Caso Nazaré: o papel da família e do Estado, subsidiariamente, na assistência à saúde

11/08/2014 às 14:23
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Este artigo faz uma análise de um caso de uma paciente com transtornos mentais que recebia de sua família como tratamento o cárcere sob condições desumanas. A análise se dá sob a ótica do princípio da subsidiariedade na assistência à saúde.

3.CASO NAZARÉ: O PAPEL DA FAMÍLIA E DO ESTADO, SUBSIDIARIAMENTE, NA ASSISTÊNCIA À SAÚDE

            Este capítulo tem como objetivo discutir de forma empírica a aplicação do princípio da subsidiariedade ao direito à assistência à saúde daqueles que dela necessitam tanto por parte da família, quanto do Estado. Para tanto, buscamos por meio de pesquisa direta e de campo, e ainda de relatos, detalhes do caso que passaremos a analisar.

3.1. O caso Nazaré

 O caso que será estudado nesse trabalho se dáno município de Ipueiras, interior do Estado do Ceará, distante 300 quilômetros da capital Fortaleza, cuja população é estimada em 39.288 habitantes distribuída em uma área territorial de 1.474.11 km² ordenada entre o planalto, encosta da Ibiapaba e o sertão sopezano.

             Nascida em 20 de abril de 1975, M.J., a quem chamamos de Nazaré, segundo relato de um de seus sete irmãos, apresentava-sesaudável, sem nenhum sinal de qualquer problema de ordem física ou psíquica. Porém, quando este, à época residindo na cidade do Rio de Janeiro-RJ, veio gozar de suas férias junto a sua família em sua cidade natal, em novembro de 1988, acompanhado de sua irmã, participava da celebração dos festejos da padroeira de seu torrão, viuNazaré apresentar surto psiquiátrico pela primeira vez, que, a partir de então, tornaram-se frequentes.

            Cinco anos após o primeiro surto, devido às constantes fugas de Nazaré de sua casa, sua família inibe suas escapadas submetendo-a ao “cárcere” em um cubículo ao fundo do quintal da residência familiar, onde viveu por 13 anos, após o que chegou ao conhecimento de dois missionários católicos, Donizete Duarte e Manoel Melo (Dr. Gentil),quando a situação em que esta vivia, enfim, inicia a ter melhorias, ainda que timidamente.

No caso deNazaré,os missionáriosdepararam-secom o que eles definem como um quadro dos mais constrangedores, dado que não encontraramsequer apoio na família da enferma.Nazaré, ao se tornar conhecida dos missionários, já viviahá mais de doze anosem uma verdadeira “jaula”, despida, com uma única entrada protegida por uma grade, que dava acesso a um quintal que, por ter os pisos no mesmo nível, vivia repleta de lama derivada de fezes e urinas da própria Nazaré e de animais criados no quintal, inclusive suínos. Além do

martírio que lhe era infligido, por viver e dormir sem roupa e na lama, criou calosidade nas nádegas de espessura superior a um centímetro. Parteda situação descrita dessa realidade pode ser constatada por meio das imagens que seguem:

Imagem 01: Nazaré na situação em que foi encontrada pelos missionários.

FONTE: Manoel Melo Sampaio.

Imagem 02: Nazaré é coberta e senta-se ao lado de suas fezes e urinas ao chão.

FONTE: Manoel Melo Sampaio.

No detalhe da última fotografia (Imagem 02) pode-se verificar a presença de suas fezes pelo chão, próxima ao seu corpo. A pedido dos missionários, a família providenciou um lençol no intuito de que a deficientetivesse seu corpo, até então despido, encoberto.

Outro fato que despertou a curiosidade dos missionários foi a presença de desenhos nas paredes do seu “cárcere”, haja vista que, os desenhos teriam sido feitos pela própria Nazaré, utilizando-se de suas fezes, conforme demonstra a imagem:

Imagem 03: Nas paredes do cubículo podemos verificar os desenhos feitos pela paciente com suas próprias fezes.

FONTE: Manoel Melo Sampaio.

Tal realidade deixa ainda mais evidente àsituaçãocomo era tratada, tendo que buscar “entretenimento” na única coisa que havia à sua disposição, suas próprias fezes.

Como se não bastasse o status desumano em que Nazarévivia, indivíduos aproveitando-se que o cubículo era distante da casa dos familiares, por duas vezes destelharam o ambiente para tentar violentá-la.

D’outra sorte, o que mais causou indignaçãoaos missionários foi a constatação de que o cartão utilizado para a retirada do valor correspondente ao benefício previdenciário de Nazaré, após anos desua conquista, não ter sequer um arranhão ou qualquer sujeira que fosse, com a senha ainda original,esmeradamente cuidado e protegido em um recipiente plástico.

Os Missionários conseguiram sensibilizar o Secretário de Ação Social do Município quantoao caso,quando a partir de então este determinou a construção de um ambiente limpo, próximo à casa dos familiares e dotado de banheiro, sanitário, portas, janelas e uma cama em alvenaria. Ironicamente,Nazaré hoje dispõe de um cárcere reformado para recolher-se cotidianamente,bem como nos momentos de surtos.      

            Apenas quinze dias após a primeira consulta psiquiátrica,Nazaré passou a ajudar a família nos afazeres da casa e até fazer compras em mercearias próximas. Uma grande prova de que o esforço mínimo já foi suficiente para que a vida daquela pessoacomeçasse a ser transformada.

Nazaré ainda preocupa os missionários, haja vista que sua cunhada,única familiarem quemencontra o mínimo de assistência, no presente momento encontra-seem gestação e, naturalmente, em breve não mais poderá, por alguns meses, prestar-lhe cuidados.Tal incumbência deveria ser transferida para o irmão da portadora de necessidades especiais, que, entretanto, segundo ele,jápossui o dever de“cuidado”e “administração” de três benefícios previdenciários, sendo dois de sua mãe e o deNazaré, o que o muito o “impossibilita” de agregar mais uma função.

Ninguém da família sabe a data do nascimento de Nazaré, mas todos têm “na ponta da língua” a precisa data de pagamento doamparo previdenciário.Percebe-se nesse caso, uma conduta imoral e leviana da família.

Todas as consultas no Centro de Assistência Psicossocial (CAPS) do município de Ipueiras, somente são realizadas quando um dos missionários se dispõe a largar seus afazeres e sua família afim de realizar o transporte da paciente até a referida instituição de saúde, haja vista que os familiares alegam que o local é muito distante de sua residência. Porém, ironicamente, o CAPS fica localizado apenas a um quarteirão da agência bancária onde impreterivelmente os mesmos se fazem presentes no dia do recebimento do benefício previdenciário, sem necessitar de qualquer espécie de ajuda.

3.1.2. As garantias dispostasna “Lei Antimanicomial”

            Uma grande conquista no âmbito psiquiátrico foi alcançada com o advento da Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, conhecida como “lei antimanicomial”.Tal norma disciplina o correto tratamento a ser dispensado a quem é acometido por transtornos mentais, como é o caso de Nazaré. Para uma melhor compreensão, vejamos alguns dos dispositivos que o texto legal nos apresenta:

Art. 2oNos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo.

Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:

I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades;

II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;

III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;

IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas;

V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;

VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;

VII - receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento;

VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;

IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental. (BRASIL. Lei nº 10.216, 2001, art.2º).

            Analisando o caso Nazaré à luz do texto legal, percebemos como o tratamento dado à paciente está na contramão do que determina a norma específica, mesmo após o Estado ter tomado conhecimento de sua situação. A condição de vida a que é submetida ainda hoje fere quase que na totalidade os dispositivos então apresentados.

Art. 3o É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais.(BRASIL. Lei nº 10.216, 2001, art.3º).

Mais uma vez resta aclarada a responsabilidade da família na assistência à saúde de seus membros, que não está isenta do tratamento, mas que encontra-se inserida diretamente neste, com a responsabilidade primeira naquilo que suas condições forem capazes de realizar.

3.2.Negligência familiar

Conforme o relato apresentado, Nazaré vivia de forma desumana, sendo que talcondição era consentida pela própria família, que não lhe dispensavasequer o mínimo de cuidado, mesmo os mais comezinhos, especialmente por se tratar de uma mulher, necessitada de cuidados peculiares ao gênero.

Para que a família lhe proporcionasse um tratamento digno, assistindo-acom o mínimo de cuidado, não se fazia necessário que seus entes fossem dotados de grande conhecimento científico, até porque, sob a ótica do princípio da subsidiariedade, diante da incapacidade da família, o Estado é obrigado a agir.

Diante da realidade em que se encontrava a enferma, fazia-seminimamente necessário apenas que a família a visse como um ser humano, que, como tal, é passívelde dor, solidão, ou seja, de sofrimento, físico e/ou psíquico.Indispensável que detivesse o mínimo de sentimento, bom senso e respeito à vida humana, independentemente de ser um ente familiar ou um mero desconhecido.

O que mais chama atenção neste caso é que a família, responsável imediata por lhe proporcionar as melhores condições de tratamento possíveis, de acordo com suas possibilidades, detentorado dever de lhe prestar os cuidados devidos, quer por força dos laços sanguíneos, afetivos, ou por determinação legal, do contrário, tratava-a com negligência e indiferença.

Ademais, o próprio ente familiar a submetia a inaceitável condição de “cativeiro”, em um cubículo ao fundo do quintal, indigna sequer de ser habitada poranimais, sem higiene, sem vestes, sofrendo com a umidade, calor e frio sobre o chão molhado por suas fezes e urinas.

Ao submeter Nazaré à condição em que vivia, a família feria de morteum dos fundamentos da Constituição Federal de 1988, princípio dos mais caros ao ordenamento jurídico brasileiro, merecedordo empenho de todos os esforços para que sua garantia constitucional seja preservada, qual seja o princípio da dignidade da pessoa humana, do qualNazaré se encontrava tolhida, em todos os seus aspectos.

No que diz respeito ao citado princípio constitucional,PAULO& ALEXANDRINO postulam que:

A dignidade da pessoa humana assenta-se no reconhecimento de duas posições jurídicas ao indivíduo. De um lado, apresenta-se como um direito de proteção individual, não só em relação ao Estado, mas, também, frente aos demais indivíduos. De outro, constitui dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes. (PAULO & ALEXANDRINO, 2009, p.86).

A negligência da família chegava a tal ponto que à mesma não era proporcionadonenhumaespécie de tratamento de saúde, quer seja curativo, ou, muito menos, preventivo. Mesmo seus parescientes da visível deficiência mental que ainda hoje lhe acomete, não a conduziam à presença de um profissional médico a fim de lhe proporcionarem o tratamento devido, bem como uma medicação adequada, dentre outras providências necessárias de acordo com o quadro clínico apresentado.

De uma análisedo tratamento conferido pela família de Nazaré, é fácil perceber o quão abismal é a sua distância do conceito moderno de saúde dado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), quando nos aponta que “se trata de um completo estado de bem estar físico, mental e social, não consistindo somente na ausência de doença ou enfermidade” e ainda do que prevê a Lei 10.216 de 2001.

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Por mais contraditório que pareça, a mesma família que não empenhava nenhum esforço em assisti-la quanto a suas necessidades, bem como em lutar pela efetivação do seu direito fundamental à saúde, não poupou esforços para,“desinteressadamente”assegurar à Nazaré o seu direito ao benefício previdenciário. Os mesmos que eram negligentes em seus cuidados pessoais agiram com presteza e rapidez na luta pelo direito que asseguraria à paciente (pelo menos no plano teórico) uma vantagem econômica.

O benefício previdenciário já proporcionava à família pelo menos o mínimo de condição financeira a ser investido no trato da beneficiária, o que, diante dos relatos e fotografias, nos cabe um questionamento: será que o benefício estaria mesmo sendo destinado a quem de direito?

Cabe ainda fazer uma análise comparativa acerca dos relatos em relação ao zelo dispensado ao cartão do benefício previdenciário,em detrimento da própria beneficiária. Sem dúvida alguma, se fosse destinado a esta última o desvelo que é dado ao primeiro, certamente estaria vivendo no melhor cômodo da casa, longe de umidade e calor, sem marcas nem arranhões.

Mister se faz destacar a presteza e diligência da família em receber, rigorosamente em dias, o benefício previdenciário, ainda que para isso tenha que se submeter a enormes filas sob o sol escaldante, haja vista que, de longas, ultrapassam os limites do interior da agência bancária. Em contrapartida, quando as condições não permitem de modo algum que o advogado-missionário conduzaNazaré ao Centro de Assistência Psicossocial (CAPS),para consultas ou outros procedimentos que fazem parte do seu tratamento, a família sempre alega a impossibilidade de conduzi-la. Assim, a paciente deixa de ser consultada e de receber sua necessária medicação pelo simples fato de a família não se dispor a conduzi-la.

Ante o exposto, fica ainda mais evidente a omissão, negligência e falta de zelo para comNazaré por aqueles quem detém o imediato dever de lhe prestar assistência de forma direta.

3.3.O papel doEstado (Município de Ipueiras-CE)

A postura do Município de Ipueiras-CEante a situação em que Nazaré vivia e dentro de suas limitações, possibilidades e recursos disponíveis, no tocanteao momento, foitempestiva, em consonância com o princípio ora estudado, haja vista que o Poder Público não se imiscuiu no precedente e principal dever familiar.Porém, salvo o precário tratamento oferecido por meio do Centro de Assistência Psicossocial (CAPS), sua ação foi das mais desastrosas, visto que agiu reformando o cubículo para que a pacientepermanecesse encarcerada.

No tocante ao preceito em exame, o Estado não pode interferir de forma invasiva na intimidade dos indivíduos. Este não dispõe de mecanismos capazes de identificar e fazê-lo conhecer, todos os problemas enfrentados pelo particular, visto que este, diante de uma dificuldade que ultrapasse suas possibilidades de saná-la, é quem deveria recorrer ao Poder Público a fim de que oassista,ao contrário docasoora apresentado, onde o Poder Público somente veio a ser acionando por meio de terceiros, alheios à família, quando, somente a partir de então, passou a agir observando o momento que lhe cabia, ainda que o modus operandi possa ensejar discussões.

O Estado,ao ser provocado por terceiros a fim de que garantisse o direito à assistênciaa saúde de forma subsidiária, plena e eficaz, agiu, ainda que em desconformidade com o preceituado pela Organização Mundial de Saúde (OMS)e pela “Lei Antimanicomial”. O amparo fornecido pelo Ente Estatal se concretizou por meio da reforma da “quarto”,com a construção de um banheiro, uma cama em alvenaria, aplicação de revestimento em azulejoe aberturas que permitem a circulação de ar. Somada a essas melhorias, ainda no que diz respeito ao tratamento curativo, o município presta-lhe auxílio por meio doCentro de Assistência Psicossocial (CAPS), o que já permite, hoje, aNazarédispor de um convívio social e familiar,distante do “cárcere”desde as suas primeiras consultas.

Imagem 04: Fotografia recente de Nazaré (lado esquerdo) ao lado de sua cunhada (quem lhe presta o mínimo de assistência), sua sobrinha e seu irmão.

FONTE: Manoel Melo Sampaio.

Imagem 05: Vista externa do novo cubículo construído pelo Poder Público.

FONTE: Manoel Melo Sampaio.

Imagem 06: A parte interna do “quarto” onde Nazaré vive, após a reforma.

FONTE: Manoel Melo Sampaio.

Quanto às duas ações prestadas pelo Município de Ipueiras, verifica-se o completo despreparo de seus gestores, que agem promovendo a melhoria de um quarto para que uma enferma possa permanecer encarcerada de forma “digna”. Percebe-se então que com esta ação o próprio Ente Público dá sinais de que não acredita na eficiência de sua outra medida, o tratamento de saúde oferecido por meio do CAPS.

À luz do principio da subsidiariedade, o Município de Ipueiras é responsável secundariamente pela assistência à saúde de Nazaré, naquilo em que a família, por seus próprios esforços se vê incapaz de prover.

Destarte, as previsões constitucionais, influenciadas pelo princípio da subsidiariedade, atribuem ao Estadoe à família o dever de garantir a assistência à saúde.A responsabilidade Estatal se dásupletivamenteno tocante a todo indivíduo, devendo se realizar somente ante as impossibilidades daqueles a quemé atribuído o deverimediato de cuidado. Portanto, pelos missionários foi apresentado ao Estado o caso para que este agisse naquilo que lhe cabia e no que fugia das forças da família realizar, que era o tratamento médico e medicamentoso.

Por fim, o Poder Público Municipal, caso se visse impossibilitado de oferecer o tratamento devido, dispunha ainda, segundo o princípio da subsidiariedade, da possibilidade de recorrer ao Ente Federado Estadual, que, por sua vez, poderá acionar a União, que dispõe ainda, em último caso, da prerrogativa de buscar em instâncias internacionais o auxílio de que necessitam a fim de garantirem a prossecução da necessária assistência. Faz-se importante observar, contudo, que somente se deve lançar mão de ente diverso em caso de absoluta impossibilidade daquele prioritariamente competente.

3.4.As alternativas diante das omissões

            Conforme evidenciado no caso em análise, aqueles que deveriam prestarassistência a seu ente familiar, diretamente,falharam, de maneira omissa e negligente.A partir dessa realidade fez-se necessário o auxílio daqueles que assumem seu papel de cidadania, muitas vezes movidos por experiências políticas, ideológicas ou religiosas que os remetem a servir ao próximo, como identificado nos sujeitos missionários supracitados.

Na atualidade, os problemas sociais são incontáveis, e ainda poucos aqueles que,na correria dos seus afazeres dedicamparcela do seu tempo, deixando sua posição de conforto, a fim de assistir aqueles necessitados de ajuda.

A modernidade com o seu projeto capitalista, promoveu, dentre outras coisas, o desaparecimento do amor como sentimento humano que se realiza na esfera pública, isto porque a aridez e o declínio do espaço público são as características eminentes da sociedade de consumo e das relações econômicas mediadas pelo dinheiro. O amor fraterno reduziu-se ao convívio intimo dos amigos eleitos e ao amor romântico, como sentimento privado que une duas pessoas na intimidade. (PIMENTEL, 2014, p.444).

Como bem nos apresenta a citada autora, o amor fraterno tem dado lugar a relacionamentos, de certa forma, interesseiros, nos quais somente se dispensa amor a quem nos pode, de alguma forma retribuí-lo, ressalvados alguns ciclosíntimos de amizades ou relacionamentos amorosos.

Dessa maneira, na cidade se desdobram gestos miúdos, inúmeras redes de relacionamentos que se sustentam no espaço público, intercambiadas pela dádiva. Elas são pura manifestação desinteressada, no sentido de ser ação sem utilidade última. Elas são motivadas pelo afeto e pela solidariedade, promovendo outros percursos na cidade. (PIMENTEL, 2014, p.446).

Portanto, consoante Pimentel (2014), bem como observando a vida daqueles que prestaram a “Nazaré” o auxílio diante das omissões de quem era incumbido do dever de prestá-lo, fica evidente que o perfil dos que exercem seu papel como cidadãos na assistência aos desamparados é o de que o fazem de forma desinteressada, buscando como fim o bem do albergado. A motivação comum se dá por um engajamento político, uma espiritualidade adquirida a partir de uma experiência religiosa, como na maioria das vezes, dentre outros motivos deflagradores de um juízo altruístaque os faz enxergar aqueles que a sociedade, de uma maneira geral, não vislumbra.

Para o amador, fazer o bem não é uma prática utilitarista, que busca no sistema de trocas as vantagens e recompensas. Ao contrário, ele tem sua motivação numa opção política e, ou, ao mesmo tempo, numa motivação crística, isto é, seus gestos amorosos podem ser percebidos tanto na proposta universal de caridade ou no engajamento político militante. Nesse caso, suas ações com frequência são dirigidas para a promoção e defesa dos direitos humanos, tendo como campo de experiência a práxis educativa, na concretização de uma cultura de paz e para um comportamento ético da cidadania ativa. (PIMENTEL, 2014, p.447).

Aqueles que aderem a práticas caritativas possuem como ideal a maior das doações, sua própria vida em favor do outro. Desta forma, dedicam seu precioso tempo, que poderia ser aproveitado em seu benefício próprio, como para o descanso,no intuito de fazer o bem.Por vezes dedicam ainda o pouco de dinheiro que os resta, fruto do seu trabalho,a fim de promover a dignidade daqueles que a perderam.

Graças à ação dessas pessoas desprendidas de si mesmas e de seus bens, inseridas em Organizações Não Governamentais (ONG´S), instituições religiosas, dentre outras, que exercem sua cidadania ativamente, surge uma preciosa opção no auxílio aos desamparados, como no caso ora em estudo, em que a família falha e, consequentemente,o Estado não age em plenitude.O papel dos missionários fez-se determinante na vida de uma dentre inúmeras “Nazarés”que padecem diariamente dos males mais variados.

Pelo compromisso cidadão e cristão daqueles missionários, o relato de Nazaré não é ainda mais triste, quiçá trágico. Portanto, no vertente caso, enxergamos uma alternativa no âmbito extrajudicial, numa demonstração da valiosa participação do cidadão compromissado com a vida em sociedade, que, mesmo sem recorrer ao judiciário, foi capaz de sanar uma violação à dignidade da pessoa humanaagindo como cidadãos, isto é, fazendo valer os vínculos sociais.Não obstante isso, eram sabedores de que, não sendo esta via suficiente,dispunham do judiciário como meio alternativo, no qual depositariam a manifestaçãoa fim de que os responsáveis fossem impelidos a agir por meio de determinação legal.

Em uma análise sucinta, podemos perceber o papel da sociedade na assunção de responsabilidades no âmbito coletivo. A título exemplificativo,citamos o voluntariado na gestão dos primeiros hospitais surgidos, quando gradativamente foram deixando de ser geridos pela Igreja Católica e assumidos pelos cidadãos leigos que atuavam de maneira voluntária. Cabe ainda lembrar que somente no século XX o Estado passou a assumir a garantia do direito à saúde, sendo que somente no final deste século voltou a compartilhar sua atribuição com a sociedade.

Em suma, restaevidente o valioso papel do compromisso com a sociedade exercido pelos cidadãos, de forma individualizada ou por meio de organizações, fundações, instituições religiosas, ou, ainda, por grupos de cidadãos organizados sem personalidade jurídica, mas que agem, anonimamente, dando, cada um, sua parcela de contribuição, exercendo sua cidadania de forma ativa.

3.5. O dever de atuação do Ministério Público

Após visualizarmos a postura da instituição familiar, do Estado e da sociedade, passemos a analisar a atuação do Ministério Público, tido por alguns doutrinadores como o quarto poder da federação brasileira. Seria o Parquet mais um legitimado a agir no caso Nazaré?

       Consoante o entendimento de Hamacher (2003, OnLine),há o dever de agir do Ministério Público quanto ao cumprimento da garantia constitucional do Direito à Saúde, mesmo que em favor de um só indivíduo, senão vejamos:

O fundamento primário da atribuição ministerial para a defesa do direito individual à saúde está no art. 127,[1]caput, da Constituição Federal, que dispõe que incumbe ao Ministério Público a defesa dos interesses individuais indisponíveis. O direito à saúde é sem dúvida um direito individual indisponível, elencado no art. 6º, caput[2], da Constituição Federal dentre os direitos sociais, sendo decorrência direta do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, previsto logo no início da Constituição Federal, em seu art. 1º, III[3].

Comprovado, portanto, que incumbe ao Ministério Público a defesa do direito individual à saúde. (HAMACHER, 2003, online).

       Como pudemos observar, o Ministério Público possui sim legitimação para agir em casos como o de Nazaré,a fim de que seja garantido o direito à saúde. Portanto, levando-se em consideração as previsões constitucionais influenciadas pelo princípio da subsidiariedade e já oportunamente expostas, que tratam do dever da família na assistência à saúde de seus membros, depreende-se que tal órgão ministerial possui legitimidade para agir inclusive em desfavor dos próprios familiares do enfermo, necessitado da efetivação de tal direito por parte da família na proporção de suas possibilidades.

       Portanto, conclui-se que o Ministério Público pode e deve agir em casos como o deNazaré, com vistas a garantir a assistência à saúde dos enfermos tanto por parte da família, naquilo que lhe couber edentro de suas limitações, bem como por parte do Estado, no caso o Município de Ipueiras. Tudo isso sem prejuízo da responsabilização por outros direitos violados e inclusive crimes que possam ser caracterizados no caso, como o de cárcere privado, conforme disposto na redação do artigo 148[4] do Código Penal Brasileiro.

CONCLUSÃO

            Diante dos casos que surgem a cada dia de famílias que negligenciam a assistência à saúde de seus membros, têm-se necessária a identificação dos limites da responsabilidade familiar para que se possa exigir a prestação dela, bem como daquele que possui o dever de assistir o paciente naquilo que extrapolar as forças de promoção por parte da entidade familiar.

            Essa identificação das responsabilidades inerentes à assistência à saúde de quem dela é dependente devido à gravidade da enfermidade a que está acometida, bem como a identificação dos responsáveis por ela,constituem fatores determinantes para que o direito humano, fundamental e social que é o direito à saúde possa ser garantido em plenitude a estes, em sua dimensão curativa.

            Um valioso princípio nos auxilia nesta difícil tarefa de identificação de responsabilidades e traz ensinamentos que rompem com a cultura de um Estado centralizador ao qual sãoatribuídas todas as obrigações. O princípio da subsidiariedade, nascido na doutrina social da Igreja Católica e incorporada pelo direito público contemporâneo, vem nos apresentar uma ideia democrática de vida em sociedade, em que os indivíduos, a comunidade e o Estado, em todas as esferas de Poder, são corresponsáveis pela vida em sociedade, inserida aí a responsabilidade da família no que tange à assistência à saúde de seus membros.

            A nossa Carta Magna vigente, em alguns dispositivos, dá sinais da influência desse princípio em seu texto, dentre eles estão dispositivos que dispõem sobre o dever do Estado e da comunidade na promoção da saúde.

            Dessa forma, pelo princípio da subsidiariedade e pelas previsões constitucionais, a responsabilidade da família se dá de maneira imediata.Assim, é de sua responsabilidade promover a efetivação do direito à saúde de seus membros, sendo o Poder Público responsável somente naquilo que as famílias não tenham possibilidade de promover.

            Um clássico exemplo da falta da efetivação do direito à saúde é o caso da Nazaré, quando a família a privou deste direito, assim como de muitos outros, inclusive de sua própria liberdade, submetendo-a a indigna condição de cativeiro por mais de uma década.

            Por outro lado, o Estado, Município de Ipueiras-CE, agiu tempestivamente ao ser acionado por terceiros, assistindo a paciente por meio do Centro de Assistência Psicossocial (CAPS).Porém sua atuação se dá de uma forma verdadeiramentedesastrosa ao agir como partícipe do que se configuraria como crime de cárcere privado, na medida em que

proporciona a reforma do cubículo em que a deficiente mental vivia “enjaulada”. Por certo o Poder Público Municipal não acreditava na eficiência do tratamento que proporcionava aos seus munícipes, visto que mesmo promovendo àenfermaa assistência psicossocial, concomitantemente promovia a reforma do “cárcere” em que ela vivia, dando sinais da completa falta de credibilidade que dispensava a sua efetiva ação curadora.

            Portanto, é diante de casos como o de Nazaré que se faz necessário a identificação dos responsáveis pelo cuidado de quem necessita da efetiva garantia do direito à saúde, masque, devidoas suas limitações não têm sequer a consciência do que seja um direito. Por conseguinte, cabe àqueles que são unidos ao paciente, por laços sanguíneos ou afetivos, garantir tal direito, assistindo-o naquilo que lhes for possível e exigindo do Estado, responsável pelo que ultrapassar os limites das possibilidades familiares, para que a qualquer custo garanta-lhe a assistência necessária e preserve o bem mais caro ao Ser Humano que é a vida.

            Contudo, quando os responsáveis legais não assumirem seu dever de assistência, cabe a cada um de nós, como cidadãos, darmos a nossa contribuição à coletividade, a fim de construirmos uma nova sociedade, mais digna e justa, colocando nossa inteligência e dons a serviço dos demais.

            Há ainda aquele que, mais do que a faculdade, possui o dever de agir diante de tais omissões e violações de direitos, o Ministério Público, que, dentre inúmeras outras, detém a legitimidade para agir em favor de quem é ceifado do seu direito à saúde, seja contra a família ou o Estado.

            Por fim, é de grande valia que a luta em favor das “Nazarés” seja incessante, que possamos lutar para que o direito seja efetivado e assim capaz de promover a verdadeira justiça, libertando os cativos, amparando os que sofrem e devolvendo a dignidade de quem dela foi roubada.


 

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PAZZINATO, Luiz Alceu e SENISE, Maria Helena Valente. História Moderna e Contemporânea. São Paulo, SP: Editora Ática, 1994.

PIMENTEL, LidiaValesca. O amor na cidade: percursos afetivos e amadores. In: MATOS, Kelma Socorro Alves Lopes (Org.). Cultura de paz, ética e espiritualidade IV. Fortaleza: Edições UFC, 2014.

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TORRES, Silvia Faber. O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.


[1]Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,        incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. (BRASIL, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988).

[2] Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a              segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (BRASIL, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988).

[3] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

   [...]III - a dignidade da pessoa humana; (BRASIL, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988).

[4]Art. 148Privar alguém de sua liberdade, mediante sequestro ou cárcere privado:

Pena – reclusão, de um a três anos.

§ 1º – A pena é de reclusão, de dois a cinco anos:

I – se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do agente ou maior de 60         (sessenta) anos

II – se o crime é praticado mediante internação da vítima em casa de saúde ou hospital;

III – se a privação da liberdade dura mais de 15 (quinze) dias.

[...] § 2º – Se resulta à vítima, em razão de maus-tratos ou da natureza da detenção, grave sofrimentofísico ou moral:

Pena – reclusão, de dois a oito anos. (BRASIL, CÓDIGO PENAL, 1940).

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Sobre o autor
Lucas Rafael Chaves Sampaio

Acadêmido do Curso de Direito da Faculdade Farias Brito.

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