Em vista do reiterado e silencioso procedimento de Autoridades Policiais remeterem inquéritos policiais ou qualquer outra peça de natureza acautelatória (representação para prisão preventiva, prisão temporária, busca e apreensão domiciliar etc.) diretamente ao Poder Judiciário e diante do estado quase que letárgico do Ministério Público e do Poder Judiciário acerca da questão, notadamente em face dos novos ditames estabelecidos pela Constituição Federal de 1988 e após reflexão acerca do tema e análise de breves - mas incisivos - apontamentos literários acerca da questão, elaborou-se o presente escrito.
Porquanto pretendesse o legislador de 1941 estabelecer entre nós o modelo acusatório de Processo penal, assim explicitado no item V da Exposição de Motivos do Dec.-lei n.º 3.689/41 ao argumento de que "o projeto atende ao princípio ne procedat judex ex officio" e que "reclama a completa separação entre juiz e o órgão da acusação", na verdade a prática legislativa não tomou tal direcionamento. De efeito, já no art. 26 do Código de Processo Penal restou consignado que a ação penal para as contravenções penais tivesse início com o auto de prisão em flagrante ou por meio de portaria expedida pela autoridade judiciária ou policial, cujo procedimento encontra-se estabelecido nos arts. 531 a 538 do mesmo Código. Também para certas infrações o procedimento ganhava quase um contorno inquisitivo conforme o estabelecido, por exemplo, na Lei n.º 4.611/65 (para certos crimes culposos) e na Lei n.º 4.771/65 (Código Florestal).
Consoante a mais autorizada e atualizada literatura jurídica nacional a Constituição Federal de 1988, em vista do estabelecido no inciso I do art. 129 conferindo privatividade ao Ministério Público para o exercício da ação penal pública, tem primado pela clara adoção do sistema processual penal acusatório. [1] Em face desse princípio maior, resta revogada qualquer disposição infraconstitucional anterior que se encontre em afronta à titularidade conferida ao Ministério Público para o exercício da ação penal pública. A partir de então a Autoridade Judiciária deverá manter-se isenta e imparcial à persecução penal e, ainda, a Autoridade Policial não mais detém qualquer forma de postulação judicial.
Mas não é só. A adoção do sistema acusatório não ganha repercussão apenas no exercício da ação penal pública pelo oferecimento da denúncia. Como reflexo instrumental, significa que a partir da nova ordem constitucional somente o Ministério Público possui o "jus postulandi", vale dizer, somente ele, como titular privativo da ação penal pública, possui o poder postulatório (como pressuposto processual da capacidade de acionar/provocar) para todas as demais ações e medidas assecuratórias/cautelares de provocação do Poder Judiciário para o escopo final de preparar/instaurar/assegurar/prevenir a aplicação da lei penal ao caso concreto.
O Advogado (Lei n.º 8.906/94) e o Defensor Público (Lei Complementar n.º 80/94) - que exercem função essencial à justiça - detêm o "jus postulandi" para orientação jurídica e defesa do interesse da pessoa que tenha incorrido na prática de infração penal, considerando o tema em questão. Ao Ministério Público, e tão-somente a ele, caberá a adoção de qualquer medida de provocação judicial, frise-se, seja de ordem assecuratória ou não, para viabilizar o exercício do direito penal material. Sob o prisma processual o Ministério Público difere do Advogado e do Defensor Público porque, quando parte, (1) atua no exercício da titularidade da ação penal pública como Órgão estatal legitimado a pleitear a aplicação da lei penal ao caso concreto e, ainda, é o Ministério Público sujeito ativo material porque atua como sujeito na Lide (Estado/Coletividade ofendida); (2) como sujeito ativo processual porque sujeito da relação processual no exercício do "jus postulandi".
De outra feita, a Constituição Federal de 1988 conferiu à Polícia Civil a função de polícia "judiciária" e a apuração de infrações penais, primando pelo caráter eminentemente repressivo. Assim estabelecendo a Carta Federal, fica clara a adoção de modelo similar e compatível ao sistema acusatório já existente e aperfeiçoado em diversos países europeus como Alemanha, Itália, Portugal, dentre outros, onde a polícia "judiciária" procede à adoção de investigações sob a coordenação do titular da ação penal, qual seja, ao Ministério Público, eis que a este devem ser dirigidas, diretamente, as provas para a formação da opinio delicti e qualquer informação de caráter urgente para adoção de medida judicial assecuratória cabível à espécie. [2] Em outros dizeres, a polícia civil deve manter ligação direta com o Ministério Público, e sob a coordenação dele, afastando-se de plano qualquer possibilidade de a Autoridade Policial acionar a Autoridade Judiciária fornecendo informações de investigações ou dados relacionados à instrução do processo penal na medida que não detém o "jus postulandi" para tanto.
Nessa direção, cabe considerar que várias disposições do Código de Processo Penal brasileiro (de 1941) encontram-se em franca desarmonia com o novo sistema acusatório adotado pela nova ordem constitucional e, como tal, foram revogadas pelo art. 129, incisos I, VII, VIII e IX da Constituição Federal de 1988.
A título exemplificativo vale ressaltar que não foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988 vários dispositivos do Código de Processo Penal, tais como: §§ 1.º e 3.º do art. 10; incisos I e IV do art. 13; parágrafo único do art. 21; art. 23; art. 26; § 1.º do art. 149; art. 241 e art. 311; quando regram que peças decorrentes de investigações devam ser enviadas ao juiz competente e quando, de qualquer modo, tenham conotação de impulsionar o Órgão Judiciário, visto que (1) as provas decorrentes da investigação servem ao Ministério Público e não ao "juízo competente", imparcial que este deve ser, e (2) não mais cabe à autoridade policial, por conta do sistema acusatório e da privatividade da ação penal pública do Ministério Público, o exercício do "jus postulandi".
Esses são alguns exemplos de que o modelo acusatório instaurado pela Constituição Federal de 1988 (art. 129, inciso I) de modo claro atribuiu apenas a um órgão estatal a titularidade do "jus postulandi": ao Ministério Público.
A presente questão já foi objeto de manifestação literária por WALLACE PAIVA MARTINS JÚNIOR quando, já em 1991, expôs lúcida orientação nos seguintes termos pertinentes:
"......
A outra questão que se examina é a respeitante à representação da autoridade policial com vistas à decretação judicial da prisão preventiva, da prisão temporária e da busca e apreensão domiciliar.
Ora, o Delegado de Polícia não tem, pela natureza de suas relevantes funções típicas, o jus postulandi, e não poderia, logicamente, ter a possibilidade de oferecer esses pedidos em juízo, que interessam, sobremaneira, ao titular da ação penal.
Logo, esses pedidos devem ser deduzidos pelo dominus litis da ação penal, pública, o Promotor de Justiça, pois constituem apenas procedimentos cautelares do direito processual penal no interesse da futura instrução criminal em juízo.
Se o Promotor de Justiça tem o poder de requisitar inquéritos e diligências, conceder prazos e de exclusivamente propor a ação penal pública, também tem o poder exclusivo sobre as cautelares medidas acessórias da ação penal pública que lhe é exclusiva.
Preconiza-se a correção deste anacrônico distúrbio. O Delegado de Polícia deve submeter essas pretensões ao Promotor de Justiça, titular da ação penal pública e detentor do jus postulandi conseqüente em nome do povo, para que este, ao seu convencimento, provoque o Juízo.
Saliente-se que somente as partes têm o direito de provocar o Juiz de Direito.
A permanência dessa estrutura, atualmente, nulifica o direito exclusivo da ação penal pública acometido ao Ministério Público e franqueia ao órgão policial uma prerrogativa que ontologicamente não lhe pertence, usurpando do controle do Ministério Público a atividade policial e a condução da ação penal pública acessória ou cautelar, nulificando o due process of law.
Não se pode conceber que a parte pública autônoma não exerça todos os atos inerentes à sua condição, delegando àquele cuja tarefa é a investigação dos crime e contravenções o jus postulandi que não é amoldado a suas funções.". [3]
De outro modo, a prática judiciária, por vezes viciosa e irrefletida, tem conduzido a situações inadmissíveis quando, por exemplo, a autoridade policial, mesmo ilegitimamente, como já adiantado, "representa" pela prisão preventiva (ou outra medida cautelar) e recebe "parecer" contrário do Ministério Público (titular da ação penal pública) e mesmo assim a Autoridade Judiciária decide conforme a "pretensão" da polícia. A resolução da hipótese se mostra, assim, no mínimo teratológica, visto que reconhece a pretensão de órgão não legitimado a impulsionar judicialmente; afronta a disposição constitucional que confere ao Ministério Público a titularidade privativa do "jus postulandi"; ao princípio do devido processo legal, visto que da iniciativa de parte não legítima pode haver ofensa a um bem jurídico – e.g., liberdade – da pessoa; bem como da incumbência maior conferida ao Ministério Público para a defesa da "ordem jurídica" e dos "interesses sociais e individuais indisponíveis" ressaltados no art. 127 da Constituição Federal.
Também nesse particular, tratando de responder à formulação da hipótese de o Ministério Público manifestar-se desfavoravelmente à medida cautelar "solicitada pela Polícia Civil" ao Juiz de Direito e vindo este deferir o pleito, WALLACE JÚNIOR, com precisa colocação, assim expõe:
"..........................
A resposta, é certo, dentro da perspectiva constitucional dada ao Ministério Público, é negativa, pois se estará ordenando algo que o titular exclusivo da ação penal pública não reputa necessário para a sociedade por ele representada em juízo, em flagrante prejuízo de sua liberdade de convicção na opinio delict ou na análise do meritum causae. De outro lado, o exercício dessa parcela da soberania do Estado que lhe foi atribuído estará sendo usado por quem não a detém legitimamente, com prejuízos óbvios aos princípios da imparcialidade e do ne procedat judex ex officio.". [4]
Não bastasse a invocação de dispositivos revogados pela Constituição Federal de 1988, mesmo após a nova ordem jurídica tem-se editado lei que se mostra de duvidosa inconstitucionalidade com a privatividade do "jus postulandi" do Ministério Público e do sistema acusatório constitucionalmente adotado, como, por exemplo, a disposição do art. 2.º da Lei n.º 7.960/89 quando confere o exercício de "representação" da autoridade policial, ao Juízo criminal competente, para o decreto de prisão temporária. Não diferente é o disposto no art. 3.º da Lei n.º 9.296/96 que confere à Autoridade Policial a possibilidade de, literalmente, formular "requerimento" judicial para que se proceda à escuta telefônica. Na mesma direção é o disposto na Lei n.º 10.409/2002 (de exígua precisão técnico-jurídica), por seus parágrafo único do art. 29 e art. 34, quando autoriza a Autoridade Policial e fazer pedido e requerimento diretamente ao juízo.
Poder-se-ia indagar: mas se assim não fosse, como se deveria proceder? Responde-se: qualquer ato de postulação judicial que vise assegurar/prevenir/exercer ação penal pública cabe tão-somente ao Ministério Público fazê-lo, face, repete-se, à privatividade do "jus postulandi". Nessa medida, até mesmo para se coordenar/concatenar à atribuição do exercício do controle externo (da legalidade) da polícia, as providências adotadas pela Autoridade Policial devem ser apresentadas diretamente ao titular da ação penal pública, e não ao Magistrado, oportunidade em que se adotará a providência judicial cabível.
Essas colocações não têm outro fim que não concluir pela franca desarmonia procedimental que, mesmo após mais de doze anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, introdutória de importantes reformulações principiológicas no processo penal, vem se adotando com a prática reiterada na admissão de outro órgão estatal que não o Ministério Público no exercício do "jus postulandi", mantendo-se em franco desacordo com o processo penal acusatório constitucionalmente adotado e ofendendo a necessária imparcialidade do Juízo competente.
É preciso que tais procedimentos sejam adequados à nova realidade constitucional e devidamente corrigidos pelo projeto de reforma do Código de Processo Penal que se encontra em tramitação no Congresso Nacional. Enquanto tal, caberá ao Ministério Público buscar a escorreita aplicação da lei oficiando ao Poder Judiciário no sentido de adequar a interpretação das normas inferiores às regras e princípios constitucionais e não estes àquelas, sob pena de se proceder à "leitura da constituição de baixo para cima" e culminar com a "derrocada interna da constituição por obra do legislador e de outros órgãos concretizadores, e à formação de uma constituição legal paralela, pretensamente mais próxima dos momentos ‘metajurídicos’ (sociológicos e políticos)". [5]
Referências e notas bibliográficas:
1. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, 1.º vol., Saraiva, 21.ª ed., 1999, p. 94; FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional, RT, 2.ª ed., 2000, p. 173-177; FONTELES, Cláudio Lemos. Investigação Preliminar: Significado e Implicações. Revista da FESMPDFT, Ano 9, n.º 17, jan/jun. 2001; dentre outros.
2. Assim: CHOUZE, Fauzi Hassan. Garantias Constitucionais na Investigação Criminal, RT, São Paulo, 1995, p. 36-51.
3. A exclusividade do "jus postulandi" do Ministério Público na ação penal pública e no inquérito policial, Justitia, São Paulo, 53 (156), out./dez. 1991, p. 15.
4. Idem, p. 18.
5. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, Medina, Coimbra, 1992, p. 238-239.