A importância da tipificação dos crimes contra a relação de consumo

21/08/2014 às 18:14
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Com a complexidade crescente das relações de consumo, cabe às normas do Código de Defesa do Consumidor tutelar os direitos da camada mais vulnerável, bem como prevenir e punir os atos que prejudiquem a integridade do consumidor e do sistema consumerista.

A definição mais consagrada de consumidor classifica-o como o destinatário final do produto ou serviço oferecido, enquanto, entende-se por fornecedor aquele disponibiliza ao mercado bens de consumo ou mesmo preste serviços. Tal interpretação é resultado da abrangência dada pelo Código de Defesa do Consumidor ao próprio conceito de fornecedor. Vejamos:

Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. (art. 3º da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990)

Ilação lógica dos conceitos relacionados seria relação de consumo resumida na interação entre consumidor e fornecedor. Entretanto, para que se promova o equilíbrio e a justiça na relação, a mesma deve ser entendida por meio de seu panorama mais complexo, no qual, conceitos como o da vulnerabilidade permeiam os estudos.

A própria lei consumerista, precisamente em seu artigo 4º, inciso I, reconhece a vulnerabilidade intrínseca ao consumidor. Segundo leciona o professor Rizzatto Nunes [ i ], a fragilidade desse personagem das relações de consumo decorre de dois aspectos: um de ordem técnica e outro de ordem econômica.

Em linhas gerais, o Professor ressalta que: no campo da técnica, quem detém o conhecimento acerca do produto e os meios de produção é o fornecedor, ou seja, o “conhecimento é monopólio do do fornecedor”. Sublinha, ainda, que o perfil de vulnerabilidade do consumidor é uma derivação direta da aplicação do princípio da igualdade da Constituição Federal.

Por sua vez, o aspecto econômico se resume, via de regra, no maior domínio econômico apresentado pelo fornecedor.

Repare que estamos lidando com uma relação delicada, de natural desequilíbrio. Para tanto, o CDC entra como contrapeso, de forma a regular a convivência entre os personagens da relação de consumo e proteger o consumidor, buscando, a priori, o equilíbrio das relações.

A intervenção legal para alcançar a isonomia entre as frações sociais no contexto do direito do consumidor é fundamental, de forma que o legislador não se furtou de estabelecer normas específicas para diferentes cenários.

Contudo, como bem sabemos, as normas consumeristas não se limitaram ao âmbito civil, alcançando também a esfera penal. Tal necessidade de previsão de normas penais para zelar pelos direitos do consumidor decorre da própria função do direito penal, que pode ser entendida na forma como ensinam os professores Gianpaolo Poggio Smanio e Humberto Barrionuevo Fabretti [ ii ]:

Nesse contexto, o Direito Penal não pode ser outra coisa senão um instrumento à disposição do Estado para realização de suas funções constitucionais, como por exemplo assegurar o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à dignidade, etc., como faz quando criminaliza o homicídio, o sequestro, o racismo e outras condutas prejudiciais à sociedade.

Entretanto, apesar da necessidade de regulação das relações de consumo, alguns autores, como Luiz Regis Prado, percebem excessos na legislação, ao passo que retratam a matéria penal consumerista como altamente incriminadora. Entende o autor que foram erigidos à categoria de delito determinados comportamentos que deveriam figurar, tão somente, no campo das infrações administrativas, como as condutas descritas nos artigos 71, 72 e 74 da Lei 8.078/1990 [iii].

Em que pese o posicionamento do professor Luiz Regis Prado, parte da doutrina acredita que as normas penais, no contexto em exame, possuem encargos diferentes, podendo ser, até mesmo, preventivos – neste caso, com o intuito de inibir as diversas irregularidades que podem recair sobres as relações de consumo. A função preventiva se resume na premissa que “o direito penal não corre atrás do dano, mas a ele se antecipa” [ iv ].

Para melhor falar dos crimes em questão devemos considerar o objeto jurídico tutelado. Em se tratando de legislação consumerista podemos destacar a coletividade como motor para o esforço legislativo. Em outras palavras, quando falamos de direito do consumidor, mesmo que destacando sua vertente penal, devemos entender que o legislador buscou o melhor interesse do conjunto social nas relações de consumo, moderando atitudes que danifiquem o estado de equilíbrio almejado.

Dessa forma, ao passo que a coletividade figura como sujeito passivo principal nos crimes contra as relações de consumo, a lesão, consequentemente, se espalha entre um número indeterminado de cidadãos [ v ], mesmo que a pessoa física possa ser individualizada como sujeito passivo do delito.

Com relação ao sujeito ativo, destacamos ser a pessoa física entendida como fornecedor pelo artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor [ vi ]. Vale lembrar que no contexto das previsões penais, o CDC não previu a responsabilidade de pessoas jurídicas. Isso, porque, o conceito de fornecedor sofre “restrição no âmbito penal, pois ainda vigora no Brasil o clássico axioma do societas delinquere non potest” [ vii ]. Equivale dizer que, mesmo que o crime tenha sido cometido na esfera empresarial, somente irão responder as pessoas naturais, sejam elas autores ou partícipes.

Na maior parte dos casos, o dolo se apresenta como o elemento subjetivo do tipo e o produto ou serviço como objeto material, enquanto que, em diversas situações, a materialidade delitiva é prescindível por se tratarem, em grande parte, de crimes de perigo abstrato, no quais se regula a probabilidade de dano, muito embora alguns tipos apresentem características peculiares.

Mesmo diante das inúmeras situações de abusos praticados contra os cosumidores, dos anúncios irresponsáveis e falaciosos, do risco à vida (patrocinado pelo manejo irresponsável de produtos, recursos ou informações por parte dos fornecedores) a postura crítica, representada pela fração da doutrina que considera a previsão penal no contexto dos Direitos do Consumidor um excesso, ainda oferece oposição ao sistema corrente.

Para alguns, tornou-se um exagero criminalizar atos que efetivamente lesam ou que tenham o potencial iminente de causar sérias lesões ao consumidor.

Em contrapartida às investidas, entende-se que muito mais do que garantir a harmonia das relações de consumo, a previsão criminal no CDC se encarrega de garantir a responsabilidade pelos atos irresponsáveis que prejudiquem o ator mais vulnerável da relação abordada, além de proteger sua saúde, segurança e até mesmo sua vida por meio do viés preventivo das leis. 

Apenas como ilustração, apreciemos o artigo 64 do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 64. Deixar de comunicar à autoridade competente e aos consumidores a nocividade ou periculosidade de produtos cujo conhecimento seja posterior à sua colocação no mercado:

Pena - Detenção de seis meses a dois anos e multa.

Parágrafo único. Incorrerá nas mesmas penas quem deixar de retirar do mercado, imediatamente quando determinado pela autoridade competente, os produtos nocivos ou perigosos, na forma deste artigo.

Nesse dispositivo, o legislador garantiu que fosse tutelada a incolumidade física do consumidor, em conjunto com o direito à informação sobre o que está sendo ofertado.

Além do próprio CDC, outras são as fontes legais, criminais, que protegem o consumidor. A Lei 8.137/90, figura como uma das fontes de normas que protegem o universo consumerista.

Posto isso, para corroborar a posição que declara a importância da tipificação penal no contexto das relações de consumo, utilizo-me das ponderações do Promotor de Justiça Antônio Ricardo Brígido Nunes Memória [ viii ]. 

Segundo o membro do parquet, não devem ser acatadas as censuras direcionadas aos “preceitos repressivos contidos no CDC”, afinal, existem diversas razões que demonstram sua importância e, acima de tudo, a previsão de crimes contra as relações de consumo tem o condão de promover a defesa dos consumidores frente às obrigações dispostas na própria Lei 8.078/90.

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Também, assinala que mesmo antes de ser elaborado o CDC, o Código Penal Brasileiro, bem como diversas leis, já apontavam uma preocupação com a integridade do consumidor e das relações de consumo, além de que, a “ausência de tipos penais específicos” estimularia a impunidade, uma vez que somente as sanções civis não seriam suficientes para inibir atos delituosos de alguns fornecedores. 

O promotor corrobora a posição de que a norma penal, em grande parte, detém um caráter preventivo, posto que, frente ao receio de uma possível sujeição a uma sanção penal, o fornecedor mal intencionado resistiria à prática conduta criminosa.

Tudo isso afirma a necessidade que precedeu a elaboração das leis penais consumeristas. Ainda que marcada por críticas, a referida legislação goza de um contorno coerente, frente aos descompassos de nosso sistema econômico e de consumo. Alegar sua desnecessidade seria confiar na conduta daqueles que operam com supremacia de recursos.

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[ i ] NUNES, Luiz Antonio Rizzatto – Curso de Direito do Consumidor/ Rizzatto Nunes – 8. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2013. p 178

[ ii ] SMANIO, Gianpaolo Poggio – Introdução ao direito penal: criminologia, princípios e cidadania/ Gianpaolo Poggio Smanio, Humberto Barrionuevo Fabretti. - São Paulo: Atlas, 2010. p. 97

[ iii ] PRADO, Luiz Regis – Direito penal econômico/ Luiz Regis Prado. - 5. ed. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 74

[ iv ] ANDREUCCI, Ricardo Antonio – Legislação penal especial/ Ricardo Antonio Andreucci. - 5. ed. rev. e atual. - São Paulo, 2009. p. 329

[ v ] ANDREUCCI, Ricardo Antonio – Legislação penal especial/ Ricardo Antonio Andreucci. - 5. ed. rev. e atual. - São Paulo, 2009. p. 330

[ vi ] Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.

§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

[ vii ] PRADO, Luiz Regis – Direito penal econômico/ Luiz Regis Prado. - 5. ed. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 77

[ viii ] MEMÓRIA, Antônio Carlos Brígido Nunes – O CDC e os crimes contra a relação de consumo – disponível em http://www.mpce.mp.br/servicos/artigos/artigos.asp?iCodigo=67. Acesso em 20/08/2014

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REFERÊNCIAS:

ANDREUCCI, Ricardo Antonio – Legislação penal especial/ Ricardo Antonio Andreucci. - 5. ed. rev. e atual. - São Paulo, 2009.

MEMÓRIA, Antônio Carlos Brígido Nunes – O CDC e os crimes contra a relação de consumo – disponível em http://www.mpce.mp.br/servicos/artigos/artigos.asp?iCodigo=67. Acesso em 20/08/2014.

NUNES, Luiz Antonio Rizzatto – Curso de Direito do Consumidor/ Rizzatto Nunes – 8. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2013.

PRADO, Luiz Regis – Direito penal econômico/ Luiz Regis Prado. - 5. ed. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

SMANIO, Gianpaolo Poggio – Introdução ao direito penal: criminologia, princípios e cidadania/ Gianpaolo Poggio Smanio, Humberto Barrionuevo Fabretti. - São Paulo: Atlas, 2010.

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Sobre o autor
Yves de Almeida Alvim

Advogado<br>Bacharel em direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. <br>Pós-graduando em Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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