5. O conteúdo e a utilidade da consolidação
5.1. Consolidação e regulamento
Consolidação de leis em texto único não se confunde com regulamento. Neste, as normas destinam-se a explicitar o que está nas leis. Naquela, as normas são exatamente as mesmas que estão nas leis consolidadas. Mesmo assim, nada impede que em um regulamento se faça a consolidação de algumas normas tal como estão nas leis. Nem que em uma consolidação de leis se incluam algumas normas de natureza regulamentar. Aliás, como lembra Baleeiro, o art. 212 do Código Tributário Nacional não manda fazer a consolidação das leis, mas a consolidação da legislação vigente (Aliomar Baleeiro, Direito Tributário Brasileiro, 11ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1999, pág. 1026), e legislação abrange, na terminologia adotada pelo Código Tributário Nacional, não apenas as leis, mas também os decretos e regulamentos, além das normas ditas complementares, como as instruções, portarias e outras de natureza infra legal.
Pode-se, pois, concluir que a consolidação determinada pelo art. 212 do Código Tributário Nacional inclui os dispositivos de leis e de regulamentos. Impõe-se, todavia, a distinção entre a consolidação das leis, e os dispositivos meramente regulamentares, que além de ser teoricamente muito clara tem inegável efeito prático.
É sabido que o alcance dos regulamentos é limitado, como explicita o art. 99, do Código Tributário Nacional. Em vista dessa limitação fica evidente a diferença entre um regulamento e uma consolidação de leis.
O regulamento não pode conter norma cuidando de matéria reservada à lei, porque isto violaria o princípio constitucional da legalidade, explicitado, em matéria tributária, pelo art. 97 do Código Tributário Nacional. Pode, porém, explicitar o que está nas normas contidas em leis, e até instituir obrigações acessórias. Não obrigações que não sejam realmente qualificáveis como acessórias, embora sem conteúdo patrimonial. Só obrigações que tenham nítido caráter instrumental, vale dizer, obrigações cujo cumprimento viabiliza o controle do cumprimento de obrigações principais.
A consolidação de leis não pode conter norma que não seja simples reprodução de outra contida nas leis consolidadas. Consolidação das leis é uma expressão da Teoria Geral do Direito que designa a "reunião, num só diploma legislativo, de leis esparsas sobre determinada matéria, uniformizando-as, sem, contudo, fazer qualquer inovação." (Maria Helena Diniz, Dicionário Jurídico, Saraiva, São Paulo, 1998, vol. 1, pág. 805).
Porque não há de conter inovações a consolidação deve indicar, em seguida a cada dispositivo, o dispositivo da lei consolidada que está reproduzindo. A rigor, portanto, uma verdadeira consolidação de leis pode ser veiculada até por ato administrativo de posição hierárquica inferior. Não se há de exigir que seja um Decreto. A vantagem de ser a consolidação feita por Decreto é permitir que no mesmo texto sejam encartadas normas de natureza regulamentar. Normas que não reproduzem literalmente outras existentes em leis, mas as explicitam.
Como a consolidação não inova a ordem jurídica, há de conter apenas os dispositivos vigentes na data em que é elaborada, sendo recomendável a indicação, entre parênteses, do dispositivo da lei que deu origem ao dispositivo da consolidação.
5.2. Consolidação e dispositivos revogados
O fato de constar da consolidação um dispositivo de lei que tenha sido revogado não o fará retomar a vigência. Esse dispositivo, em princípio, não obrigará a autoridade, e menos ainda o contribuinte.
Se o dispositivo de lei não foi expressamente revogado, o fato de constar da consolidação pode ser alegado pelo contribuinte como argumento a sustentar que não se deu a revogação, na medida em que consubstancia uma interpretação do Chefe do Poder Executivo. E se a conduta do contribuinte foi desenvolvida em observância daquele dispositivo, pode ele ser invocado para excluir a imposição de penalidades, a cobrança de juros de mora e a atualização do valor monetário da base de cálculo do tributo, nos termos do art. 100, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, posto que será sempre um dispositivo de regulamento, e portanto, mais do que uma norma complementar da legislação tributária.
Não se trata de questão de interesse meramente acadêmico. Muito ao contrário, ela tem grande interesse prático, como demonstra o que ocorreu no Município de Fortaleza. O art. 153, da Lei nº 4.144/72, autoriza a compensação do ISS devido pelos colégios com a prestação de serviço escolar consubstanciada em bolsas de estudo oferecidas ao Município, nos termos que indica. Esse dispositivo foi incluído na consolidação aprovada pelo Decreto nº 9.757/95, e também na consolidação aprovada Decreto nº 10.827, de 18.07.2000. Não obstante, o Contencioso Administrativo Tributário do Município entendeu que o mesmo estaria revogado pelo art. 229, § 3º, da Lei Orgânica do Município de Fortaleza. A compensação estaria, assim, desautorizada.
Tal revogação na verdade não ocorreu. É certo que o dispositivo Lei Orgânica veda a destinação de recursos públicos do Município a estabelecimentos particulares de ensino. Ocorre que imposto ainda não arrecadado não pode ser considerado como recurso público. Seja como for, a consolidação das leis tributárias do Município, aprovada por um Decreto do Chefe do Poder Executivo, é uma interpretação que vincula toda a Administração Municipal. Não pode ser simplesmente desconsiderada por órgãos dessa Administração. Muito menos para punir aqueles que se comportaram de acordo com os dispositivos consolidados.
5.3. Utilidade da consolidação
A utilidade, ou mais exatamente, a absoluta necessidade da consolidação da legislação tributária, é algo indiscutível, pelo menos em relação a alguns tributos. Qualquer pessoa que lida nessa área o sabe sobejamente.
A propósito do art. 212 do Código Tributário Nacional, Seixas Filho sustenta a necessidade da consolidação no mesmo determinada, para a garantia da certeza para o contribuinte. Em suas palavras:
"Conhecendo-se a grande quantidade de leis para cada imposto, depois de certo tempo, a consolidação dessas leis em um texto único traria uma certeza para o contribuinte sobre as normas jurídicas em vigor, e às quais deve dar cumprimento." (Aurélio Pitanga Seixas Filho, Comentários ao Código Tributário Nacional, cord. Carlos Valder do Nascimento, 5ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2000, pág. 508)
E em seguida aquele eminente tributarista reconhece a insuficiência dos regulamentos eventualmente expedidos pelas autoridades da Administração Tributária, e afirma, com razão pelo menos em relação a vários dos principais impostos de nosso sistema tributário, que não tem sido alcançada "a intenção do legislador, no sentido de uma freqüência que permita uma certeza razoável quanto à vigência das leis tributárias." Aurélio Pitanga Seixas Filho, Comentários ao Código Tributário Nacional, cord. Carlos Valder do Nascimento, 5ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2000, pág. 508).
Nesse clima de insegurança jurídica, então, é razoável pretender-se a exclusão de penalidades para a inobservância das leis tributárias, pelo menos em relação a impostos cuja legislação tem sido alterada com muita freqüência, como é o caso, por exemplo, do imposto de renda, do imposto sobre produtos industrializados. A omissão da autoridade no cumprimento do art. 212 do Código Tributário Nacional poderá ser alegada pelo sujeito passivo da obrigação tributária, como causa excludente da punibilidade, e ao menos em algumas situações essa alegação deve ser acolhida, assegurando-se ao interessado o direito de pagar apenas o tributo devido, sem os acréscimos decorrentes da inobservância da lei.
Dizemos em algumas situações porque reconhecemos ser desnecessária, em muitos casos, a consolidação de que se cuida. Se existe apenas uma lei tratando do tributo, e essa lei não foi alterada nos últimos 12 meses anteriores à data prevista para a consolidação, certamente está não se faz necessária. Se no ano anterior a consolidação foi feita e, em seguida, não surgiram alterações das leis consolidadas, também não é razoável afirmar a necessidade da consolidação. É inegável, porém, a necessidade desta em relação a tributos como o imposto de renda, por exemplo, que tem leis alteradas várias vezes durante o ano.
6. Responsabilidade gerada pelo ilícito e ação cabível
6.1. O dever e a responsabilidade
O dever jurídico situa-se no momento da liberdade e, por isto mesmo, eventualmente não é cumprido. Mas do não cumprimento do dever, por pessoa responsável, resulta sempre a responsabilidade, que é um estado de sujeição.
É mais do que evidente o dever jurídico atribuído aos Poderes Executivos da União, dos Estados e dos Municípios, de consolidarem anualmente em texto único a legislação de cada um de seus tributos. O não cumprimento desse dever, isto é, a não observância do art. 212 do Código Tributário Nacional é, sem dúvida, uma omissão ilícita, que gera a responsabilidade pelos danos daí decorrentes.
Essa responsabilidade é atribuída pelo art. 37, § 6º, da vigente Constituição Federal, ao ente público. Responsabilidade objetiva que independe, portanto, de ter havido dolo ou culpa da Administração. Responsabilidade que decorre da má qualidade dos serviços de administração e arrecadação dos tributos, desenvolvidos sem que disponham, servidores públicos e contribuintes, das informações quanto ao que a própria Administração entende serem as normas vigentes da legislação tributária.
6.2. Responsabilidade do ente e do agente públicos
A responsabilidade objetiva é do ente público. Isto, porém, não quer dizer que o agente público não possa também ser responsabilizado nos casos em que tenha havido dolo ou culpa.
Como na generalidade dos casos não é razoável admitir-se que a Administração Tributária não disponha de condições para o cumprimento do dever que lhe é atribuído pelo art. 212 do Código Tributário Nacional, tem-se de concluir que a culpa estará em geral presente.
Seja como for, não basta a responsabilidade dos entes públicos.
Com efeito, consagrada a responsabilidade objetiva, pensou-se que o cidadão estivesse finalmente protegido contra os abusos do poder estatal. Essa proteção, porém, tem se mostrado precária e em muitos casos praticamente inútil. Privilégios processuais permitem uma quase infindável protelação do processo que, a final, esbarra no precatório, hoje aviltado com o parcelamento em dez anos. Além disto, mesmo quando efetivada a indenização, esta não tem o efeito que se espera das sanções em geral, de inibir a conduta abusiva, posto que sai dos cofres públicos e não do patrimônio de quem exerce a vontade estatal.
Essa realidade em que o Direito se revela ineficaz já fez com que o Ministro Marco Aurélio de Farias Mello, Presidente do STF, em debate no site UOL, reconhecendo não ser possível consertar o Brasil com novas leis, afirmasse, com inteira razão, que "precisamos, na verdade, de homens que cumpram as existentes, e isso engloba aqueles que, nos diversos segmentos, dirigem o País." (INFORME, do TRF da 1ª Região, nº 102, julho/2001, pág.7). E o caminho para fazermos com que os dirigentes do País cumpram as leis é a responsabilidade pessoal destes pelos danos que eventualmente causam aos particulares, por seus abusos, inclusive com o descumprimento de decisões judiciais. Responsabilidade civil, porque a experiência tem demonstrado ser impraticável a efetivação da responsabilidade penal.
Para Hely Lopes Meirelles, em face da responsabilidade objetiva do ente público, estabelecida pelo art. 37, § 6º, da vigente Constituição Federal, não existe a responsabilidade pessoal do agente público, a não ser perante o ente público a que serve, titular da ação regressiva contra ele nos casos de dolo ou culpa. Entretanto, em sentido contrário manifestam-se, entre outros, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello e Celso Antônio Bandeira de Mello, este último invocando em seu apoio a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que, segundo verificamos, efetivamente tem reconhecido que o lesado pode mover ação contra o Estado e contra o agente, conjuntamente (STF, RE 90.071, em RTJ 96, pág. 237; RE 94.121-MG, rel. Min. Moreira Alves, RTJ nª 105, págs. 225 a 234; entre outros julgados).
O descumprimento, pelo Poder Público, da norma albergada pelo art. 212 do Código Tributário Nacional constitui verdadeira afronta ao contribuinte. E como não há no referido dispositivo a previsão explícita de uma sanção, para que tal dispositivo não continue sendo o que Baleeiro denominou sino sem badalo (Aliomar Baleeiro, Direito Tributário Brasileiro, 11ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1999, pág. 1026), tem-se de buscar o caminho da responsabilidade civil pelos danos decorrentes da omissão no cumprimento do dever de fazer a consolidação das leis de cada imposto.
Valerá a pena tentarmos esse novo caminho. Buscará o interessado demonstrar que a omissão lhe causou danos, o que não será difícil nos casos em que tenha deixado de auferir alguma vantagem prevista em lei não consolidada, ou tenha sofrido alguma punição. E a culpa dos agentes públicos, que neste caso, aliás, é evidente, pois não podem eles desconhecer as normas do Código Tributário Nacional.
A propósito da responsabilidade do agente público pelo descumprimento do art. 212 do Código Tributário Nacional, note-se que Aliomar Baleeiro, comentando esse dispositivo, cogitou da possibilidade de impeachement, reconhecendo portanto a responsabilidade do Chefe do Poder Executivo inadimplente.
No plano da Administração Pública da União, e dos Estados, e da grande maioria dos Municípios, dúvida não pode haver. Os agentes públicos que servem a essas entidades dispõem de sobradas condições para a consolidação anual, em texto único, da legislação de cada um de seus tributos. Nenhuma escusa pode ser admitida. Restaria apenas saber qual o agente público responsável pela omissão.
À primeira vista pode parecer que a omissão de que se cuida é imputável ao Chefe do Poder Executivo, posto que a este compete baixar decretos. Não nos parece, porém, que seja assim, salvo em alguns municípios de muito pequeno porte. Relativamente à União, e aos Estados, e à maioria dos Municípios, penso que o responsável pela omissão é a autoridade incumbida de chefiar a arrecadação tributária. O Secretário da Receita Federal, na União, os Secretários de Fazenda, ou Finanças dos Estados, e os Secretários de Finanças dos Municípios.
6.3. A ação cabível
Dúvida não há de que o sujeito passivo da obrigação tributária tem direito de ser indenizado pelos danos de que se cuida. Para tutelar esse direito pode, pois, promover ação ordinária tanto com o objetivo de livrar-se de penalidades, como também com o objetivo de obter a indenização devida pelos danos suportados.
A ação, quando tenha por objetivo elidir penalidades, deve ser promovida contra o ente público. Seja ação declaratória, seja anulatória de auto de infração, seja embargos à execução fiscal, conforme o caso.
Pode também o sujeito passivo da obrigação tributária, tendo sofrido qualquer dos danos decorrentes da ausência da consolidação anual da legislação, promover ação de indenização contra o agente público responsável pela omissão de que se cuida, como acima explicado. A ação, aliás, pode e deve ser um só. Contra o ente e contra o agente públicos.
Pedirá o autor a condenação do agente público fundada na culpa, caracterizada pela negligência deste no cumprimento do dever que lhe decorre do cargo, de adotar as providências que a lei determina para a Administração, vale dizer, no caso de que se cuida, o dever de fazer anualmente a consolidação da legislação de cada tributo. E também a condenação do ente público, que há de ocorrer, fundada na responsabilidade objetiva deste, na hipótese de não ser admitido pelo julgador aquele elemento subjetivo. Acolhido o pedido principal e condenados ambos os réus, a execução poderá ser feita diretamente contra os agentes públicos, sem necessidade de precatório. Acolhido apenas o pedido subsidiário, estará o autor na mesma situação em que estará se promover a ação apenas contra o Estado.
Por outro lado, só o fato de serem chamados a juízo como réus, e terem de contratar advogado para se defenderem, posto que em geral haverá conflito entre a defesa do ente público e a de seus agentes, impedindo o procurador do primeiro de atuar como advogado do segundo, já fará com que o agente público passe a atuar com mais cuidado com os direitos alheios. Além disto, uma condenação ao pagamento de indenização, por pequena que seja esta, certamente terá muito mais efeito contra as práticas ou omissões abusivas do que uma vultosa indenização a ser paga pelo ente público, que a final sai do bolso de todos nós contribuintes.