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O ensino jurídico e o exercício pleno da cidadania

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24/10/2014 às 12:40
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3. O Ensino Jurídico e a Plena Cidadania. A importância das disciplinas propedêuticas.

Para Maria Garcia (2013, p. 364):

Duas são as formas extremas dos regimes políticos: ou o poder é a vontade dos governantes impostas aos governados, ou o poder e a vontade dos governados delegada aos governantes, para o exercerem em nome deles. Ou autocracia ou democracia.

Nas autocracias, quanto mais afundar-se o povo na ignorância, melhor. Quando muito, monopolizar o governo a educação, para fanatizar as massas e silenciá-las no trabalho.

Nas democracias, quanto mais educado o povo na escola da liberdade, melhor. Quando muito, intervenha o Estado, para suprir as deficiências individuais em educação.

Tendo proclamado no artigo 1º da Constituição para si, o regime democrático o que cumpre em consequência ao pais é tudo fazer porque para que o  povo se eduque na escola da liberdade, na consciência de seu destino, na capacidade para o trabalho.

Sem educação (...), o voto com que se constitua o poder será antes um flagelo que providência. A educação é o problema básico da democracia.

Oportuna a ideia desenvolvida pelo filósofo Josep Aguiló Regla ao propor a  diferenciação entre “ter uma Constituição” e “viver em Constituição”. Para esse autor “ Um sistema jurídico político “ tem uma Constituição quando conta com a forma constitucional como garantia desses ideais (do constitucionalismo); e “vive em Constituição “ quando esses ideais são praticados”.[10] O que caracterizaria então o Estado Constitucional de Direito seria não somente a existência de uma constituição formal com um rol de direitos fundamentais positivados e, sim sua verdadeira implementação.

Portanto, o primeiro compromisso a ser assumido pelas faculdades de  direito seria o de efetivamente propiciar aos alunos um ensino jurídico capaz de levá-los à compreensão de que o Brasil somente poderá ser considerado um Estado Constitucional Democrático de Direito quando efetivamente promover os direitos fundamentais e sociais e caminhar no sentido de cumprir seus objetivos tal como expressos na Constituição. Para isso, além do domínio do conhecimento técnico – que é essencial - é necessária uma formação humanística sólida.[11]

Para Rodrigo Cintra (2013, p. 23), são as disciplinas propedêuticas[12] que formarão uma base sólida para que o jurista possa compreender a realidade em que está inserido, entender o alcance e limite do direito, sensibilizar-se com as injustiças sociais e formar um espírito aberto e crítico, características essenciais de uma formação humanista.

Para além da técnica, indispensável para a análise do direito, o jurista deve reconhecer as dificuldades inerentes à aplicação pura e fria da lei. Deve buscar a possibilidade efetiva de justiça.

E, defendendo a pertinência da filosofia na formação do operador do direito diz:

A filosofia deve ser um modo de superação do senso comum, uma capacidade de reflexão rigorosa, crítica e sistemática sobre os problemas da realidade. deve ser crítica da ideologia dominante para a superação da dominação. Em outras palavras, a filosofia nos tempos atuais tem uma tarefa: detectar os discursos prontos, discursos ideológicos e denunciá-los, de modo que, ao Expô-los a crítica, verificar o que resta  o que ainda pode pode ser de utilidade para a explicação da realidade.

A formação do indivíduo deve ser a mais completa possível, o que inclui uma formação crítica que implicaria um questionamento, a todo momento, dos seus próprios atos. O estudo da filosofia nos parece ser essencial para essa formação crítica indispensável que todo o indivíduo deve ter para realizar sua essência humana. (id. p.26)

Para Regina Pedroso (2013, p. 151) com relação à importância da sociologia no ensino jurídico assim refere:

A educação reflexiva e humanística é importante para a formação do futuro operador do direito – que a este não recaia o erro de construir uma visão distorcida e estigmatizada da sociedade que o cerca. Aceitar o outro como igual é a principal meta das ciências humanas como disciplinas críticas.

Quanto à psicologia, a contribuição a ser dada na formação do aluno de direito vem pela lição de Gisele Meirelles Fonseca Inacarato (2013, p. 72)

A psicologia pode instrumentalizar o operador do direito com um novo olhar que contemple a complexidade do ser humano, ampliando a visão do humano.

Através da psicologia é possível reconhecer a complexidade da vida mental do ser humano. Seguindo as ideias de Freud, as pessoas não são totalmente racionais, porque possuem motivações inconscientes que podem produzir conflitos , contradições e ambivalências

E, para um profissional que lida com seres humanos é importante compreender um indivíduo como um todo que para a psicanálise comporta ambivalências e contradições

A psicologia pode levar ao desenvolvimento de uma visão de homem mais complexa, que considere tanto sua singularidade quanto sua relação com o social e com a cultura. Um homem crítico, reflexivo e ativo, com grande potencial de transformação. esta abordagem está em consonância com a nova proposta de formação do profissional de direito, superando o ultrapassado ensino do jurista tecnicista, voltado apenas para o mercado de trabalho.

A interdisciplinaridade deve ser prestigiada, não sendo oferecida apenas como uma junção de disciplinas. Os docentes de direito devem ser capazes de, dentro de suas disciplinas promoverem um aprofundamento , inclusive técnico, enquanto são entrelaçados os conceitos e princípios com os demais ramos do direito e as próprias disciplinas propedêuticas. A ética deve permear o curso de direito em todos os níveis.

Ao graduando de direito deve ser requisito obrigatório à sua formação, a participação ativa na promoção da cidadania entre os hipossuficientes, através de projetos especificamente elaborados para a “comunidade alvo” das ações. A prática jurídica não pode ser reduzida aos procedimentos judiciais.

O aluno, quando tem seu aprendizado erguido sob bases sólidas torna-se capacitado a compreender a complexidade das relações humanas, sociais e políticas e atuar de forma efetiva na mudança de modelos políticos, econômicos e socais ultrapassados, construindo  uma plena cidadania – em suas diferentes abordagens.

No tipo de ensino jurídico proposto como adequado, não só a percepção da própria cidadania do aluno é melhor trabalhada quanto à maneira com que, enquanto operador de direito, irá replicar fora dos muros da universidade o aprendizado adquirido[13]. Nesse sentido, a contribuição desse aluno para a comunidade se apresenta muito importante, pois será ele, o veículo de emancipação política  e social daqueles mantidos na ignorância até então.

É necessário que o cidadão conheça e reconheça seus direitos fundamentais e os deveres deles decorrentes, de modo a poder exercitá-los , exigir seu respeito e cumprimento e eleger opções, perante a sociedade e o Estado, entes aos quais compete afirma-los e protegê-los seja diretamente , seja por intermédio de ações construtivas. (CUNHA, 2013, p. 94)


5. Considerações finais.

O ensino jurídico que deve ser buscado é o que possibilita a formação de operadores do direito com efetiva capacidade de reflexão crítica da realidade, instrumentalizados para atuar de forma a promover a cidadania plena em suas diversas acepções, dentro de um contexto social e político mais abrangente.

O momento atual exige que o aluno de direito seja capaz de buscar um país mais ético, justo, igualitário, solidário, sustentável. Deve ser treinado a observar e refletir sobre os acontecimentos sociais, econômicos e políticos que movimentam a vida da sua nação e habilitado a intervir para modificar a realidade quando esta viole a dignidade de qualquer ser humano, independentemente do local e origem. Deve ser sensibilizado a compreender a complexidade humana sem preconceitos, participando de sua comunidade, comprometendo-se com ela no sentido de participar na criação e desenvolvimento de atividades, que contribuam para a ressignificação da cidadania daqueles que ainda se encontram em situação de vulnerabilidade social e política. Num segundo momento deve ser preparado a, num cenário globalizado, atuar de forma a promover o ideal de cidadania universal ainda em processo de construção.    


Referencias bibliográficas

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PINTO, L. C. Educar para uma cidadania Global? Disponível em http://www.inducar.pt/webpage/contents/pt/cad/educarCidadaniaGlobal.pdf. Acesso em : 04 jun 2014


Notas

[1] § 1º - O alistamento eleitoral e o voto são: I - obrigatórios para os maiores de dezoito anos; II - facultativos para: a) os analfabetos; b) os maiores de setenta anos; c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos.

[2] Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular.

[3] Alguns exemplos que podem ser citados são os artigos 58 , caput; 64;  74 § 2º .

[4] Trata-se de comentário do autor inserido na obra “ Comentários à Constituição do Brasil”, com coordenação científica de JJ. Gomes Canotilho, Gilmar Ferreira Mnedes, Ingo Wolfgang Sarlet e Lenio Luiz Streck . Saraiva, 2014 p. 1965

[5] Constitucionalismo pode ser conceituado como um movimento jus-filosófico  que acompanha o conceito de constituição, marcado pela busca da limitação do poder.

[6] Como se verá adiante, não se trata de simples compromisso. Inserido numa ordem internacional, o Brasil vincula-se aos tratados e convenções de direitos humanos dos quais é signatário.

[7] Um novo momento de constitucionalismo vem sendo debatido – o transconstitucionalismo. “ O Transconstitucionalismo decorre do caráter multicêntrico dos sistemas jurídicos mundiais, onde a conversa e o diálogo desenvolvem-se em vários níveis que se integram, formando um bloco compacto de comunicação entre os atores do cenário estatal. Há um superentrelaçamento de níveis múltiplos. No lugar da vaidade, do provincianismo, da rebeldia, da discórdia e da mediocridade, comuns no mundo, abre-se espaço para o entendimento, a cooperação, a conversa , a criatividade. (Boulus, U., 2012 p. 90)

[8] Manifestação de S. Demétrio Valentini, presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes do Brasil , durante o I Forum Social das Migrações Realizado em janeiro de 2005 , em Porto Alegre  apud Farena, 2009 p.9.

[9] Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional;  III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

[10] REGLA, Josep Aguiló. Sobre la Constituición del Estado Constitucional, 2001. P. 150 texto original : “ Um sistema juríico-político “tiene uma constituición” cuando cuenta com la forma constitucional como garantia de dichos ideales; y “vive em constituición” cuando esos ideales son praticados.”

[11]  A formação humanística desde maio de 2009 , nos termos da resolução CNJ nº 75 integra o rol de disciplinas constantes dos editais de concursos públicos destinados ao preenchimento de cargos efetivos da magistratura em todos os ramos do poder Judiciário Nacional.

[12] Podem ser consideradas como disciplinas propedêuticas no ensino de direito a sociologia, a filosofia, história, política, psicologia e  ética.

[13] Neste sentido, existe um movimento forte, principalmente entre as organizações não governamentais, no sentido de se implementar a educação em direitos humanos no ensino fundamental e médio, a ser ministrado , inclusive, por estudantes de direito como forma de atividades obrigatórias  em sua formação, atuando assim como agente replicador das nocões de cidadania em suas mais diversas acepções.. 

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Sobre a autora
Andrea Bechelli

Advogada. Graduada em direito pela PUC/SP. Pós-graduada em direito público pela PUC/MG. Mestranda em direito pela PUC/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BECHELLI, Andrea. O ensino jurídico e o exercício pleno da cidadania. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4132, 24 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30646. Acesso em: 22 dez. 2024.

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