Uma proposta de Direito

A Criminologia crítica e histórica

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Uma proposta ou um início de discussão acerca das relações trasndisciplinares do Direito com a História, especialmente no tocante à criminologia crítica.

A cultura ocidental vive um projeto incompleto de modernidade no sentido frankfurtiano[1]. Tentamos costurar o nosso vazio, as nossas incertezas com agulhas de ouro; tentamos domesticar a nossa melancolia com discursos mais vazios ainda (consumo da dita pós-modernidade); políticas públicas de erradicação da pobreza viram políticas públicas de consumo; políticas criminais de diminuição da criminalidade viram políticas de “gestão diferencial”[2] da criminalidade. Ainda não ousamos questionar por completo as nossas “categorias”, e acabamos por radicalizar os símbolos e culturas em binários opostos concatenados de maneira subordinada: bom, mau; civilizado, bárbaro; normal, anormal; homem, mulher; heterossexual, homossexual[3]; centro, periferia; razão, sensibilidade. O grande maniqueísmo da modernidade europeizada: tratar a sensibilidade como irracionalidade, e não como uma racionalidade diferente. Este tipo de pensamento ou interpretação nada tem de moderno. Deve-se mirar para além dos binários e dos reducionismos. A periferia é sempre julgada pelos olhares pretensiosos (acríticos) do padrão dominante; do mesmo modo, que um “anjinho barroco” nunca é marginalizado em uma sociedade racista. 

Nós aprendemos quais são os comportamentos “normais” desde pequenos; para alguns, deve-se “embranquecer” os comportamentos para se tornar minimamente aceitável como gente, como modelo de gente. A briga histórica da humanidade, a constante contradição entre humanos não é categoricamente encaixada entre proletariado e patrões (Marx). Os tiros vêm de todos os lados: cada pessoa é a alteridade de alguém; nós não formamos um grupo homogêneo, e isso em parte é demonstrado pela correção da Teoria das subculturas criminais, a Teoria das técnicas de neutralização (Sykes e Matza): a aprendizagem das técnicas de neutralização é um fator a ser observado, pois demonstra que o jovem não se torna delinqüente ao negar por completo a doutrina dominante (valores e normas). Os valores de um adolescente das áreas marginais não estão diretamente ou diametralmente opostos ao da sociedade dominante.  

Infelizmente, a nosso ver, muitas pessoas ainda são, ou em parte “Colombos”; ou em parte “Corteses”[4]. Assim como algumas pessoas da atualidade, Cristovão Colombo não questiona o seu pensamento, apenas o adapta quando ocasionalmente algum novo pensamento lhe apetece. A estratégia finalista no sistema de interpretação de Cristovão Colombo é exemplar: a sua convicção sempre precede a experiência; a experiência só serve para ratificar o discurso (de natureza tendenciosa). Um discurso composto de leituras criadas constantemente por Colombo e sua estirpe, os únicos seres culturais. Por outro lado, outras pessoas são semelhantes a Cortés, pois este é tido, simbolicamente, como o representante da tradição ocidental binária na visão de Todorov e do seu pragmatismo cultural. Cortés admite o outro e compreende o outro, mas não cria empatia, e, sim, subordinação. E em uma sociedade dita moderna que se pressupõe igualitária, não deverá haver subjugação (Cortés), nem negação do outro (Colombo).

Neste texto, então, estamos pondo em risco ou em debate as nossas categorias jusfilosóficas, sociológicas, históricas e jurídicas na procura de um trabalho eminentemente crítico: não se deve ficar de forma insular nem na História nem no Direito, pois isso artificializa, naturaliza a dominação de um discurso, e faz com que se caia – muitas vezes sem se dar conta – em um universalismo[5], em um determinismo ou reducionismo economicista (Karl Marx) que prega uma hegemonia, um dogma irreverentemente acrítico e anistórico, como é próprio de sua natureza dogmática; o que não leva em consideração uma constatação crítica, mas, sim, uma fundamentação assentada em um argumento de autoridade (o que faz do juiz um neurótico no sentido freudiano) ou em um petitio principii (uma retórica falaciosa), ou seja, um círculo vicioso em que o primeiro argumento se acomoda no último e o último no primeiro, não se questionando a validade do primeiro (comum aos postulados fundamentais das escolas penais, clássica e positiva, e ao formalismo do sistema clássico Liszt-Beling); uma apoteose cíclica que no fundo não passa de uma glorificação jusnaturalista sem lógica real e prática, ou um misticismo racionalista, uma bruxaria legitimada.

Neste sentido, essa apoteose pode ser comparada à RELIGIÃO ou à idéia de Deus[6], como criações conceituais humanas, signos, produtos da semiologia e da moralidade, pois ambos satisfazem a necessidade humana por ordem; ambos surgem da necessidade humana de um discurso de ordem; uma concepção ou perspectiva que cada um toma para si com o fim medir a sua dor mortal que é a dor da imperfeição, da desordem, do medo. Assim, do mesmo modo que nas técnicas de neutralização, a neutralização psíquica é usada para aplacar a moralidade hegemônica: quanto maior a sua dor (necessidade de conformidade); maior a sua fé[7](força imunizadora) – entendida como fé inconsciente, irreflexiva e acrítica (fé como crença, e crença como ideologia), pois acreditamos na esperança da humanidade (já que nem toda crença é ideologia, sendo o inverso correto[8]). E isso condiz com o Direito no sentido de que este também é uma prática discursiva (uma construção social que só pode ser entendida dentro do seu contexto), um discurso jurídico e um discurso que preza pela ordem da sociedade; e por isso deve ser analisado dentro desta perspectiva crítica (relativista e pluralista) para não se reduzir a pleonexia (um discurso que atua à custa dos outros) ou reducionismos desprovidos de sustentação lógica em que a única defesa será kelseniana: “se está na lei, logo é legítimo”; ou “só a lei nos liberta”. Uma confusão sem igual, mas muito comum de legalidade com legitimidade; a legalidade não proporciona legitimidade, sendo apenas uma fragmentação de legitimidade[9]. Outro exemplo de confusão mais comum ainda, confundir controle penal com controle da criminalidade, reduzindo as políticas preventivas ou sociais ao círculo estrito do sistema penal. 

Pode-se dizer que nada é imutável, pois tudo é produto do ser humano em seu meio, um meio culturalmente[10] e historicamente cheio de rupturas e constâncias. Por isso, toda concepção que se reduz em si mesmo, toda concepção insular do Direito faz nascer um filho incestuoso (o problema da dogmática pura que não existe). A própria dogmática jurídica se contradiz quando diz que nunca ultrapassou os seus limites; tem a ilusão que está ideologicamente circunscrita em um espaço vital – Lebesraum[11] – reservado aos juristas, somente a eles, os puros-sangues. Um pensamento jurídico que começa e termina em si mesmo –, um pressuposto questionado desde o conceito neoclássico de delito com o modelo neokantista. Complementando, Nilo Batista diz algumas palavras a esse respeito:

Dentro do próprio âmbito da dogmática jurídico-penal muitos avanços se deviam a partir de contribuições externas, providas ora da filosofia (como as transformações que o conceito de ação final imprimiu em toda teoria do delito), ora da sociologia (como as recentes e polêmicas contribuições do funcionalismo sistêmico à imputação objetiva), ora da psicologia (por exemplo, nas áreas da imputabilidade e do erro), etc.[12]

Lembrando que a ignorância não é neutra na maioria das vezes; a ignorância não representa a falta de conhecimento, mas um efeito de conhecimento, um “resíduo do conhecimento” (Deborah Britzman); deste modo, a ignorância ou restrição em relação à Sociologia, Filosofia, História e Psicologia não é uma ignorância que se reduz a estas ciências, mas uma ignorância do próprio Direito e da dogmática penal, no sentido de que essas ciências sociais compõem o Direito e a sua dogmática[13]

Este aviso, assim como o predito aviso do Nilo Batista no preâmbulo do clássico Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal do Alessandro Baratta da editora Revan, é preciso, necessário e salutar; já que ainda se escuta muito o choro das viúvas do positivismo. Elas ainda choram, desacreditadas, na morte dos seus maridos; apoiando o seu lamento nas pilastras podres, epistemologicamente, das faculdades jurídicas brasileiras. Não vêem que a racionalidade humana vem, querendo ou não, acompanhada da sensibilidade humana, da subjetividade, que deve ser aguçada, principalmente na figura do julgador[14]; que o ser humano é um amálgama de contradições muitas vezes intraduzíveis. Inclusive, muitos querem negar a alinearidade do homem, Dostoievski soube disso mais do que ninguém: na construção de seus personagens predomina a alinearidade, as contradições ou ambigüidades humanas, o homem bruto muitas vezes rompe em lágrimas; o avarento outras vezes é generoso.  Em oposição, ao encaixar sujeitos, o positivismo degrada a complexa natureza humana, achata a inteligência, desumaniza. 

Em linhas bem gerais ainda, esta é a proposta deste trabalho; esta é a proposta de uma nova história, cultural e semiótica; esta é a proposta foucaultiana (perspectiva pós-estruturalista); e esta é a proposta da Criminologia da Reação Social, uma Criminologia que se compreende observando os fins “reais” do Estado e da sociedade, construídos historicamente: boca abismada de fundamentações contextualizadas e não só na legislação pura; sóbria de categorias e sujeitos encaixados (positivismo). Diríamos eminentemente crítica! Esta teoria reconhece que há uma imposição, uma intervenção biopolítica: o poder sobre a vida; uma ideologia que se esconde no cientificismo; uma problemática na lei, nas instituições e no sistema penal; por isso, às vezes, é chamada também de politología del delito (Lola Aniyar de Castro).

REFERÊNCIAS

ABRAMOWICZ, Anete; ARROYO, Miguel Gonzalez. A Reconfiguração da Escola: entre a negação e afirmação de direitos. São Paulo: Papirus, 2009.

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.                          

           

BARROS, José D'assunção. Teoria da História: III. Os paradigmas revolucionários. 2. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2011.                                                                                     

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

BOCHENSKI, Innocentius Marie. Diretrizes do pensamento filosófico6. ed. São Paulo: Epu, 1977.

CARPENTIERI, José Rafael. História crítica do direito penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2012.

CARVALHO, Salo de. Três hipóteses e uma provocação sobre homofobia e ciências criminais: queer(ing) criminology. Disponível em: . Acesso em: 12 mar. 2013, p. 3.

LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito? São Paulo: Editora Brasiliense, 1982.

TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes


[1]    Ou melhor, como diria Dussel, não compreendemos as outras modernidades (“transmodernidade”).

[2]    Expressão de Foucault.

[3]     A teoria Queer é uma teoria feminista e pós-estruturalista que trabalha na desmistificação dos binários de orientação sexual, fazendo uso da homofobia, nestes termos: “a homofobia se insere como um dispositivo prático (político) e teórico (científico) da defesa da heteronormatividade, instaurando hierarquizações e desigualdades radicais que se concretizam em atos e em discursos de violência (simbólica, institucional e interpessoal)” (CARVALHO, Salo de. Três hipóteses e uma provocação sobre homofobia e ciências criminais: queer(ing) criminology. Disponível em: . Acesso em: 12 mar. 2013, p. 3). Além disso, o fracasso escolar, como dispositivo do poder, também faz parte do estudo da corrente didática pós-moderna e pós-estruturalista; logo, também é um exemplo da tensão biopolítica, do poder descontrolável sobre a vida; fulminando a potencialidade da vida, que Baratta chama de “necessidades reais”; necessidades tidas como a mais nobre base de resistência ao poder e à força ad eternum dos discursos (ABRAMOWICZ, Anete; ARROYO, Miguel Gonzalez. A Reconfiguração da Escola: entre a negação e afirmação de direitos. São Paulo: Papirus, 2009, p. 127).

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[4] Personagens históricos, Cristovão Colombo e Hernán Cortés, do “romance” de Tzvetan Todorov, A Conquista da América. Sendo “Romance” aqui não quer dizer um gênero literário, mas, sim, uma construção semiótica da história, o estudo das estruturas mentais da Modernidade; a construção semiótica de Todorov da conquista do “outro”. Um desapego da verdade inalcançável, uma história tão verdadeira quanto possível (e não ontológica), definição de Todorov do que seria o seu gênero, “a história exemplar” (TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 2).

[5]     Na perspectiva de Alessandro Baratta, o “universalismo” é um mal constante nas teorias criminológicas liberais burguesas. No livro Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro, Nilo Batista também enfatiza nas primeiras páginas desta obra o risco em acreditar no “universalismo a-histórico” (Miaille), quer dizer, no risco em se naturalizar os conceitos, e, neste caso, as normas penais. O direito penal é construído dentro de uma sociedade historicamente formada.

[6]     Na obra O Pecado e o medo de Jean Delumeau. A “pedagogia do medo” do ocidente que vai ser construída nessa obra é balizada por uma construção discursiva de salvação, pensada através do medo. Você começa a regrar a sua vida, os seus atos para alcançar a salvação num primeiro momento; em um segundo momento, relevante para a atualidade, o poder RELIGIOSO fica mais atrelado aos fieis, ao espaço privado; portanto, mesmo o Brasil sendo um Estado laico, é imprescindível a observação de que o poder religioso, hoje, se contenta com o espaço privado, já que sabe que assim pelo menos continua com a influência do seu discurso. Um discurso que não pode passar despercebido.

[7] O filósofo Innocentius Marie Bochenski entra nessa discussão com estas palavras: “O filósofo considera Deus como a explicação racional do mundo; Deus lhe é necessário, não para adorá-lo, mas para pôr em segurança seu racionalismo; a aceitação de Deus pelo filósofo nada mais é que a confissão aberta da explicação do mundo. E, se é permitido falar aqui em fé, a única fé que se pressupõe é a fé na razão. Não se pode falar de um amor a Deus. Quando Espinosa fala do amor racional a Deus, só entende com isso o conhecimento” (BOCHENSKI, Innocentius Marie. Diretrizes do pensamento filosófico6. ed. São Paulo: Epu, 1977, p. 118-119).

[8] LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito? São Paulo: Editora Brasiliense, 1982, p. 9.                         

[9] BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 507.

[10] Neste trabalho adotamos “cultura” como uma teia de significados produzidos intersubjetivamente pelo homem, um amontoado ordenado de signos e símbolos.

[11] Num certo momento, o penalista Nélson Hungria usou as expressões Lebensraum (“espaço vital” em alemão) e “doutrina Monroe” para validar a indubitável separação entre os juristas e os saberes “profanos”, ou melhor, a separação entre o exclusivo universo dogmático e a intromissão do cientista social (Batista, Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 28).

[12] Baratta, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 02.

[13] “A própria pretensão de cisão entre direito, filosofia e política reflete determinada opção do jurista e seu posicionamento diante das relações de poder”(CARPENTIERI, José Rafael. História crítica do direito penal.Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2012, p. 7-8).

[14] Uma decisão técnica nem sempre é justa; uma decisão correta tecnicamente não pressupõe necessariamente uma decisão justa. Paulo Queiroz argumenta o problema do puro tecnicismo jurídico desacompanhado de sensibilidade(QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: parte geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 18).

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Este artigo faz parte de um trabalho maior que propõe discutir Direito e História através da Criminologia Crítica.

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