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Mais do mesmo: uma questão de eficiência

(ou alternativas à expansão numérica dos quadros do Ministério Público)

01/08/2002 às 00:00
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A extenuação dos recursos orçamentários do Estado

Quase que invariavelmente, as discussões que procuram estudar e investigar as prováveis causas que levam à falta de efetividade e à ineficiência funcional do Ministério Público esbarram no monocórdio estéril, frágil e surrealista que insiste na tese que a única solução viável para a resolução do problema está, indissociavelmente, relacionada à necessidade de se aumentar os quadros profissionais da instituição, o que se faria através de alteração legislativa com vistas à criação de novos cargos e posterior contratação por meio de concurso público. Porém, não pode haver sofisma maior, em que pesem os argumentos esgrimidos pelos defensores de tal entendimento.

Assiste-se sempre a velha e surrada ladainha que já não mais convence e muito menos pode ser admitida como forma de isenção de responsabilidade quanto ao insuficiente desempenho do órgão em determinadas áreas de atuação. Afinal o povo, destinatário último dessas atividades, continua a cumprir bem e disciplinadamente seu oneroso papel: boa parte dos impostos que paga é destinada a sustentar a máquina judiciária, incluindo-se neste conceito o Ministério Público, já que o órgão detém uma significativa parcela de responsabilidade na condição de "instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado" (1).

Ao cidadão muito pouco importa saber quais são as supostas causas que emperram a realização da Justiça, turvam a eficaz atuação do Parquet ou impedem que o órgão obtenha, em tempo razoável, índices expressivos de resultados favoráveis na defesa dos interesses da coletividade. Como seria natural, à sociedade interessa apenas ver resolvida a situação conflituosa instaurada e em tempo que ainda lhe seja útil, já que o exercício das próprias razões lhe é terminantemente proibido.

A crise pela qual passa a função jurisdicional no país não escapou à aguda percepção do Prof. José Eduardo Faria – que em boa medida também se aplica ao Ministério Público, pelas razões já expostas. Para ele "(...) o Judiciário brasileiro é hoje visto e tratado como o mais anacrônico dos poderes da República. Perante a opinião pública e a imprensa, ele é um moroso e inepto prestador de serviço. Já o Executivo, conforme as declarações oficiais e oficiosas dos responsáveis pela preparação do Orçamento Geral da União, o considera uma instituição perdulária, insensível ao equilíbrio das finanças públicas, pois seus gastos em obras, suas crescentes despesas de custeio e suas próprias sentenças, além de comprometer o ajuste fiscal, travariam a ‘reforma do Estado’. E o Congresso, por fim, há tempos acusa o Judiciário de exorbitar em suas prerrogativas, de interferir no processo legislativo e de bloquear a execução de políticas formuladas por órgãos representativos eleitos democraticamente, ‘destecnificando’ a aplicação da lei e, por conseqüência, levando à ‘judicialização’ da política e à ‘tribunalização’ da economia (2)".

Para se exorcizar os dramas da ineficiência funcional que atingem também o Ministério Público, é preciso, antes de tudo, que todos se convençam que o Estado brasileiro, em rápida e franca decadência – que tem nas raízes do malogro um histórico de incompetência, de desmando administrativo, acumulados ao longo de sucessivas e desastradas administrações, agravados e alimentados por uma boa dose de impunidade - já não dispõe dos recursos mínimos necessários para sustentar sua vocação fundamental representada pelas obrigações na área da educação, da saúde e da segurança pública. A sociedade brasileira e os organismos estatais estão órfãos. Já não se pode contar com o Estado para qualquer parceira. Sua capacidade financeira e de investimentos em áreas estratégicas, já de longa data, encontra-se irremediavelmente comprometida.

Não bastasse o débâcle financeiro que anula a capacidade do Governo de atender suas funções básicas e impede, por conseqüência, os investimentos necessários para o aperfeiçoamento das atividades do Ministério Público, existem outros obstáculos difíceis de serem superados se se pretender alcançar situação de tranqüila estabilidade orçamentária. Parece suficiente citar, como exemplo, a própria Lei de Responsabilidade Fiscal que representa um limite intransponível às pretensões orçamentárias do Parquet, sem necessidade de se mencionar, pormenorizadamente, outros tantos projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional, que buscam reduzir, de forma drástica, a participação do Ministério Público nos recursos arrecadados pelo Estado. (3)

Portanto soa utópico, ilusório, irresponsável até, esperar encontrar no orçamento do Estado os recursos financeiros que se julgam suficientes para atender plenamente às necessidades do órgão. A partir de agora, é preciso que o Ministério Público trate de se ajustar aos esquálidos recursos orçamentários que ainda estão disponíveis, sem qualquer esperança de que as finanças públicas venham se adaptar às suas justificadas necessidades. A eficiência que se deve conquistar passa, obrigatoriamente, por este estreito caminho.

A tese expansionista e seus equívocos

Não se conhecem dados oficiais a respeito, mas uma análise fática, perfunctória apenas, já é suficiente para se constatar que, nos últimos anos, o Ministério Público experimentou sensível alteração no seu quadro profissional (entre Promotores de Justiça e técnicos). Agora mesmo tramita na Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais projeto de lei, de iniciativa do Parquet, que cuida da criação de algumas centenas de cargos, nos mais variados níveis e categorias.

Nada obstante as reconhecidas dificuldades do passado, é preciso também admitir que desde sempre, ainda que de modo tímido e acanhado, principalmente em razão da falta de estrutura adequada, o Ministério Público jamais deixou de cumprir seu papel constitucional. Apesar das históricas restrições humanas, materiais e técnicas, o Parquet sempre soube encontrar alternativas capazes de viabilizar sua missão e jamais deixou quedar-se diante das adversidades e dificuldades espalhadas pelo caminho. Com efeito, viveu-se um tempo em que o Ministério Público se resumia à figura pessoal de cada Promotor de Justiça que, por sua vez, dispunha apenas de uma estrutura mínima, quase insignificante quando comparada às suas necessidades. Ainda hoje, apesar da importância do seu papel constitucional e da verdadeira revolução que tem causado sua firme atuação na defesa dos interesses sociais que lhe foram confiados, as condições de trabalho de que dispõe o Parquet encontram-se muito aquém daquilo que seria necessário.

Exatamente por isso, é de se convencer que os resultados positivos até aqui obtidos, além do reconhecimento e da respeitabilidade hoje alcançados pelo Ministério Público, se devem muito mais ao sentido de responsabilidade, à dedicação e ao empenho de cada um dos seus membros – que também encontram sustentação nos instrumentos jurídicos postos à sua disposição, editados após a reinserção do país no contexto democrático – do que a qualquer outro fator, por mais relevante possa parecer.

Com efeito, de muito pouco adiantaria ao órgão poder contar com uma arrojada estrutura e adequada condição material se não dispusesse também - ao lado da dedicação, do empenho e do preparo profissional dos seus membros - de instrumentos jurídicos que se revelassem eficazes para o bom desempenho das suas atribuições.

Percebe-se ainda que a tese minimalista que insiste na necessidade de se alargar a todo custo os quadros do Ministério Público, não é secundada por nenhum estudo sério que se preocupe oferecer argumentos sólidos, capazes de justificá-la ou fundamentá-la. Por se revelar vazia de conteúdo, acaba por se reduzir à condição de uma opinião desautorizada, amparada em meras presunções, desprovida de qualquer rigor técnico ou científico.

Desse modo, a alegação de que a difusão das atribuições do Ministério Público a partir da Carta Constitucional de 1988, por si só, justificaria a expansão numérica dos profissionais que integram o seu quadro não parece ser suficientemente credível. Principalmente porque deixa de considerar outras variantes que serviriam para reduzir, ou mesmo anular, os efeitos do novo desenho constitucional do órgão, tais como a criação de um corpo de auxiliares e técnicos; a admissão de estagiários; a dotação de cada um dos órgãos de execução de uma estrutura orgânica mínima, inclusive secretaria; a incorporação de novas tecnologias, dentre outras.

De outro lado, é preciso compreender que a suposta necessidade de se acrescer o quadro profissional do Parquet, para além de ser equivocada, é também uma opção perigosa, quiçá absolutamente desnecessária. Definitivamente, não se pode admitir a hipótese de que a eficiência funcional que tanto se busca, somente possa ser alcançada através de um caminho que implique, necessariamente, em aumento significativo dos custos, numa época de grande retração orçamentária. Contrariamente, percebe-se que o Estado, perfilhando uma perversa lógica, procura redimensionar o seu modelo, dando ênfase ao discurso que defende a sensível diminuição das suas funções. São os inconfundíveis reflexos do "Estado mínimo", promovido pela política neoliberal, que chegou para ficar.

O insigne Paulo Roberto Dias, do Ministério Público do Estado de São Paulo, especialista no assunto, de longa data, vem alertando para as implicações que podem representar a ampliação dos quadros funcionais da instituição. Afirma, com a autoridade que lhe é peculiar, que "os riscos do ‘inchaço’ que se verifica hoje na carreira são cristalinos. O principal, sem dúvida, é a perda de status institucional e remuneratório dos membros do Ministério Público, pois a expansão quantitativa dos quadros é antagônica à tendência de restrição orçamentária e otimização dos recursos que se verifica em todo setor público" (4).

Mesmo que incorra no risco de ser mal interpretado ou ainda que a posição que passo a defender seja confundida com uma manifestação meramente corporativista, creio ser preciso afirmar que a vulgarização e a banalização das funções ministeriais, além de não resolverem definitivamente os problemas estruturais do órgão, não são desejáveis e, por numerosos motivos, devem ser evitadas. Com efeito, em se tratando de Administração Pública, infelizmente, nem sempre o incremento das despesas do setor público é revertido a favor do cidadão, refletindo na melhoria dos serviços que lhe são prestados.

Segundo a síntese cortante formulada por Niskanen – que trata de analisar a voracidade orçamentária da burocracia oficial, que dificilmente se traduz em benefícios para a sociedade que a sustenta - "existem dois tipos de atores no processo administrativo, correspondendo aos vendedores e compradores no mercado: os burocratas que vendem os serviços e os políticos que financiam os mesmos serviços. Os primeiros estão motivados para aumentar os orçamentos e os segundos o número de votos. O resultado é uma superprodução de serviços muito para além do que é procurado pelos cidadãos, consumidores dos serviços públicos. O aumento do orçamento permite melhores salários, maior representação e poder; e, em ordem a prosseguir estes objetivos, intrigam, mentem e manipulam (5)".

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Não bastasse a contundência desses argumentos, também é preciso considerar que o alargamento do quadro funcional do Ministério Público - sem que seja precedido de sério estudo e de criterioso planejamento - poderá transformá-lo, em muito pouco tempo, num paquiderme, caro, desacreditado e ineficiente, incapaz de cumprir minimamente suas atribuições, exatamente como já ocorre, em larga escala, com nosso principal homólogo (6).

Por tudo o que foi dito, impõe-se que os "equívocos" da solução expansionista sejam analisados por diferentes ângulos. Primeiramente seria de se indagar se há, realmente, necessidade imperiosa de se promover referida medida, como sendo a única alternativa para que o órgão possa superar suas atuais dificuldades, nomeadamente no que se refere à ineficiência funcional. Se existe mesmo essa necessidade é de se perguntar, então, quais foram os critérios, sejam de ordem técnica ou científica, utilizados para se chegar a tal conclusão.

Parece-nos que o vício desse pensamento, quase único, é mesmo de origem. Portanto, lá no seu próprio nascedouro deveria ser eficazmente combatido. Com efeito, não há na estrutura administrativa do Parquet qualquer critério que se mostre minimamente útil para aferir ou constatar a "produtividade", o "desempenho" e a "qualidade" do trabalho realizado por cada um dos seus membros. A ausência de conhecimento quanto a essas informações – que podem ser vitais para qualquer projeto de futuro - acaba por mascarar os fatos e conduzir, muitas vezes, a uma falsa percepção da realidade.

A ineficiência dos instrumentos internos de controle

Lamentavelmente, em nome da independência funcional, que também se sujeita aos clássicos princípios da Administração Pública, nomeadamente o princípio da eficiência, alguns desvios são ainda cometidos. O pouco controle administrativo que ainda há no âmago da instituição é sempre reativo e raramente se manifesta de forma proativa. A flagrante displicência ou mesmo a pura ausência de compromisso com os instrumentos de controle interno – que por vezes são antipáticos, mal compreendidos e não rendem dividendos políticos - levam a situações indesejáveis de manifesta desigualdade, designadamente no que se relaciona ao desempenho, às atribuições e às responsabilidades individuais que, não raro, passam à margem de qualquer forma controle.

No final, essa falta de critério e de coerência interna - que causa sérias e injustas distorções, principalmente porque privilegiam uns e desfavorecem outros – faz com que o Ministério Público ganhe contornos que o assemelham a uma espécie de poder quase absoluto, sem controle, introspectivo, voltado para si mesmo, sem qualquer capacidade de autocrítica, de auto-avaliação e de reação.

Com efeito, enquanto muitos trabalham excessivamente, se entregam de corpo e alma à instituição e às causas por ela defendidas, outros se limitam a cumprir um papel subalterno, de mera coadjuvação. A uma distância segura - de onde não corram os riscos naturais que o efetivo exercício do Ministério Público impõe - a tudo assistem, sem maiores preocupações. No entanto, apesar de não sofrerem os pesados ônus que o exercício da função implica, gozam de todas as vantagens e de todas as benesses que o cargo proporciona.

Não é sem razão que a voz autorizada de José Casalta Nabais (7), nos lembra que as sociedades em geral e os órgãos da Administração Pública em particular, são sempre muito ciosos quanto à defesa dos seus "direitos fundamentais" mas pouca ou nenhuma importância dão aos seus "deveres fundamentais". Talvez por isso é que ganham força na doutrina os estudos axiológicos acerca de um tema que o consagrado autor português resolveu definir como sendo "a face oculta dos direitos fundamentais", onde também procura enfatizar " os deveres e os custos do direito (8)".

Num segundo momento, deve-se questionar se o aumento vertiginoso nos quadros do Ministério Público não serviria apenas como pano de fundo a ocultar suas idiossincrasias, mantendo as coisas como estão e impedindo que as falhas relativas ao seu controle interno sejam definitivamente enfrentadas e equacionadas. Afinal, até quando persistiria esse círculo vicioso onde o aumento das nossas atribuições levaria, necessariamente, ao acréscimo nos quadros profissionais do Ministério Público?

A correta interpretação da garantia da independência funcional

Percorrendo caminho inverso, parece ser perfeitamente possível conciliar as graves atribuições do órgão mantendo-se, todavia, um quadro enxuto, com uma estrutura profissionalizada, desburocratizada, que seja rápida e eficiente, sem perda de qualidade. Aliás, nem sempre a quantidade numérica, por si só, é sinônimo de qualidade e de eficiência. Deve-se valorizar mais e melhor as potencialidades internas.

Para que isso ocorra é preciso, evidentemente, que se cumpram alguns pressupostos. O primeiro deles está indissociavelmente relacionado à responsabilidade individual, à criatividade, à boa-vontade, à dedicação, ao empenho, à competência, ao espírito de equipe e de solidariedade e à consciência pública de cada um dos profissionais que integram os quadros do Ministério Público.

A um custo relativamente baixo, é possível investir no aperfeiçoamento e na formação profissional dos membros e dos demais servidores do Parquet, de modo a prepará-los e motivá-los para os graves desafios que têm diante de si, buscando mantê-los sempre e objetivamente comprometidos com as políticas de atuação e com as metas definidas pela instituição.

De outro lado, é imprescindível que se reforcem os instrumentos de controle interno, como forma de se evitar eventuais desvios e distorções, principalmente àqueles relacionados às suscetibilidades individuais. Neste particular aspecto, a garantia da independência funcional, que encontra limites intransponíveis nos princípios que orientam a Administração Pública, não deve ser vista como instrumento fomentador de veleidades e tampouco deve estar a serviço de interesses que não estejam estritamente relacionados com as incumbências que foram confiadas pelo artigo 127 da Constituição Federal.

Diferentemente do que alguns imaginam, é preciso entender que a independência funcional - tal como ocorre com as garantias da inamovibilidade, da vitaliciedade e da irredutibilidade de subsídio – tem como destinatário final a coletividade, de modo a possibilitar que o Ministério Público possa bem desempenhar suas funções, de forma livre e independente, sem estar sujeito a qualquer tipo de coação, de injunções ou pressões indevidas. Portanto, natural supor que referida garantia relaciona-se muito mais ao cargo do que à individualidade de quem o ocupa num determinado momento. E sendo assim, não deve servir como escudo para encobrir a incompetência, a eventualidade de comportamentos negligentes ou mesmo para justificar a falta de interesse e de comprometimento com os fins e objetivos perseguidos pela instituição, que deve sempre prestar contas à sociedade do seu desempenho.

Não se pode permitir que a garantia da independência funcional seja confundida com vaidades e frivolidades pessoais, em prejuízo do interesse público. Não fosse assim, em nome de convicções políticas e religiosas - que são sempre de caráter pessoal - seria permitido, por exemplo, a qualquer órgão do Ministério Público, considerar abolidos ou permitidos pela lei penal determinados comportamentos que hoje são tidos como ilícitos, tais como o aborto, o adultério, o uso de substâncias entorpecentes, dentre outros. Evidentemente não é isso o que propõe o princípio da independência funcional. Referida garantia não pode impedir que todos estejam eficazmente comprometidos com um objetivo comum, que não se limite apenas ao plano das iniciativas individuais.

Os objetivos propostos pela instituição, previamente definidos por seus órgãos superiores, devem ser alcançados em lapso temporal razoável e com a qualidade que se espera do conjunto dos seus profissionais. Aliás, nunca é despiciendo lembrar que o Parquet está sujeito a um Plano Geral de Atuação (9), aprovado por seu órgão colegiado máximo. Aliás, como bem adverte o insigne Fábio Konder Comparato, é preciso que o Ministério Público tenha um mínimo de unidade e de coerência que facilitem a tomada de decisões coletivas, capazes de manifestar uma vontade comum, sob pena de ver frustrada sua atuação (10).

Em nome do que determina o interesse público e em obediência aos demais princípios que balizam o exercício da Administração Pública, é conveniente que o Ministério Público estabeleça metas, critérios e políticas de ação, que vão muito além de uma atuação isolada, desconexa, que privilegie apenas os esforços individuais. A criminalidade globalizada, as organizações criminosas, a ação inclemente das grandes "máfias" que, concertadas, investem contra o patrimônio público, contra o meio ambiente, contra os direitos do consumidor, e a necessidade de se defender as novas categorias de interesses que surgem a cada instante, exigem que o Ministério Público também atue em rede, exercitando todas as suas potencialidades, de forma eficaz e planejada. Ações fragmentadas e dispersas dificilmente poderão triunfar perante os novos tipos de ilícitos, forjados todos numa sociedade globalizada em sem fronteiras.

Aliás, nesse sentido, parece sintomática lição de Canotiho: "(...) O primeiro modo globalitariamente relevante tem como referência o poder e violência, ou melhor, os poderes, operantes ou susceptíveis de operar no plano mundial. Desde o clássico ‘poder de fazer guerra’, passando pela criminalidade organizada e o tráfico de drogas, de armas e de seres humanos, até ao terrorismo internacional, tudo aponta para uma ‘comunidade global de violência’ que só pode combater-se com uma comunidade global de cooperação. É a idéia de publicidade crítica mundial que justifica a cooperação na defesa planetária dos direitos humanos. É a abertura globalizante que permite a cooperação na defesa mundial do ambiente. É a idéia de reciprocidade e igualdade planetárias que alimenta o espírito dos "Jogos Olímpicos". É a rede mundial electrónica que facilita a comunicação global. Os exemplos são por demais evidentes e demonstram bem que a comunidade de destino global é, e deve de ser, uma comunidade de cooperação" (11).

Propostas e sugestões à expansão numérica dos quadros do Ministério Público

Através de medidas simples e pouco onerosas é possível melhorar significativamente a atuação do Ministério Público, aproximando-a do ideário de justiça que seja capaz de garantir respostas rápidas, seguras e eficazes, segundo as demandas e as necessidades sociais. Excelentes exemplos podem ser hauridos a todo momento, conforme interessantes experiências que vão surgindo a cada dia.

1°) - Os multirões de férias

Através de simples medida administrativa, implantou-se no âmbito do Ministério Público de Minas Gerais, interessante modelo de cooperação, objetivando regularizar o serviço naquelas Promotorias e Procuradorias de Justiça que apresentem atraso nas suas atividades.

Desse modo, por ocasião das férias regulamentares, depois de publicado um edital, os Promotores e Procuradores interessados podem candidatar-se para participar desse esforço concentrado, uma espécie de multirão, que tem como objetivo a regularização dos serviços afetos ao Parquet. Os que são aceitos recebem uma determinada carga de processo, com a responsabilidade de devolvê-la após manifestação devida, ao término do período das férias.

Pelo trabalho exercido durante as férias, conquistam o direito de compensar o período trabalhado em oportunidade futura. Essa medida tem produzido excelentes resultados, sem onerar significativamente a programação orçamentária do órgão.

Contudo, é preciso criar e observar rígidas formas de controle como meio de se evitar que essa medida, de caráter excepcional, possa servir para premiar eventual comportamento negligente e irresponsável. Assim, apenas a título de sugestão, a Promotoria ou Procuradoria auxiliada pelo multirão não poderia novamente atrasar suas atividades e nem participar de novos multirões, salvo justificado motivo. Além disso, a participação no referido esforço concentrado só poderia ser permitida àqueles que tenham suas atividades rigorosamente em dia, devendo submeter o trabalho realizado a rígidos critérios de qualidade.

2°) A atuação uniforme para a consecução de objetivos comuns como espécie de forma alternativa de resolução de conflitos ou atuação em rede

No ano de 1999, com o incondicional e imprescindível apoio da Corregedoria-Geral e da Procuradoria-Geral, os Promotores de Justiça da Bacia do Rio Grande (Sudoeste de Minas Gerais), se uniram em torno de objetivos comuns culminando na criação do documento intitulado "Carta de Passos", onde propõem a atuação conjunta e uniforme do Ministério Público para a defesa do ecossistema daquela importante Região hidrográfica, com o efetivo envolvimento de órgãos municipais, estaduais, federais e da sociedade civil.

Posteriormente, o documento passou a ser integrado também por Promotores de Justiça e por Procuradores da República do Estado de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Goiás, seguindo-se intensa troca de experiências e informações, através de inúmeras reuniões, debates e seminários.

Logo no início dos trabalhos, reiterou-se que o meio ambiente é mesmo um complexo sistema que se interage entre si e que nesta condição torna-se merecedor também de uma proteção integrada. Portanto, logicamente concluíram que a uniformidade das ações desenvolvidas por parte dos órgãos responsáveis por sua defesa é a melhor e mais eficaz forma de defendê-lo. Intuiu-se ainda que de nada ou muito pouco adiantariam ações isoladas, pontuais e desconexas, despidas de uma continuidade lógica, que fosse capaz de enfrentar o problema em toda sua extensão.

Estabelecidas essas premissas, a inovadora experiência foi levada adiante, com a obtenção de excelentes resultados, sem nenhum gasto adicional por parte do Estado e sem que se ferisse a independência funcional e as suscetibilidades daqueles que participam das ações integradas. Um grupo de trabalho passou a reunir-se periodicamente nas cidades da Região, às suas próprias expensas, para definir ações, estratégias, além de avaliar os resultados das suas atividades, fato que revela bem a boa-vontade, a disposição, e o espírito público dos profissionais envolvidos.

A excitante experiência e os eficazes resultados proporcionados a partir da "Carta de Passos", permitem-nos acreditar na possibilidade real e concreta de se substituir uma visão jurídica de caráter exclusivamente unitária – que atribui ao Poder Judiciário a exclusividade na resolução dos conflitos sociais - por uma visão social de vanguarda, pluralista, onde o Ministério Público e outros atores da sociedade civil organizada passam a ter papel preponderante na resolução dos conflitos, assumindo parte dessas responsabilidades.

Aliás, a própria globalização e o atual estágio da nossa cultura contemporânea favorecem o surgimento de ciências que buscam vencer a ineficiência dos órgãos estatais. São os novos meios alternativos de resolução dos conflitos que ganham destaque na doutrina especializada. Segundo a valiosa lição de Dora Fried Schnitman, "Los distintos âmbitos – familiar, educativo, laboral, etc. – enfrentan procesos de cambio social y cultural que llevan hacia una complejidad creciente. En tal contexto, los conflictos entre personas, sistemas o subsistemas de sistemas complejos pueden percibirse como un aspecto indeseable o como una oportunidad de cambio. Las metodologías para la resolución alternativa de conflictos facilitan la definición y la administración responsable – por individuos, organizaciones y comunidades – de los propios conflictos y de la vía hacía las soluciones. La mediación y otras metodologias pueden facilitar el diálogo y proveer destrezas para la resolución de situaciones conflictivas... Los contextos de resolución alternativos a la confrontación, al paradigma ganar/perder, a la disputa o el litígio, se orientan hacia la coparticipación responsable, consideran y reconocen la singularidad de cada participante en el conflicto, la posibilidad de ganar conjuntamente, de construir lo común y sentar las bases de soluciones efectivas que legitimen la participación de todos los sectores involucrados para resolver colaborativamente los conflictos entre partes, promoviendo el cambio mediante la búsqueda de soluciones consensuadas y la construcción de ‘lugares’ sociales legítimos para los participantes" (12).

Com efeito, através de instrumentos simples e eficazes como o inquérito civil, o termo de ajustamento de conduta e as recomendações administrativas - instrumentos previstos na Lei da Ação Civil Pública e na Lei Orgânica do Ministério Público – é possível resolver boa parte dos conflitos sociais que se avolumam sem necessidade de se recorrer ao Poder Judiciário por meio das intermináveis, incertas e dispendiosas ações judiciais. Aliás, outra não é a linha de raciocínio defendida pelo erudito André Luis Alves de Melo no seu artigo intitulado "Justiça sem processo e com reconhecimento pela sociedade (13)".

3°) – Convênios com outros órgãos da Administração Pública e organizações não-governamentais.

Outro exemplo que não pode se desprezado refere-se ao antológico convênio de cooperação firmado entre o Ministério Público de Minas Gerais e o Ministério do Meio Ambiente, com vistas à implantação de uma espécie de Promotoria de Justiça interestadual, envolvendo os Estados de Minas, Bahia, Alagoas, Sergipe e Pernambuco, com o especial fim de promover a defesa da Bacia do São Francisco.

Promotores de Justiça de cinco Estados da Federação se uniram em torno de um objetivo comum que é, aliás, de interesse Nacional. Neste caso, a motivação, o entusiasmo, a criatividade, a boa-vontade e o espírito público e de equipe, foram os principais ingredientes de uma iniciativa que já se revela vitoriosa até mesmo em razão do seu pioneirismo.

Através do citado convênio, o Ministério do Meio Ambiente inicia a uma nova fase onde privilegia a tomada de decisões concretas e efetivas. As verbas liberadas pelo Governo Federal irão possibilitar o início da instrumentalização do Ministério Público dos Estados envolvidos, buscando criar condições necessárias para a recuperação da extensa bacia hidrográfica do Rio São Francisco, principalmente através de estudos técnicos que apontarão as medidas a serem adotadas para a plena consecução dos objetivos propostos.

É o primeiro e significativo passo desta que talvez seja a mais séria e abrangente iniciativa oficial para a defesa de um ecossistema atualmente em execução no país. É notável a motivação dos profissionais envolvidos, os quais estão firmemente convencidos do sucesso do empreendimento. A participação de Universidades, de órgãos oficiais tais como o IBAMA, as Secretarias Estaduais e Municipais de Meio Ambiente, além de outras entidades ligadas à defesa ambiental, garante a qualidade do projeto e faz com que os custos das operações sejam bastante reduzidas.

4°) – Da participação de Universidades e outros centros de pesquisa.

A admissão de técnicos para a formação dos quadros do Ministério Público, através dos onerosos procedimentos impostos pela legislação para a contratação de funcionários públicos, pode perfeitamente ser substituída por um outro procedimento desburocratizado, econômico, célere e capaz de oferecer melhores resultados.

Com efeito, os centros de pesquisa das Universidades brasileiras, sejam elas públicas ou particulares, apresentam hoje capacidade ociosa em razão da falta de investimento adequado. As primeiras vítimas do esgotamento da capacidade de investimento do Estado são os núcleos de pesquisas científicas e tecnológicas, geralmente ligados às universidades, principalmente porque esses órgãos não apresentam resultados instantâneos como seria do gosto da elite política. Assim, capacitados pesquisadores, nas mais variadas áreas, são desprezados pelas Universidades por falta de recursos para sustentar os investimento.

Por não restar a esses profissionais outra alternativa, vão buscar refúgio na iniciativa privada ou saem para aventurar-se em centros de pesquisa no exterior, apesar da vocação inata para o trabalho de pesquisa universitária. Poderiam tais profissionais, sem maiores dificuldades, serem cooptados pelo Ministério Público, a partir de convênios e acordos, devidamente remunerados, para a execução dos trabalhos técnicos e científicos de que o órgão necessita para o desempenho de suas funções.

Desse modo, o Ministério Público passaria a contar com um verdadeiro "quadro de elite", altamente profissionalizado, de confiança, a custo acessível, sem as inconveniências e as dificuldades que podem resultar da vinculação estatutária.

Como se vê, são muitas as hipóteses que podem ser utilizadas como alternativa à política de expansão numérica dos quadros do Ministério Público. Contudo, é preciso coragem e determinação para fugir ao conservadorismo e implantar novos métodos de administração que impliquem no envolvimento efetivo de todos os que integram os quadros do Ministério Público.


NOTAS:

1. Art. 127, CF.

2. A crise do Judiciário no Brasil: algumas notas para discussão, in Revista do Ministério Público, janeiro-março, 2002. Ed. Minerva: Lisboa, p. 9-10.

3. Vide projeto de Lei n° 042/02, em trâmite na Câmara dos Deputados.

4. In O crescimento dos quadros do Ministério Público: reflexões, Revista Eletrônica da Associação Paulista do Ministério Público (www.apmp.com.br).

5. William Niskanen, in Bureaucracy and Representative Government, Chicago: Aldine Atherton, 1971, p. 47.

6. Analisando os graves problemas administrativos enfrentados pelo Poder Judiciário que freqüentemente se perde no emaranhado de sua atividade meio em prejuízo da sua atividade fim, afirma José Eduardo de Faria que "A conversão dos cartórios judiciais em máquinas kafkianas de fazer transcrições, emitir certificados e expedir notificações, por exemplo, levam os juízes a transformar-se em administradores de escritórios emperrados, em vez de exercer sua verdadeira função jurisdicional. (...) E, na medida em que esse contexto organizacional tende a embotar o espírito e a não estimular a reflexão, a valorizar a tradição e a desprezar a crítica, o Judiciário acaba sendo franciscano na produção de idéias novas e de respostas para seus principais problemas". Ob. cit., p. 15.

7. "O esquecimento dos deveres - Uma primeira consideração a fazer a esse respeito tem a ver com a verificação, com o esquecimento dos deveres fundamentais. Na verdade, podemos afirmar que os deveres fundamentais constituem um assunto que não tem despertado grande entusiasmo na doutrina. Bem pelo contrário. Se tivermos em conta a doutrina européia do segundo pós-guerra, constatamos mesmo que tanto os deveres em geral como os deveres fundamentais em particular foram objecto de um pacto de silêncio, de um verdadeiro desprezo", in A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos do direito", Revista Eletrônica da Advocacia Geral da União, Ano III, n° 021, abril/2002 (www.agu.gov.br).

8. Aut. e op. cit. nota n° 04.

9. Cfr. Art. 24, II, Lei Complementar Estadual n° 034/94.

10. In As garantias institucionais dos direitos humanos – Artigo publicado na página eletrônica da Associação Nacional dos Procuradores da República.

11. José Joaquim Gomes Canotilho, in Implicações para a cidadania (Os novos espaços de segurança e defesa) - Revista do Instituto de Altos Estudos Militares, Ed. Atena Lda., Lisboa, 2001, p. 22

12. In Nuevos paaradigmas en la resolución de conflictos – perspectivas y prácticas, Buenos Aires: Ed. Granica, 2000, p. 18, Comp. Dora Fried Schnitman.

13. Aut. e ob. cit, in Revista Eletrônica da Associação Paulista do Ministério Público (www.apmp.com.br).

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Sobre o autor
Paulo Márcio da Silva

promotor de Justiça em Minas Gerais, professor universitário, mestre e doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Paulo Márcio. Mais do mesmo: uma questão de eficiência: (ou alternativas à expansão numérica dos quadros do Ministério Público). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3064. Acesso em: 18 mai. 2024.

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