Twitter, #Ferguson, crime e castigo diante da legislação brasileira

23/08/2014 às 09:43
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Pode ter chegado o momento de refinar a definição do crime de racismo, para permitir que as autoridades policiais e judiciárias brasileiras possam reprimir o discurso racista em outra língua na internet feita por brasileiros a partir do território nacional.

O assunto da semana no Twitter foi o assassinato de um garoto negro dos EUA. Os tópicos #Ferguson e #FergusonShooting receberam milhões de mensagens e fotos. A maioria dos twitteiros exige justiça e punição para o policial que cometeu o crime. Muitos postaram comentários defendendo o acusado ou ofendendo a vítima. Manifestações abertamente racistas também podem ser lidas ao lado de comentários contra o racismo. 

Várias línguas foram utilizadas nos tópicos referidos, inclusive o português. O assassinato do jovem negro norte-americano parece estar virando um símbolo internacional. Após o homicídio ocorrido em Ferguson, EUA, passeatas em favor da igualdade racial ocorreram no Brasil. É fato, em nosso país milhares de jovens negros foram mortos a tiros pelas PMs nas duas últimas décadas. Cartazes se referindo a morte de Mike Brown foram exibidos em marchas contra a violência policial em algumas cidades brasileiras. As fotos dos mesmos podem ser vistos em #Ferguson e #FergusonShooting. O cartunista Carlos Latuff não deixou de exibir sua criatividade em favor da causa postando uma foto no Twitter.

Através das informações postadas nos dois tópicos do Twitter ficamos sabendo que a campanha em favor do policial que cometeu o crime já levantou 250 mil dólares (mais de 500 mil reais). O racismo é um fenômeno organizado nos EUA e certamente agravará o conflito provocado pela morte de Mike Brown. O julgamento do policial tem tudo para provocar brigas nas ruas norte-americanas. Qualquer que seja o resultado deste processo a sentença provocará demonstrações públicas de revolta. 

Como advogado, não posso deixar de fazer algumas perguntas. É possível fazer Justiça sob intensa convulsão social? A distribuição pública de Justiça não é igual a vingança privada, pois exige o respeito ao devido processo legal e, sobretudo, o distanciamento emocional do fato submetido a julgamento. Por outro lado, é preciso lembrar que a apatia popular não conduz necessariamente à realização da melhor Justiça. No Brasil, por exemplo, a falta de pressão social tem facilitado a protelação de processos envolvendo crimes cometidos por policiais contra jovens negros e a impunidade de PMs que matam cidadãos de cor nas periferias das grandes cidades.

O racismo é uma ideologia que geralmente conduz à ação violenta. Mas no Brasil demonstrações públicas de racismo constituem crime de mera conduta e, portanto, não dependem do resultado da ação do criminoso. Nos EUA isto não é uma realidade. Lá a liberdade de expressão é bem maior do que no Brasil. Desde que não cometam violências, os racistas norte-americanos podem arrecadar fundos, expor suas idéias na internet e até fazer passeatas sem temer a repressão policial. Que efeito a disputa no Twitter entre brasileiros por causa da morte de Mike Brown terá em nosso país?

A pergunta é relevante, pois como jurista sei que a Lei cai em desuso se for ignorada pela população e deixar de ser aplicada pelas autoridades. Demonstrações de racismo contra nordestinos no Twitter durante as ultimas eleições presidenciais foram objeto de punição judicial no Brasil. O fato de Mike Brown ser norte-americano não deveria permitir aos brasileiros expor seu racismo na internet. Até o presente momento, porém, não vi as autoridades brasileiras demonstrarem qualquer preocupação em coibir o racismo por causa da discussão nos tópicos #Ferguson e #FergusonShooting. A razão disto pode ser uma lacuna na Lei.

O racismo é crime de mera conduta. A mensagem racista precisa ser pública e cognoscível. Se a mesma for vertida pelo racista brasileiro em uma língua estrangeira deixará de ser crime no Brasil? Está discussão já é feita na internet por brasileiros  e em algum momento terá que ser resolvida pelo Judiciário do nosso país. A Lei 7716/89 não é muito clara sobre esta questão:

"Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Pena: reclusão de um a três anos e multa.(Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza: (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

§ 3º No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência: (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97) 

I - o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo;(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

II - a cessação das respectivas transmissões radiofônicas ou televisivas.(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

II - a cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas, eletrônicas ou da publicação por qualquer meio; (Redação dada pela Lei nº 12.735, de 2012) 

III - a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores. (Incluído pela Lei nº 12.288, de 2010) "

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Não tenho dúvida de que uma pessoa racialmente ofendida em outra língua tem direito a indenização por dano moral. Neste caso basta que a mensagem ofensiva seja entendida após a tradução. Mesmo que a tradução ocorra algum tempo depois do ato, a ofensa não deixará de produzir consequências jurídicas para os envolvidos. Em se tratando de Direito Penal, porém, as coisas não são tão simples. 

Não existe crime sem lei anterior que o defina (CF/88, art. 5, XXXIX) e a definição do ato criminoso deve ser precisa pois em se tratando de Direito Penal a analogia não pode ser utilizada: 

"1. A analogia, a qual consiste em aplicar a uma hipótese não prevista em lei disposição legal relativa a um caso semelhante, é terminantemente proibida em direito penal, o qual deve estrita observância ao princípio da legalidade. Se o legislador não previu dada conduta como criminosa, é porque esta se mostra irrelevante na esfera penal, não podendo, portanto, ser abrangida por meio da analogia.

2. A conduta do professor que impede aluno portador de deficiência física de assistir aula na sala em que leciona não se subsume aotipo penal do artigo 8º, inciso I, da Lei 7.853/89, que incrimina aconduta de "recusar, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar, sem justa causa, a inscrição de aluno em estabelecimento deensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, por motivos derivados da deficiência que porta".

3. Recurso especial a que se dá provimento, para restabelecer adecisão de 1º grau, que rejeitou a denúncia, ante o reconhecimentoda atipicidade da conduta. (STJ - Processo: REsp 1022478 RN 2008/0009971-9, Relatora: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA Julgamento: 04/10/2011 Órgão Julgador: SEXTA TURMA, Publicação: DJe 09/11/2011)

O ato de praticar, encorajar ou elogiar verbalmente o racismo em outra língua ainda não é crime no Brasil. Não duvido, entretanto, que o costume de fazer isto na internet certamente reforçará as convicções ideológicas do racista e permitirá que sua ideologia se espalhe com maior velocidade. A auto-confiança que decorre da impunidade e do hábito de espalhar mensagens racistas em outra língua pode levar o racista brasileiro a passar do discurso para a ação nas ruas. Portanto, neste caso é melhor prevenir do que remediar. 

As discussões no Twitter, as manifestações de rua e a intensa publicidade em razão da morte de Mike Brown podem constituir uma excelente oportunidade para rediscutir o conteúdo da Lei 7716/89. Talvez tenha chegado o momento de se refinar a definição do crime de racismo para permitir que as autoridades policiais e judiciárias brasileiras possam reprimir o discurso racista em outra língua na internet feita por brasileiros a partir do território nacional. A pena para este tipo de crime pode e deve ser mais branda do que o seu equivalente cometido em língua pátria, pois seu potencial ofensivo é menor e o que se pretende resguardar é a paz pública. 

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Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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