tributação na perspectiva do estado neoliberal – Leitura da obra Law, Legislation and Liberty, de Friedrich August von Hayek. São Paulo: PUC, 2010.
[20] (...) “o Kosmos do mercado não é, nem poderia ser, governado por tal escala única de fins; ele serve à multiplicidade de fins distintos e incomensuráveis de todos os seus membros individuais”. Cf. HAYEK, Frederich August von. Idem, vol. I, p. 130.
[21] Cf. HAYEK, Frederich August von. Idem, vol. I, p. 87.
[22] Idem, ibidem, p. 88.
[23] Para Frederich August von Hayek a justiça social numa ordem econômica pressupõe que os membros da sociedade sejam orientados por determinações do Estado.
[24] “É lamentável que, especialmente nos Estados Unidos, escritores conhecidos como Samuel Smiles e Horatio Alger e, mais tarde, o sociólogo W. G. Sumner tenham defendido a livre iniciativa com o argumento de que ela, em regra, recompensa os que merecem, e é um péssimo sinal para o futuro da ordem de mercado que tal argumento se tenha transformado na sua única defesa compreendida pelo público em geral. Tendo-se tornado, em grande parte, a base da autoestima do empresário, confere-lhe muitas vezes um ar de arrogância que não lhe granjeia simpatia”. Cf. HAYEK, Idem, vol. I, p. 94.
[25] Idem, ibidem, p. 95.
[26] Idem, ibidem, p. 97.
[27] Hayek menciona fatores de produção como empenho, diligência, habilidade, necessidade. O salário não deverá se ajustaria em qualquer dessas grandezas específicas, mas na união dos fatores.
[28] Idem, ibidem, p. 102.
[29] Hayek não traz uma resposta exata do que constitui a necessidade básica do indivíduo. Considera, apenas, que os bens que não puderem ser acessados pelos indivíduos através do mercado, devem ser fornecidos pelo Estado.
[30] “Princípio da equidade (John Rawls): age de tal modo, que todos os envolvidos participem de igual forma, tanto nos benefícios como nos encargos”. Cf. KAUFMANN, Arthur, Op. cit., p. 273.
[31] BEAULIER, Scott, et. Al. Knowledge, economics, and coordination: understanding Frederich August von Hayek’s legal theory. Journal of Law & Liberty, NYU: vol. 1. 2004. “According to Frederich August von Hayek, many contemporary notions of social justice are focused on the particular case of individuals within the general order. But, in Frederich August von Hayek’s system, justice can only be maintained at the level of the general legal framework and rules of the game. Specific actions designed to remedy certain instances of “injustice” will fail to effectively remedy the situation and will undermine the general system (...)”.
[32] Cf. HAYEK, Frederich August von. Idem, vol. I, p. 88.
[33] Cf. BOBBIO Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política, vol. I, Brasília: Editora UnB, 11ª edição. Trad. Carmen C. Varriale, Gaetano Mônaco, João Ferreira, Luís Guerreiro Pinto Cacais e Renzo Dini, p. 604-605.
[34] FERRAZ, Luís Mota. Justiça distributiva para formigas e cigarras. In: Novos estudos CEBRAP. São Paulo, n. 77, Mar. 2007. p. 2.
[35] Cf. HAYEK, Frederich August von. Idem, vol. I, p. 105.
[36] Cf. HAYEK, Frederich August von. Idem, vol. I, p. 107.
[37] BEAULIER, Scott. Op. cit., p. 216. “The “mirage of social justice” is the belief that specific distributional outcomes can be picked independent of the very process through which exchange and production takes place. The rules of just conduct serve to govern the means by which various purposes and plans are pursued. As such, these rules serve to reconcile the actions pursued by disparate individuals within the general order governed by these rules. In contrast, a command serves a particular purpose and as such is in direct conflict with rules of just conduct. Put simply, discriminatory laws undermine the rules of just conduct and the framework of a just society”.
[38] MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 283.
[39] Essa questão encontra íntima ligação com a atual ideia do “mínimo existencial”. A última dessa dissertação abordará esse tema com maior profundidade.
[40] Cf. HAYEK, Frederich August von. Idem, vol. I, p. 118.
[41] Idem, ibidem, p. 119.