4. A INCONSTITUCIONALIDADE DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO
Um dos debates acadêmicos que gerou calorosas discussões seja no âmbito doutrinário, seja no âmbito jurisprudencial, foi o que diz respeito à constitucionalidade dos delitos de perigo abstrato.
Os crimes de perigo abstrato pressupõem a criação do perigo pelo sujeito da conduta prevista no tipo penal. Isto significa que o sujeito é punido pela simples desobediência da lei, sem que se comprove a existência de qualquer lesão ou ameaça de lesão ao bem juridicamente tutelado.
Como exemplos de crimes de perigo abstrato podemos citar: o tráfico de drogas, o porte de armas, a embriaguez ao volante e, outros inúmeros tipos penais que somente indicam a conduta, sem mencionar o resultado.
Sobre esse assunto, ponderam André Estefam e Victor Eduardo Rios Gonçalves:
“Os crimes de perigo abstrato ou presumido são aqueles cujo tipo não prevê o perigo como elementar, razão por que sua demonstração efetiva é desnecessária. A conduta típica é perigosa por sua própria natureza. O legislador, nesses casos, descreve uma conduta potencialmente danosa e de reconhecida perniciosidade social, bastando, portanto, a comprovação de que o agente a praticou para que o delito encontre-se consumado. Não se exige a prova do perigo real, pois este é presumido pelo legislador” [23].
Constata-se que nesse tipo penal a presunção legal de perigo permite-nos questionar a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato. O presente trabalho pretende demonstrar que essa presunção viola diversos princípios constitucionais- penais.
Primeiramente deve-se considerar que há posicionamento diverso do aqui defendido, no sentido de entender como constitucional os crimes de perigo abstrato, entre esses doutrinadores podemos apontar: Fernando Capez, André Estefam, Victor Eduardo Rios Gonçalves, Guilherme de Souza Nucci; dentre outros; além dos Tribunais Superiores, como o Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça.
Dessa forma, para melhor elucidarmos esse entendimento destacamos:
“Entendemos que subsiste a possibilidade de tipificação dos crimes de perigo abstrato em nosso ordenamento legal, como legítima estratégia de defesa do bem jurídico contra agressões em seu estágio ainda embrionário, reprimindo-se a conduta, antes que ela venha a produzir um perigo concreto ou um dano efetivo. Trata-se de cautela reveladora de zelo do Estado em proteger adequadamente certos interesses. Eventuais excessos podem, no entanto, ser corrigidos pela aplicação do princípio da proporcionalidade”[24].
“Muito embora seja a questão cercada de polêmica, acreditamos serem válidos os crimes de perigo abstrato ou presumido. Isto porque o legislador age conforme a Constituição quando seleciona condutas socialmente perniciosas e potencialmente lesivas, incriminando-as em seus estágios iniciais. Cuida-se de atividade legislativa, decorrente da soberania estatal, que não ofende a dignidade da pessoa humana ou a presunção de não culpabilidade; pelo contrário, trata-se de agir de modo preventivo, antes que a lesão ao bem esteja consumada. Com efeito, a maneira mais eficaz de prevenir o roubo ou o homicídio não é prender o ladrão ou o assassino, algo reconhecidamente necessário, mas evitar que ele saque a arma ou a dispare” [25].
Em suma, essa corrente defende que os crimes de perigo abstrato são constitucionais, haja vista que esse tipo penal não infringe os princípios constitucionais, mas pretende atuar de forma preventiva, com o fim de evitar que o bem jurídico sofra determinada lesão.
Seguindo a mesma linha, o Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 96.072 – RJ apreciando a infração do porte de arma de fogo desmuniciada, descrito no art. 14 da Lei n. 10.826/2003, entendeu tratar-se de crime de perigo abstrato, conforme se verifica abaixo:
“PENAL. HABEAS CORPUS. PORTE DE ARMA DE FOGO DESMUNICIADA. INTELIGÊNCIA DO ART. 14 da Lei 10.826/2003. TIPICIDADE RECONHECIDA. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. ORDEM DENEGADA. I. A objetividade jurídica da norma penal transcende a mera proteção da incolumidade pessoal, para alcançar também a tutela da liberdade individual e do corpo social como um todo, asseguradas ambas pelo incremento dos níveis de segurança coletiva que a lei propicia. II. Mostra-se irrelevante, no caso, cogitar-se da eficácia da arma para a configuração do tipo penal em comento, isto é, se ela está ou não municiada ou se a munição está ou não ao alcance das mãos, porque a hipótese é de crime de perigo abstrato, para cuja caracterização não importa o resultado concreto da ação. III - Habeas corpus denegado” [26].
Vejamos também:
“HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DESMUNICIADA. (A) TIPICIDADE DA CONDUTA. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS PENAIS. MANDATOS CONSTITUCIONAIS DE CRIMINALIZAÇÃO E MODELO EXIGENTE DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS EM MATÉRIA PENAL. CRIMES DE PERIGO ABSTRATO EM FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. LEGITIMIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE ARMA DESMUNICIADA. ORDEM DENEGADA. 1. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS PENAIS. 1.1. Mandatos Constitucionais de Criminalização: A Constituição de 1988 contém um significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas (CF, art. 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV; art. 7º, X; art. 227, § 4º). Em todas essas normas é possível identificar um mandato de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote). Os mandatos constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador, para o seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente. 1.2. Modelo exigente de controle de constitucionalidade das leis em matéria penal, baseado em níveis de intensidade: Podem ser distinguidos 3 (três) níveis ou graus de intensidade do controle de constitucionalidade de leis penais, consoante as diretrizes elaboradas pela doutrina e jurisprudência constitucional alemã: a) controle de evidência (Evidenzkontrolle); b) controle de sustentabilidade ou justificabilidade (Vertretbarkeitskontrolle); c) controle material de intensidade (intensivierten inhaltlichen Kontrolle). O Tribunal deve sempre levar em conta que a Constituição confere ao legislador amplas margens de ação para eleger os bens jurídicos penais e avaliar as medidas adequadas e necessárias para a efetiva proteção desses bens. Porém, uma vez que se ateste que as medidas legislativas adotadas transbordam os limites impostos pela Constituição – o que poderá ser verificado com base no princípio da proporcionalidade como proibição de excesso (Übermassverbot) e como proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) –, deverá o Tribunal exercer um rígido controle sobre a atividade legislativa, declarando a inconstitucionalidade de leis penais transgressoras de princípios constitucionais. 2. CRIMES DE PERIGO ABSTRATO. PORTE DE ARMA. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALDIADE. A Lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento) tipifica o porte de arma como crime de perigo abstrato. De acordo com a lei, constituem crimes as meras condutas de possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo. Nessa espécie de delito, o legislador penal não toma como pressuposto da criminalização a lesão ou o perigo de lesão concreta a determinado bem jurídico. Baseado em dados empíricos, o legislador seleciona grupos ou classes de ações que geralmente levam consigo o indesejado perigo ao bem jurídico. A criação de crimes de perigo abstrato não representa, por si só, comportamento inconstitucional por parte do legislador penal. A tipificação de condutas que geram perigo em abstrato, muitas vezes, acaba sendo a melhor alternativa ou a medida mais eficaz para a proteção de bens jurídico-penais supraindividuais ou de caráter coletivo, como, por exemplo, o meio ambiente, a saúde etc. Portanto, pode o legislador, dentro de suas amplas margens de avaliação e de decisão, definir quais as medidas mais adequadas e necessárias para a efetiva proteção de determinado bem jurídico, o que lhe permite escolher espécies de tipificação próprias de um direito penal preventivo. Apenas a atividade legislativa que, nessa hipótese, transborde os limites da proporcionalidade, poderá ser tachada de inconstitucional. 3. LEGITIMIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE ARMA. Há, no contexto empírico legitimador da veiculação da norma, aparente lesividade da conduta, porquanto se tutela a segurança pública (art. 6º e 144, CF) e indiretamente a vida, a liberdade, a integridade física e psíquica do indivíduo etc. Há inequívoco interesse público e social na proscrição da conduta. É que a arma de fogo, diferentemente de outros objetos e artefatos (faca, vidro etc.) tem, inerente à sua natureza, a característica da lesividade. A danosidade é intrínseca ao objeto. A questão, portanto, de possíveis injustiças pontuais, de absoluta ausência de significado lesivo deve ser aferida concretamente e não em linha diretiva de ilegitimidade normativa. 4. ORDEM DENEGADA”[27].
Depreende-se, assim, que para o Supremo Tribunal Federal a criação dos delitos de perigo abstrato não constitui uma atuação inconstitucional por parte do legislador, mas tão-somente acaba por ser a melhor solução para a proteção dos bens jurídicos a serem tutelados penalmente.
Damásio de Jesus tece uma crítica referente à decisão exarada no HC 96.072/RJ pelo Supremo Tribunal Federal entendendo que a mesma fere os princípios da legalidade, da culpabilidade, da presunção de inocência e da ofensividade, portanto, não está de acordo com o Direito Penal moderno.
Doutro lado, existe uma corrente que defende que os delitos de perigo abstrato são inconstitucionais, sendo essa a posição aqui adotada. Entre esses doutrinadores temos: Rogério Greco, Luiz Flávio Gomes, Cezar Roberto Bitencourt, Damásio de Jesus, entre outros.
Luiz Flávio Gomes atribui inconstitucionalidade a esse tipo penal, em razão de não poder delimitar direitos fundamentais básicos, como a liberdade ou o patrimônio, sem que seja para proteger concretas ofensas a outros direitos fundamentais[28].
Conforme já exposto alhures, esse tipo penal é presumido pelo legislador, e segundo Damásio de Jesus
“não se permitindo prova contrária. Esse delito viola o princípio da legalidade, pois faz depender o crime de lei que o define. E delito é, em princípio, um fato típico, que tem na conduta seu primeiro requisito. De modo que o sujeito responde pelo fato cometido, não podendo o legislador estender, mediante presunção, a responsabilidade à parte do tipo não concretizada. Significa que o autor não realiza o tipo por inteiro, uma vez que parte dele é presumida pelo legislador”[29].
Isso significa que tais crimes ferem o princípio da legalidade, haja vista que os seus tipos penais não realizam a devida descrição da conduta a ser punida. A conduta é prevista de maneira incompleta, por isso, não se exige um resultado normativo, presumindo-se a parte do tipo não concretizada.
Demais disso, cumpre salientar que esses tipos penais violam também o princípio da culpabilidade, vez que o nosso Código Penal consagrou a culpabilidade como fundamento da responsabilidade penal da pessoa, postulado que é incompatível com essas presunções legais.
Por consequência, violam também o princípio da presunção de inocência dado que não se harmonizam com a presunção legal de perigo. O acusado deve ser considerado presumidamente inocente até que haja sentença condenatória penal transitada em julgado, que tenham por base provas produzidas em respeito ao princípio do devido processo legal que é um direito fundamental presente em um sistema garantista.
Outrossim, se houver dúvida no que se refere a existência do fato ou sua autoria, decidir-se-á pela inocência (in dubio pro reo), pois uma norma infraconstitucional não pode desprezar tal disposição, presumindo o acusado culpado, sem que se comprove efetivamente que o mesmo gerou um perigo ao bem jurídico protegido.
Com efeito, se observa muito claramente que nos crimes de perigo presumido não se exige o resultado para a consumação do fato tido como delituoso ao Direito Penal. Deste modo, o princípio da ofensividade é violado sempre que se incrimina uma conduta que não tenha causado uma lesão ao bem juridicamente tutelado, ou, ao menos, exposto esse bem jurídico a determinado perigo de lesão.
Da mesma forma, Cezar Roberto Bitencourt e Rogério Greco se manifestam:
“Para que se tipifique algum crime, em sentido material, é indispensável que haja, pelo menos, um perigo concreto, real e efetivo de dano a um bem jurídico penalmente protegido. Somente se justifica a intervenção estatal em termos de repressão penal se houver efetivo e concreto ataque a um interesse socialmente relevante, que represente, no mínimo, perigo concreto ao bem jurídico tutelado. Por essa razão, são inconstitucionais todos os chamados crimes de perigo abstrato, pois, no âmbito do Direito Penal de um Estado Democrático de Direito, somente se admite a existência de infração penal quando há efetivo, real e concreto perigo de lesão a um bem jurídico determinado. Em outros termos, o legislador deve abster-se de tipificar como crime ações incapazes de lesar ou, no mínimo, colocar em perigo concreto o bem jurídico protegido pela norma penal. Sem afetar o bem jurídico, no mínimo colocando-o em risco efetivo, não há infração penal”[30].
“Atualmente, os crimes de perigo abstrato têm sido combatidos pela doutrina, uma vez que não se verifica, no caso concreto, a potencialidade de dano existente no comportamento do agente, o que seria ofensivo ao princípio da lesividade”[31].
E, por fim, note as considerações a seguir:
“Atualmente, discute-se a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato: JAKOBS afirmou a ilegitimidade da incriminação em áreas adjacentes à lesão do bem jurídico; GRAUL rejeita a presunção de perigo abstrato; SCRODER propôs admitir a prova da ausência do perigo; CRAMER pretendeu redefinir o perigo abstrato como probabilidade de perigo concreto”[32].
Por sua vez, o artigo 14 de Lei n.10.826/2003 versa sobre o porte ilegal de arma de fogo de uso permitido. As jurisprudências dos Tribunais Superiores o tratam como crime de perigo abstrato, conforme já demonstrado acima.
Entretanto, deve-se perceber que para que haja a caracterização do delito de perigo presumido precisa-se sempre da comprovação da conduta praticada pelo sujeito que tenha provocado algum perigo ou ameaça de perigo ao bem juridicamente tutelado.
Assim sendo, poderíamos concluir que o sujeito somente poderia sofrer punição no caso de porte ilegal de arma de fogo se esta se encontrasse municiada ou se tivesse com munição de fácil alcance. Noutro norte, caso não fosse possível a lesão a bens jurídicos alheios, o fato seria considerado como insignificante para o Direito Penal.
Nesse caso, observe a jurisprudência abaixo:
“Arma de fogo. Porte ilegal. Arma desmuniciada, sem disponibilidade imediata de munição. Fato atípico. Falta de ofensividade. Atipicidade reconhecida. Absolvição. HC reconhecido para esse fim”[33].
O Estado Democrático de Direito não admite que as garantias e os direitos fundamentais sejam reduzidos em razão da utilização do Direito Penal como um símbolo, afastando seu papel fundamental, qual seja a tutela de bens jurídicos de maior relevância.
Por ultimo, é inegável o valor dos bens protegidos pelos tipos de perigo abstrato, contudo, o Direito Penal não é o meio mais adequado para protegê-los, devendo assim outros ramos do Direito tutelá-los.