Quando abordamos o termo “fronteira” na ciência jurídica, estamos vislumbrando um dos fenômenos de tal conceito – a fronteira política, como limite de território estatal estipulado pelo poder soberano de um Estado, consoante regulamentado em normas jurídicas.
Mas no extremo norte do Brasil, especificamente na região amazônica, não se pode olvidar a “complexidade dos fenômenos abrangidos pelo conceito de ‘fronteira’ quando aplicado à Amazônia.” (LENÁ, 1991, p. 10). Na ciência do Direito, a compreensão de fronteira política é suficiente, como limite de território e poder estatal, sendo “definido de maneira mais ou menos uniforme pelos tratadistas” (BONAVIDES, 1998, p. 87).
Entretanto, estudar fronteira é abarcar “fronteira estrativista, especulativa, capitalista, garimpeira, tecnológica, etc” (LENÁ, 1991, p. 10). A Amazônia do século XXI é fruto de construção histórica, com maciça presença estrangeira transpondo as fronteiras políticas dos séculos posteriores ao “descobrimento” do Brasil. Cabe destaque à “descoberta” da região pelos colonizadores entre os séculos XVI e XIX.
Os cientistas sociais estipularam o termo “frente” como metodologia para composição de melhor definição afastada da fronteira como fato político. O termo “frente” foi proposto como “ferramenta heurística aplicada a uma região concreta no intuito de entender melhor uma série de fenômenos com características comuns supostamente devidas à situação específica de fronteira” (LENÁ, 1991, p. 10).
A fronteira é “fenômeno moderno”, tendo “papel fundamental do Estado no incentivo” e “implica o deslocamento permanente de populações, para participar do desenvolvimento das novas atividades” (LENÁ, 1991, p. 11).
Especificamente no século XIX, na construção discursiva dos viajantes estrangeiros na Amazônia, que perpassa a elaboração dos conceitos de fronteiras a serem exploradas, era registrado que “... o machado do madeireiro vem abrindo caminho para a civilização por entre as sombrias florestas do Canadá. Enquanto isso, os tesouros desta vasta e fértil terra continuam à espera de serem descobertos” (CARVALHO, 2005, p. 82).
Não díspare do discurso capitalista da Amazônia do século XXI, com destaque ao estado de Roraima, podemos citar o discurso do inglês Henry Bates, no século XIX, que aponta que
“O indígena é um óbice ao progresso (total incapacidade de se adaptar a novas situações) em oposição aos imigrantes (bem mais flexíveis)”. (...) “Quem só viveu em países cuja civilização é antiga e onde é fácil encontrar pessoas que queiram trabalhar não pode imaginar as dificuldades e aborrecimentos que surgem numa terra onde a classe dos servos ignora o valor do dinheiro”
(CARVALHO, 2005, p. 69/85).
Em tal discurso, os povos tradicionais locais são postos como óbices ao desenvolvimento, ao curso das fronteiras desse desenvolvimento proposto pelo sisitema capitalista em busca de novas terras e novos recursos para exploração.
No séculos XVIII e XIX os estrangeiros exerceram papel de destaque na Amazônia, “vistos como os verdadeiros descobridores da região, aqueles que delinearam os passos seguros por onde os europeus poderão então caminhar para que a civilização reine segura no clima equatorial dos trópicos” (CARVALHO, 2005, p. 99). As fronteiras amazônicas estavam abertas à exploração européia.
Destaque-se que
até o final do século XIX, antes do boom da borracha, a região será vista então sob uma perspectiva perversamente liberal. Tudo nela pode vingar desde que a ‘indolência’, a ‘preguiça’, a ‘corrupção dos costumes’, entre outras coisas possam ser removidas (CARVALHO, 2005, p. 93).
Em meados do século XX e no início do século XXI, observamos mudança de viés, pois a mão de obra que trouxe o chamado progresso civilizatório para a Amazônia, especialmente para Roraima, foi a de trabalhadores brasileiros, com destaque aos nordestinos (VALE, 2007; CARVALHO, 2005) e sulistas (SOUZA, 2001). Nestes séculos já temos as expansões de fronteiras modernas (capitalista, garimpeira, rural), diante do estabelecimento de fronteiras políticas estáveis no país.
O último parágrafo narrou um desenvolvimento pelo viés liberal, do crescer da sociedade complexa sobre as identidades locais da Amazônia; o engrandecimento do mercado em detrimento da preservação dos recursos naturais amazônicos. Mas deve-se e podemos também vislumbrar a Amazônia “por dentro” e aqui cotejar as fronteiras da cultura, do povo e das características próprias da Amazônia.
Se interpretarmos o art. 231 da Constituição Federal de 1988 em pleno favor dos povos tradicionais da Amazônia, não teríamos o Estado atuando para favorecer o desenvolvimento liberal desta região, senão vejamos:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
(BRASIL, 1988)
Por outro lado, sabemos que a República Federativa do Brasil tem como objetivo de seu ordenamento jurídico, nos termos do art. 3º, II da Carta Maior, o desenvolvimento nacional e estipula o viés liberal em seu art. 170, com detalhamento no art. 174 parágrafo 1º que “A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento”.
O Estado realiza planos de desenvolvimento para a Amazônia, mas tal “desenvolvimento” resultou em 87 etnias indígenas destruídas na primeira metade do século XX (RIBEIRO apud LENÁ, 1991, p. 39).
Portanto, observamos que o conceito de fronteira é variável e a atuação dos grupos interessados e do Estado é ora conflitante, ora síncrono na consecução dos objetivos de uma frente ou fronteira em desenvolvimento. A identidade da Amazônia ainda permeia fronteiras em expansão e culturas em mobilidade, demonstrando haver identidades e culturas em constante (re)construção.
Na construção diária da nação brasileira, o Estado tem função primordial, no interesse de todo o povo que o compõe, equilibrar os pratos da balança que envolvem aqueles que estão explorando fronteiras e aqueles povos e culturas locais, explorados pelas novas e velhas fronteiras que marcam o “desenvolvimento” do país sob o viés liberal.
A fronteira na Amazônia já foi de interesse pelos limites políticos do território do Estado brasileiro, pela ocupação populacional, pela borracha, já pelos minerais garimpáveis, pela agricultura e há ainda certamente de surgirem outros interesses na região. O Estado deve sopesar tais interesses com as vozes dos movimentos sociais.
No século XXI, na Amazônia a atuação estatal referente ao desenvolvimento em cotejo com povos e culturas locais é atual e continua favorecendo interesses do aparelho de poder. No seio da região, é o aparelho de poder, com todo seu aparato, quem determina as políticas públicas oficiais em detrimento povo local. “Os agrupamentos traduzem efeitos de ação, senão vejamos: ‘atingidos por barragens’, ‘remanejados’, ‘deslocados’, ‘reassentados’ e ‘assentados’ (...) ‘povos da floresta’ e ‘ribeirinhos’” (D’INCAO, 1994, p. 522).
Os povos e culturas próprias da Amazônia foram totalmente desfigurados na chegada dos portugueses no século XVI. Todas aquelas características próprias e únicas em cada comunidade, de cada região, foram unificadas e nomeadas sob único conceito: índio.
Tais povos e culturas ainda nos parecem sob desfiguração, “o outro” de um Brasil em desenvolvimento, como uma mácula que precisa ser afastada para que a máquina pilotada pelos interesses do governo centralizado possa transpor e impor fronteiras de desenvolvimento oficial, conforme políticas públicas que não envolvem participação das comunidades envolvidas.
Em Roraima, um reflexo de tal dissenso entre a fronteira desenvolvimentista e povos locais é a contenda diuturna daqueles que detêm os meios de comunicação em massa para convencer a população contra de que há pouca terra para produção agropastoril em um Estado da federação supostamente limitado pelas demarcações de terras indígenas e áreas de proteção ecológica.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988) Constituição da república federativa do Brasil. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/principal.htm>. Acesso em 13 nov. 2012.
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10ª Ed. Malheiros. 1998
CARVALHO, João Carlos de. Amazônia revisitada: de Carvajal a Márcio Souza. Rio Branco: EDUFAC, 2005.
CERVO, Amado Luiz. Inserção internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo. Saraiva, 2008.
D´INCAO, Maria Ângela. SILVEIRA, Isolda da. A Amazônia e a crise da Modernização. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldí, 1994.
LEE, Everett S. Uma teoria sobre a migração. In: BNB. Migração interna: textos selecionados. Tradução de Hélio A. de Moura.. 1 t. Fortaleza: ETENE, 1980.
LENÁ, Philippe. OLIVEIRA, Adélia Engrácia de. (org). Amazônia: a fronteira agrícola 20 anos depois. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1991.
SOUZA, Carla Monteiro de. Gaúchos em Roraima. Porto Alegre. EDIPUCRS. 2001.
VALE, Ana Lia Farias. Migração e Territorialização. As Dimensões Territoriais dos Nordestinos em Boa Vista/RR. UNESP. 2007.