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Crime sem pena

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01/08/2002 às 00:00
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6. Conclusões

a) é sem dúvida que a voracidade legislativa invade o Direito Penal, e que tal invasão acaba gerando banalização do Direito Punitivo por parte da sociedade;

b) o excesso de leis penais materiais aniquila o princípio da intervenção mínima, construído solidamente no mundo todo, gerando desordem no sistema penal brasileiro e sendo, em muitas ocasiões, motivo de chacota de juristas e da própria sociedade;

c) o tipo previsto no parágrafo único do art. 1º, da Lei 8137/90, é um crime sem pena, já que a pena traçada para os incisos do mesmo art. 1º ofende, claramente, a proporcionalidade constitucional, chegando o pico máximo a ultrapassar penas consolidadas no Código Penal para crimes sensivelmente mais ofensivos. Neste sentido, existe absoluta impossibilidade de aplicar a pena prevista para o crime de desobediência do Código Penal (15 dias a 6 meses de detenção, e multa), uma vez que se torna extravagante e impensável formular um tipo penal completo por meio de ajuntamento de preceito primário de uma lei com o preceito secundário de outra lei que não tem a mesma ratio, como aconteceu, em uma excepcionalidade, no caso da combinação do art. 14 da Lei 6368/76 com o art. 8º da Lei dos Crimes Hediondos, aceita pelo STF e pelo STJ, diante simetria das referidas Leis sobre o mesmo tema;

d) as alíneas "a", "b", "c", "g", "h", "i" e "j" do revogado art. 95, da Lei 8212/91 eram crimes sem pena. Porém, eram normas penais simbólicas, sem qualquer autoridade estatal, e por isso jamais poderiam servi ÿr para classificar juridicamente qualquer conduta. Ademais, não poderia haver adequação típica nas referidas alíneas, e sim em alguns dos vários tipos da Lei 8137/90, já que elas (as alíneas) sempre foram soldados de reserva, meras normas subsidiárias. Neste caso, deveria ter aplicação o princípio da subsidiariedade implícita, operando a Lei 8137/91 como soldado titular das alíneas do revogado art. 95, principalmente porque as duas leis tinham a mesma objetividade jurídica, as contribuições previdenciárias são espécies de tributo e os tipos penais da Lei 8137/90 eram mais graves que os tipos penais das alíneas "a", "b", "c", "g", "h", "i" e "j" do art. 95, da Lei 8212/91, já revogado, diante da ausência absoluta de pena;e) os legisladores, até com certa freqüência, subjugam a técnica e a responsabilidade necessárias para criar normas penais incriminadoras, forçando o intérprete a buscar, na hermenêutica, formas das mais variadas para compreender o fenômeno jurídico-penal, inclusive contornando eventuais desarranjos legais que poderm provocar impunidade. Porém, outras vezes este contorno hermenêutico é impossível, acabando mesmo em impunidade ou em punibilidade menor que a desejada;

f) no remate, devo repetir a mensagem da epígrafe: os aplicadores da norma penal acabam percebendo o tormento que os próprios legisladores não são capazes de enxergar, já que estes criam normas penais aos cântaros, mas muitas vezes não sentem todos os sabores que os cultores do Direito Penal estão, a cada dia, experimentando.


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Notas

1. "Como bem lembra o Professor LUIZ LUISI, ‘é matéria inquestionável o desprestígio do sistema penal; deve-se a uma série de causas; e uma delas, talvez a fundamental, é a existência de uma legislação onde são tipificados criminalmente milhares de fatos, em grande número sem autêntica relevância, gerando a hipertrofia do direito penal’. FRANCESCO CARRARA, em 1883, se refere a nomomania ou nomorréia penal, criticando o estágio do Direito Penal ao esquecer o brocado mínima no curat praetor. REINHART FRANCK, em 1898, utilizou a expressão hipertrofia penal, dando continuidade às críticas feitas aos excessos legisferantes. Neste século, vários autores cuidaram do tema, sendo oportuno citar CARLOS ENRICO PALIERO que, recentemente, se refere ao crescimento patológico da legislação penal" (Guilherme Calmon Nogueira da Gama e Abel Fernandes Gomes, in Temas de Direito Penal e Processo Penal, Renovar, 1999, p. 136).

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"O legislador brasileiro contemporâneo ao definir as condutas típicas continua utilizando as mesmas técnicas que eram adotadas na primeira metade deste século, ignorando a extraordinária evolução da Teoria Geral do Delito. Continua utilizando expressões, como, ‘sabe’ ou ‘deve saber’, que, outrora, eram adotadas para identificar a natureza ou espécie de dolo. A utilização dessa técnica superada constitui uma demonstração evidente do desconhecimento do atual estágio da evolução do dolo e da culpabilidade. Ignora nosso legislador que a consciência da ilicitude não é mais elemento do dolo, mas da culpabilidade e que tal consciência, por construção dogmática, não precisa mais ser atual, bastando que seja potencial, independentemente de determinação legal. A atualidade ou simples possibilidade de consciência da ilicitude servirá apenas para definir o grau de censura, a ser analisado na dosagem de pena, sem qualquer influência na configuração da infração penal. Essa técnica de utilizar em alguns tipos penais as expressões ‘sabe’ ou ‘deve saber’ justificava-se, no passado, quando a consciência da ilicitude era considerada, pelos causalistas, elemento constitutivo do dolo, a exemplo do ‘dolus malus’ dos romanos, um dolo normativo. No entanto, essa construção está completamente superada como superada está a utilização das expressões ‘sabe’ ou ‘deve saber’ para distinguir a natureza do dolo, diante da consagração definitiva da teoria normativa pura da culpabilidade, a qual retirou o dolo da culpabilidade colocando-a no tipo, extraindo daquele a consciência da ilicitude e situando-a na culpabilidade, que passa a ser puramente normativa" (Cezar Roberto Bitencourt, Algumas Controvérsias da Culpabilidade na Atualidade, in www.direitopenal.adv.br, revista n. 5).

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Trata-se da crítica feita por Damásio Evangelista de Jesus, no artigo Ação Penal Sem Crime, in www.damasio.com.br, a respeito do art. 41-A, da Lei n. 10.028, de 19.10.200, que, além de alterar o Código Penal, acrescentando-lhe crimes contra as finanças públicas (arts. 359-A a 359-H), modificou em seu art. 3.º a Lei n. 1.079/50, ampliando o rol das infrações político-administrativas, pois dá a entender que a Lei 1.079/50 descreve crimes, quando na verdade trata-se de infrações político-administrativas, emprega a expressão "ação penal" em relação aos ilícitos político-administrativos (daí, "ação penal sem crime"), impõe o rito da Lei 8.038/90 àqueles ilícitos quando o rito da Lei diz respeito a delitos, e não infrações político-administrativos, além de possibilitar ao cidadão a proposição de ação penal, violando o art. 129, I, da CF/88. Termina o artigo da seguinte forma: "Imagine que o legislador estivesse consciente de estar tratando de ilícitos político-administrativos. Por que, então, usou a expressão "ação penal"? E por que prevê o rito processual da Lei n. 8.083/90 somente para as pessoas referidas no art. 10 da Lei n. 1.079/50, enquanto as hipóteses dos outros capítulos continuam com o procedimento antigo? O dispositivo é tão confuso que merece destaque no museu das imperfeições legislativas."

4

O legislador, no caso, sem o cuidado devido, tipificou a conduta de várias donas de casa que, por descuido, desconhecimento ou, até, necessidade, não registram oficialmente a empregada doméstica, acabando por retirar, compulsiva e arbitrariamente, a primariedade daquelas senhoras, sem que tenham agido contrariando qualquer sentimento de repulsa social, acabando por tangenciar a inconstitucionalidade por ferir o princípio da lesividade, que hoje toma corpo na doutrina nacional, tudo isso movido pela insensatez compulsiva de arrecadar tributos, mesmo utilizando despropositadamente o Direito Penal, esse "salvador da pátria". Por isso, se diz que o legislador feriu a adequação social, já que ninguém consegue encontrar uma pessoa sequer capaz de dizer que aquela dona de casa deveria ser considerada criminosa...

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O art. 14 da Lei 6368/76 tipifica a associação de duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 12 e 13 da Lei, com pena de reclusão, de 3 a 10 anos, e multa, mas o art. 8º da Lei 8078/90, que é posterior, diz que será de três a seis anos de reclusão a pena prevista no art. 288 do CP, quando se tratar de crimes hediondos, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins ou terrorismo. Como se vê, o legislador novamente se perdeu no emaranhado de leis penais que ele mesmo produziu, sem nenhuma preocupação com a técnica e com a responsabilidade social de lidar com o Direito Penal. O STF e o STJ, como se sabe, acabaram entendendo que se trata de derrogação, e não ab-rogação, de modo que o preceito primário do art. 14 permanece intacto ("duas ou mais pessoas"), mas o seu preceito secundário foi modificado, alterado que foi para a pena de reclusão, de três a seis anos, sem multa, sob o fundamento de que a ab-rogação só acontece quando existe incompatibilidade absoluta, o que não é o caso. Porém, até hoje a questão vem sendo debatida, sem consenso, pela doutrina.

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O art. 10, §1º, II, da Lei citada diz ser crime "utilizar arma de brinquedo, simulacro de arma capaz de atemorizar outrem, para o fim de cometer crimes", acabando por impossibilitar que tal conduta seja considerada, autonomamente, como crime, isto porque a utilização da arma será passagem natural para o crime de roubo, sendo consumido por este delito principal (além de existir, no art. 10, §1º, II, uma subsidiariedade implícita em relação ao art. 157 do Código Penal). Como o tipo fala em utilizar, não há como fugir deste "suicídio legislativo" a partir da integração das elementares do roubo. Se tivesse falado em portar arma de brinquedo enquanto comete crime, poderia haver concurso formal com constrangimento ilegal, ameaça, furto ou outro crime qualquer, mas fala em utilizar, integrando o tipo do roubo (lembrando que a lei fala em "para cometer crimes", e não um só crime...).

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O Código de Trânsito (Lei 9503/97), na parte penal, em diversas ocasiões não definiu conduta de maneira adequada, e sim fez, na realidade, remissão aos crimes definidos no Código Penal: praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302); praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor (art. 303). Como se vê, não definiu conduta, e sim criou o preceito primário remetido, sem esquecer que os crimes devem ser praticados na direção do veículo, de modo que deixá-lo em local de alto risco, mas sem assumir o risco de produzir o resultado, acabando por causar sério acidente, com morte, não caracterizará o 302 do Código de Trânsito Brasileiro (inúmeras são as críticas, além destas...).

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"... os meios de comunicação de massa começaram a atuar, movidos por interesses políticos subalternos, de forma a exagerar a situação real, formando a idéia de que seria mister, para removê-la, uma luta sem quartel, contra determinadas formas de criminalidade ou determinados tipos de delinqüentes, mesmo que tal luta viesse a significar a perda de tradicionais garantias do próprio Direito Penal ou do Direito Processual Penal. Surgiram, então, por influxo da mídia manipulada politicamente, manifestações em favor da law and order (...) À retaguarda da tendência da law and order está um entendimento excessivamente unilateral dos fins do Direito Penal e a esperança de que o delito possa ser eliminado da face da terra. ‘Ambas as condições, por mais que ideologicamente estejam afastadas uma da outra, têm em comum a confiança, ingênua, por um lado, na possibilidade de modificar o curso da história pelo homem e o processo evolutivo e, por outro, uma enorme impaciência frente à conduta desviada. Isso conduz, pois, a uma atividade intervencionista bastante radical, buscando mais a efetividade do Direito Penal que sua formalização e sua concreção jurídica(...) A Lei 8072/90 na linha dos pressupostos e dos valores do Movimento de Lei e Ordem, dá suporte à idéia de que leis de extrema severidade e penas privativas de liberdade pesadas são suficientes para pôr cobro à criminalidade violenta. Nada mais ilusórios (...) É mister que se denuncie, com eloqüência, esta postura ideológica que representa um momento regressivo, quer do direito penal, quer no direito processual penal, quer ainda na própria execução penal. Se esta involução não for decididamente contrariada, não será aventuroso predizer que, para a justificar, em breve voltarão a ouvir-se vozes na doutrina a prevenirem perigos de uma exasperação das garantias pessoais no processo penal; e a lembrarem que elas têm de se submeter ao interesse social no funcionamento do eficiente e sem entraves daquele’" (Alberto Silva Franco, Crimes Hediondos, notas sobre a Lei 8078/90, 2ª edição, RT, 1992, respectivamente pp. 29, 31/32, 33, 44/45/46).

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A hipótese foi analisada pelo mesmo Damásio E. de Jesus, in Dois Temas da Parte Penal do Código Brasileiro de Trânsito, publicado na Revista Consulex, ano V, n. 116, p. 31. O autor defende que não há como aplicar a multa reparatória, prevista no art. 297 e parágrafos, já que o legislador se esqueceu de fazer uma cominação genérica da pena de multa e também da cominação específica (preceito secundário). É dizer: o CBT, nem na sua parte geral, nem na especial, cominou qualquer pena de multa reparatória, não podendo, deste modo, ser aplicada, pois ofenderia o princípio da legalidade, já que pena sem cominação não é pena. Conclui assim, sobre a multa reparatória: "É uma alma perdida vazando na imensidão do Direito Penal à procura de um corpo. Chegaram ao máximo: inventaram uma pena sem crime!."

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Apesar da expressão "conservador" soar pejorativa, não posso deixar de lembrar que ser conservador não é, em absoluto, algo ruim, pois o que importa não é a conservação em si mesma, e sim o que se quer conservar...

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É bom lembrar que a República tem como característica básica, ao lado da eletividade, igualdade e segurança jurídica, a responsabilidade dos agentes políticos. Cresce, portanto, a importância do legislador na confecção de tipos penais que inundam a sociedade, fazendo-a refém de si mesma.

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Aliás, a Lei 8137/90 bem que poderia aumentar a lista de atrocidades legislativas, diante da falta de segurança jurídica e atecnia. Um bom exemplo é a inusitada confusão que a mesma causa na identificação exata dos crimes, até mesmo para os estudiosos da mesma. Outro exemplo é a inicial aparência de que se torna impossível a tentativa dos crimes previstos no art. 1º, I e II da Lei 8137/90, mesmo sendo eles plurissubsistentes e materiais, já que o art. 2º, I, seria ato preparatório ou de execução dos crimes previstos no art. 1º, I e II, aplicando-se o princípio da consunção, aflorando entendimentos de que o crime do art. 2º, I, é etapa necessária para a consumação dos crimes do art. 1º, I e II – antefactum impunível. Este aparente conflito é muito bem resolvido, no entanto, por Guilherme Calmon Nogueira da Gama e Abel Fernandes Gomes, in Temas de Direito Penal e Processo Penal, opus citado, p. 93 e ss., citando Rui Stocco: "‘...enquanto as demais ações físicas constantes dos outros incisos dos artigos 1º e 2º visam suprimir ou reduzir tributo, contribuição social e qualquer acessório, o inciso I do art. 2º tem um espectro de menor abrangência, pois objetiva apenas coibir que o agente se exima ou se isente de pagamento de tributo. Não fez menção à contribuição social nem a quaisquer acessórios, já porque estes, dentro da teoria jurídico-tributária, não se submetem à isenção, sendo impróprio dela falar em relação a esses componentes do débito fiscal, pois a isenção veda a constituição do crédito tributário, mas deixa de pé as obrigações acessórias’ (...). Assim, objetivando espancar qualquer dúvida a respeito, resta fazer a seguinte afirmação: o crime tratado no inciso I, do art. 2167, da Lei n. 8137/90, não pode ser considerado etapa de preparação ou de execução dos tipos penais contidos nos incisos I e II, do art. 1º, da mesma lei, tendo campo de aplicação completamente distinto, por estar relacionado à conduta delituosa fraudulenta no sentido do agente pretender obter isenção total ou parcial do tributo que deveria pagar, não sendo necessária a obtenção da isenção para a consumação do crime, daí a sua natureza de crime formal. E, mesmo porque se trata de crime formal, não pode ser considerado etapa anterior para a prática de crime material, diante da diversidade dos interesses imediatos protegidos relativamente a cada tipo penal tributário". Mais um caso que o legislador complica, e o intérprete descomplica.

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Lembra o autor que existem entendimentos de que o parágrafo único do art. 1º da Lei 8.137/90 só tem razão de ser se combinado com o "caput" do mesmo artigo, acabando por transformar o crime do parágrafo único em crime material, pois se exige, nesta visão, o resultado de suprimir ou reduzir tributo, contribuição social ou qualquer acessório, quando da desobediência. Neste sentido, Alécio Adão Lovato, Crimes Tributários – Aspectos Criminais e Processuais, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2000, p. 100 e também Fernando Arruda.

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O autor diz que os tribunais começam a considerar a hipótese, como na declaração de voto vencido do i. Des. Celso Limongi, na Revisão Criminal n. 260.338.3-0, publicada no Boletim do IBCCrim n. 101, abril/2001.

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Habeas Corpus n. 68.793, 1ª Turma, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 13.02.1992. O Min. Moreira Alves diz que é possível a compatibilização do art. 14 da Lei 6368/76 com o art. 8º da Lei 8078/90, através de uma interpretação corretiva, porque "o art. 8º da Lei n. 8.072/90 se dirige à pena e a que o artigo 10 dessa mesma Lei tem inequivocadamente como um vigor o tipo delituoso previsto no art. 14 da Lei n. 6368/76, a forma de afastar-se a interpretação ab-rogante – que só deve ser utilizada no caso extremo de incompatibilidade absoluta – será a conciliação sistemática, mediante a interpretação restritiva de ambos os dispositivos, deixando ao primeiro a fixação da pena inclusive para a quadrilha que se forma para a prática de crime de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e ao segundo a especialização do tipo do crime de quadrilha com essa finalidade". Bem se vê, assim, que a compatibilização só foi possível porque as Leis referidas tiveram a mesma ratio e os arts. 10 e 14 da Lei 8.072/90 fizeram expressa menção à Lei 6368/90, o que não acontece com o parágrafo único da Lei 8137/90 (Lei dos Crimes Contra a Ordem Tributária) com o art. 330 do Decreto-Lei 2848/40 (Código Penal).

16

Recurso Especial n. 85.965-SP, 6ª Turma, Rel. Min. Vicente Cernicchiaro. O próprio Ministro Cernicchiaro, além de ratificar a possibilidade de compatibilizar porque existe a mesma ratio e menção de uma Lei à outra, acaba por dar vazão ao princípio da proporcionalidade, ao dizer que "Meu entendimento, seguindo longo voto do Ministro Moreira Alves, do Supremo Tribunal Federal, é no sentido da convivência do art. 14 da Lei de Tóxicos e do art. 8º da Lei n. 8072/90 que acrescentou um parágrafo ao art. 288. Há compatibilidade porque o art. 14 fala em associarem-se duas ou mais pessoas e o art. 288 em associarem-se três ou mais no caso para o tráfico de entorpecentes. Acrescentou-se também à conclusão daquele acórdão do Supremo Tribunal Federal, buscando coexistência das normas jurídicas – são certos pormenores, esse acórdão que reputo, talvez o mais importante do Supremo Tribunal Federal, foi capitaneado por um civilista que é o Ministro Moreira Alves -, no sentido de que o crime mais grave tem que ter pena mais grave do que o menos grave e que o crime menos grave tem que ter pena menos grave em relação à infração mais grave. É evidente, reunião de três ou mais pessoas é mais grave que a de duas ou mais pessoas, dando a possibilidade, pelo menos em tese, de maior sucesso, relativamente à consumação. Ora, ocorreu que o art. 14, originariamente, a pena cominada, reclusão de três a dez anos, e o art. 288,de acordo com a Lei n. 8072, de três a seis anos, ou seja, com aquela orientação do Supremo Tribunal Federal, que considero escorreita, foram unificados."

17

Guilherme C. N. da Gama e Abel F. Gomes, in Temas..., op. cit., pp. 31 e ss., citam: Valdir Sznick, Comentários à Lei dos Crimes Hediondos, 3ª ed., SP, Leud, p. 361: "Há aqui uma impropriedade. A lei de Entorpecentes prevê a associação no art. 14, a pena é de 3 a 10 anos; o art. 8º dispõe de 3 a 6 anos. Qual prevalece? A lei especial, que é a mais severa, a de Entorpecentes"; Alberto Silva Franco, Crimes Hediondos, 2ª ed., RT, pp. 227/228: "... o texto do art. 8º da lei 8072/90 é explícito demais para que se possa admitir a subsistência do art. 14 da Lei 6368/76. Se a lei mais recente aborda a questão da associação criminosa organizada para o fim do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, é óbvio que uma figura criminosa anterior, que verse sobre a mesma matéria, foi, logicamente, revogada. Depois, porque a equivocada referência ao art. 14 da Lei 6368/76, feita no artigo 10 da Lei 8072/90, não basta para garantir-lhe sobrevida. A regra do art. 10 do novo diploma legal refere-se, com exclusividade, à questão de prazos procedimentais e não é suficiente para ressuscitar, em nível penal, um tipo que o art. 8º da mesma lei deu por morto. Por fim, porque não tem cabimento a adoção de uma interpretação atentatória à regra de que não podem existir, sobre o mesmo objeto, disposições legais incompatíveis entre si"; Vicente Greco Filho, Tóxicos: Prevenção-Repressão, 7ª ed., SP, Saraiva, p. 109: "Como não se pode, em termos interpretativos, combinar leis para fazer uma terceira, as penas do art. 288 do Código Penal, com os limites da Lei n. 8072/90, só poderão ser aplicadas se se entender revogado o art. comentado. E essa revogação, que em nosso entender ocorreu, se aplica integralmente, inclusive quanto aos elementos do tipo. É estranho, porém, que a mesma Lei n. 8072/90, pelo art. 10, ao introduzir parágrafo único ao rt. 35 da lei comentada, duplicando os prazos, se refere ao art. 14, que entendemos tacitamente revogado pelo seu art. 8º."

18

É possível dizer, mesmo sem a concordância de boa parte da doutrina e da jurisprudência, que a rejeição da denúncia (decisão com força de definitiva) acontece nos casos de falta de lastro probatório e inexistência de condições da ação, cf. art. 43, incisos I e II, do CPP (atipicidade e extinção da punibilidade), possibilitando a apelação (art. 593, II), enquanto o não-recebimento (decisão interlocutória mista terminativa) acontece na ausência dos requisitos do art. 41 e, também, se for o caso de ilegitimidade ou ausência de outra condição exigida pela lei para o exercício da ação penal (art. 43, III e parágrafo único), possibilitando o recurso em sentido estrito (art. 581, I), não fazendo coisa julgada material, e sim formal, podendo o "Parquet" reapresentar a denúncia, se satisfazer a exigência legal descumprida. Ada P. Grinover, Antônio M. G. Filho e Antônio S. Fernandes, em Recursos no Processo Penal, 2ª edição, RT, p. 171 discorda deste posicionamento, entendendo que, independentemente da decisão ser considerada definitiva ou terminativa, caberá sempre recurso em sentido estrito. No entanto, José Antônio Paganella Boschi, Ação Penal - Denúncia, Queixa e Aditamento, Aide, 1993, pp. 161/163, professa no sentido destas idéias.

19

Caso se entenda que a pena deve ser aquela prevista no art. 330 do Código Penal, aplicando-se o princípio da proporcionalidade, como entende Luiz Otávio de Oliveira Rocha, op. citado, certamente que o juiz deverá declarar-se incompetente (art. 109, CPP), e enviar os autos ao juízo competente (que será, no caso, o Juizado Especial Criminal).

20

O Estado surgiu, basicamente, pela necessidade inegável de um terceiro, com força e autoridade suficientes para interferir nos conflitos entre os membros da sociedade. O Estado, neste sentido, tem à sua disposição o meio mais eficaz para, em primeiro plano, retratar sua força e irradiar sua mensagem para a sociedade, que é o Direito Penal, na medida em que prevê abstratamente comportamentos que serão castigados.

21

Vide, por exemplo, a sentença prolatada no processo 1997.35.00.0160080-2, da 5ª Vara Federal da Seção Judiciária de Goiás, onde o MM. Juiz absolveu o acusado que vinha pagando seus funcionários uma quantia bem superior àquela registrada na CTPS, acabando por pagar a contribuição previdenciária baseada em valores irreais, lesando o INSS. O MM. Juiz absolveu não por falta de provas ou outra tese defensiva factual, mas sim porque o Parquet Federal classificou a conduta na alínea "c" do art. 95, da Lei 8212/91, e tal artigo foi revogado pela Lei 9983/00, acabando por extinguir a punibilidade face à "abolitio criminis" (art. 107, III, do CP), até mesmo fazendo a consideração de que o fato não tinha pena prevista em lei, daí o reforço, na sua visão, da impossibilidade de condenação.

22

Alínea "c": "constitui crime omitir total ou parcialmente receita ou lucro auferidos, remunerações pagas ou creditadas e demais fatos geradores de contribuições, descumprindo as normas legais pertinentes."

23

Inciso I: "constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias."

24

Expressão originalmente utilizada por Nelson Hungria, Comentários ao Código Penal, Vol. I, Forense, 1949, p. 121. Assim, os soldados de reserva só entram em campo se os soldados titulares não puderem ser utilizados para abarcar a conduta de alguém. É o que ocorre, por exemplo, com o crime de dano (art. 163, CP) (soldado de reserva) em relação ao crime de furto qualificado pela destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa (art. 155, §4º, I, CP) (soldado titular); do crime de ameaça (art. 147, CP (soldado de reserva) em relação ao crime de constrangimento ilegal (art. 146, CP) (soltado titular); do crime de omissão de socorro (art. 135, CP) (soldado de reserva) em relação ao crime de homicídio culposo (art. 121, §4º, CP) (soldado titular). Como, no caso, a pena dos crimes do art. 1º da Lei 8137/90 eram menores que a pena dos crimes das alíneas "d", "e" e "f" do antigo art. 95, da Lei 8212/91, aquele artigo só seria utilizado se a conduta não se enquadrasse nas alíneas referidas, daí porque o art. 1º sempre foi soldado de reserva em relação as alíneas referidas, e não em relação às alíneas "a", "b", "c", "g", "h", "i" e "j", como se verá.

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Cômpar deste entendimento está Fernando de Almeida Pedroso: "A enunciação do princípio, literalmente, tem o mesmo significado, com outras palavras, que o princípio da especialidade, aduzindo que o preceito de lei principal (tipo especial) prevalece sobre o que lhe é subsidiário e supletivo (tipo geral) (...) Assim, sempre que um tipo especial não puder, por um motivo qualquer, abrigar tipicamente o episódio que se analisa e examina, o tipo geral, subsidiária e supletivamente, como reserva do tipo especial (já que contém todos os seus elementos), outorgará guarida típica ao fato" (grifei) (Conflito aparente de normas penais, Revista dos Tribunais, São Paulo (673), nov. de 1991, página 294). Também Damásio E. de Jesus, obra citada, p. 98: "(...) Sob outro aspecto, se a sanctio juris da norma primária (sempre de maior punibilidade que a da figura típica famulativa) é excluída por qualquer circunstância, a pena do tipo subsidiário subsidiário ‘pode apresentar-se como ‘soldado de reserva’ e aplicar-se pelo residuum" (grifei).

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O princípio da subsidiariedade anda muito próximo ao o princípio da especialidade, de tal modo que muitos proclamam sua absoluta inutilidade, tendo-se em vista que termina por levar ao mesmo resultado, que é a exclusão de uma norma penal no caso de ambas, aparentemente, englobarem o mesmo fato (unidade de fato). Neste sentido, Francesco Antolisei, Manual de derecho penal, trad. Juan Del Rosal e Angel Torio, Buenos Aires, 1960, p. 86, citado por Damásio, op. cit., p. 98, e Marcelo Fortes Barbosa, Concurso de normas penais, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1976, p. 190, citado por Julio Fabbini Mirabete, Manual de Direito Penal, Atlas, 2000, p. 120 (pedindo licença a Mirabete para lembrar que Marcelo Barbosa acredita que exista uma relação de subsidiariedade entre a norma principal e a norma subsidiária, mas só não acredita que tal relação é uma relação concursal no concurso aparente de normas. Vale dizer: para Marcelo, a relação de subsidiariedade é uma forma para se descobrir a relação de especialidade ou de consunção, acabando por defender que a relação deveria ser tratada como modalidade criminosa, na teoria geral do crime, sob o título de "crime subsidiário" - op. cit., pp. 112/115). O princípio da especialidade se diferencia do princípio da subsidiariedade porque na especialidade o tipo especial só acrescenta alguns elementos especializantes (subjetivos ou objetivos) ao tipo geral, havendo uma relação de gênero-espécie, enquanto na subsidiariedade não existe esta relação porque não há acréscimos de elementos ao tipo geral, e sim um novo tipo, a partir de graus maiores e menores de violação dos bens jurídicos protegidos (se bem que, na construção do novo tipo, a norma subsidiária acaba prevendo a conduta com maior especificidade, porém sem aumentar elementos especializantes à norma principal, daí a confusão por vezes percebida entre princípio da subsidiariedade e princípio da especialidade), e também porque, no princípio da especialidade, o tipo penal com pena maior não exclui o de pena menor (como acontece na relação homicídio-infanticídio), enquanto que na subsidiariedade o tipo penal com pena maior exclui o tipo penal com pena menor (aliás, cf. Marcelo Barbosa, cit., p. 73, o Código Penal Argentino, no art. 54, diz: "Quando um fato se situar sob mais de uma sanção penal, se aplicará somente a que fixar pena maior"). Além destas nuanças, é de se lembrar que, no princípio da especialidade, a aplicação desta ou daquela norma é possível pela análise abstrata das normas gerais e especiais, sem necessidade de analisar o fato criminoso, enquanto que no princípio da subsidiariedade a aplicação da norma principal ou da norma subsidiária só é possível compulsando os fatos concretos, em todos os seus detalhes.

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O concurso aparente de normas se resolve, principalmente a nível doutrinário, pela aplicação dos princípios da especialidade, da consunção e da subsidiariedade (e, para alguns, também pelo princípio da alternatividade), e o concurso real de normas se resolve, por exatamente por ser efetivo, se resolve principalmente a nível legal, por meio do concurso formal, material e do crime continuado.

28

Afinal, se os reservas morrerem (ou, no caso, forem revogados), o jogo continua, pois os titulares continuam em campo (isto é, o enquadramento típico continua existindo). Assim, se no decorrer de um processo, o acusado responde pelo crime de estupro (art. 213, CP), e este crime vem a ser revogado, o processo pode continuar em relação aos tipos subsidiários, como constrangimento ilegal (art. 146), lesão corporal (art. 129), injúria (art. 140) etc.

29

É o exemplo do juízo da 11ª Vara Federal da Seção Judiciária de Goiás, processo n. 2001.35.00.002402-6, que, na sentença, desconsiderou o art. 95, da Lei 8212/90, para considerar aplicável ao caso a Lei 8137, dizendo que as alíneas "a", "b", "c", "g", "h", "i" e "j" eram "figuras meramente decorativas."

30

"PROCESSO PENAL. OMISSÃO NO RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. LEI 8212/91. ART. 95 - ´D´. LEI 9983/2000. ART. 168-A DO CÓDIGO PENAL. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. ABOLITIO CRIMINIS. INOCORRÊNCIA. CRIME OMISSIVO PURO (OU PRÓPRIO). 1 - Não há que se falar em abolitio criminis por ter o art. 3º, da Lei 9983/2000, revogado o artigo 95, da Lei 8212/91, já que conduta idêntica passou a ser prevista no art. 168-A, do Código Penal. 2 - O simples fato de o legislador haver optado pelo nomem juris apropriação indébita previdenciária para o crime previsto no recém criado artigo 168-A, do Código Penal, não impõe, para a realização do tipo, a verificação do elemento volitivo consistente no animus rem sibi habendi (opinativo da douta PRR 1ª Região no RCCR nº 2001.01.00.012744-0/MG)." (RCCR 1997.38.00.050000-0/MG, Rel. Juiz Hilton Queiroz, 4º Turma, DJ 23.04.2001, votação unânime, p. 22).

31

O próprio Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de referendar a quase unanimidade da doutrina, dividindo os tributos em: a) impostos; b) taxas; c) contribuições (de melhoria, parafiscais, especiais e sociais); e d) empréstimos compulsórios (vide RDA 190/78). Sobre a natureza jurídica das contribuições sociais, afirmou Hugo Brito Machado: "Diante da vigente Constituição, portanto, pode-se conceituar a contribuição social como espécie de tributo com finalidade constitucionalmente definida, a saber, intervenção no domínio econômico, interesse das categorias profissionais ou econômicas e seguridade social. É induvidosa, hoje, a natureza tributária destas contribuições. Aliás, a identificação da natureza jurídica de qualquer imposição do Direito só tem sentido prático porque define o seu regime jurídico, vale dizer, define quais são as normas jurídicas aplicáveis. No caso de que se cuida, a Constituição afastou as divergências doutrinárias afirmando serem aplicáveis às contribuições em tela as normas gerais de Direito Tributário e os princípios da legalidade e da anterioridade tributárias(...)". (Curso de Direito Tributário, 19ª edição, São Paulo, Malheiros, 2001, pp. 352-353).
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Sobre o autor
Bruno Cezar da Luz Pontes

analista processual do Ministério Público Federal de Goiás, advogado, pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PONTES, Bruno Cezar Luz. Crime sem pena. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3044. Acesso em: 26 dez. 2024.

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