Capa da publicação Lei Kandir: Pará perde bilhões com isenção de ICMS
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Lei Kandir: as perdas causadas pela isenção do ICMS, o não repasse financeiro e suas influências no desenvolvimento local

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28/08/2014 às 21:13
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A Lei Kandir isenta as exportações de ICMS, mas as compensações federais ao Pará foram insuficientes e irregulares. Como sustentar o desenvolvimento regional com perdas de R$ 21,5 bilhões?

Resumo: A partir do exame de reportagens e dados oficiais sobre as perdas causadas pela sistemática de tributação estabelecida pela Lei Kandir (LC 87/96), este artigo visa esclarecer como a desoneração do ICMS sobre exportações influenciou o desenvolvimento do Estado do Pará. Os dados utilizados provêm de pesquisas realizadas pelo Tribunal de Contas do Estado do Pará (TCE-PA) e são correlacionados com informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os números analisados oferecem uma perspectiva sobre os desafios financeiros enfrentados pelo segundo maior estado do país em decorrência dessa legislação.

Palavras-chave: Lei Kandir; ICMS; Compensação; Desenvolvimento Regional; Pará; Federalismo Fiscal.


1. INTRODUÇÃO

O presente artigo visa esclarecer as perdas causadas pela base de cálculo tributário da Lei Kandir. As perdas causadas são de extrema importância para uma unidade federativa do Brasil do tamanho que é o Estado do Pará.

Os dados do IBGE nos mostram que o Pará é o segundo maior estado do país com uma extensão de 1.247.954,666 km2, dividido em 144 municípios. Está situado no centro da região Norte e tem como limites o Suriname e o Amapá a norte, o oceano Atlântico a nordeste, o Maranhão a leste, Tocantins a sudeste, Mato Grosso a sul, o Amazonas a oeste e Roraima e a Guiana a noroeste. O Estado é o mais populoso da região Norte, contando com uma população de cerca de 8 milhões de habitantes. Sua capital, Belém, reúne em sua região metropolitana cerca de 2,1 milhões de habitantes, sendo a maior população metropolitana da região Norte.

Segundo dados históricos do IBGE, quase um quinto da população paraense vivia em extrema pobreza. Cerca de 1,5 milhão de habitantes reside em domicílios com rendimento menor ou igual a R$ 70,00 reais por mês. Desse total, cerca de 500 mil pessoas têm rendimento nominal mensal domiciliar igual a zero.

A Lei Kandir causou perdas importantes na arrecadação de impostos estaduais. Apesar de o governo federal ter se comprometido em compensar tais perdas, as regras para esta compensação não ficaram tão claras e há um impasse entre o governo e os estados sobre este assunto. O que ocorre é que o governo apenas estabelece valores parciais para compensação e os lança no orçamento público da União. Os Estados, por outro lado, são obrigados a assegurar às empresas o crédito do ICMS cobrado sobre insumos usados para as exportações. Parte destes recursos é repassada pela União, contudo, o repasse efetivo dos créditos às empresas é lento, pois muitas vezes são referentes a um ICMS pago sobre um insumo comprado em outro Estado.

Estudo do TCE-PA revela que o Pará já perdeu R$ 21,5 bilhões. Autoridades paraenses resolveram se unir em torno daquele que é considerado o maior gargalo financeiro sofrido pelo Estado: as perdas causadas pela sistemática tributária da Lei Kandir e o seu respectivo impacto nas contas estaduais relativos aos repasses não recebidos, sendo o Pará o quarto maior estado exportador de todo o país.

A pesquisa considera os valores recebidos pelo Pará neste período, em forma de ressarcimento e auxílio financeiro do Governo Federal, para concluir que a Lei Kandir produziu um ônus de R$ 21,5 bilhões para o Estado em termos de arrecadação de ICMS sobre o setor exportador. “Esses recursos poderiam estar sendo utilizados, com certeza, em benefício do maior desenvolvimento do Pará, em segurança pública, saúde, educação, construções de moradias, e no bem estar da sua população”, disse o então presidente do TCE-PA.


2. BREVE HISTÓRICO

2.1. Federação

Aprendemos com a Constituição que o Brasil é uma República Federativa formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal. Embora saibamos que a cidade onde vivemos faz parte de uma unidade federativa, grande parte da população não sabe exatamente o que isso significa e como isso pode influenciar na qualidade de vida, por exemplo.

Vivemos em um mundo onde existem duas formas principais de Estado: o Estado Unitário (a exemplo de Cuba e China) e o Estado Federal ou Federação, que é o caso do Brasil. Focando apenas no nosso contexto, o Estado Federativo se divide em entes federados que possuem autonomia em seus territórios, mas não soberania sobre eles.

O Brasil nem sempre foi uma República Federativa; nascemos de uma monarquia, passando até mesmo pelo autoritarismo da ditadura, para poder chegarmos à constituição que temos hoje, que vigora desde o ano de 1988. A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu preâmbulo, diz o seguinte:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

O seu artigo 1º traz o seguinte:

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito [...]

De acordo com Lagemann e Bordin (1993), o regime federativo é variável, mas se caracteriza fundamentalmente pela união de diversos entes autônomos, sob uma única soberania. Diferencia-se dos Estados Unitários pela autonomia das unidades federadas em sua capacidade de auto-organização, autogoverno e autoadministração.

Uma das principais pautas na Assembleia Constituinte de 1988 foi a descentralização, onde a União transferia serviços públicos para os Estados e Municípios. Franco Montoro foi um grande defensor dessa ideia; quando governava São Paulo, descentralizou a administração do Estado em 42 regiões de governo.

A professora da USP Maria Hermínia Tavares de Almeida, ao tratar de Estado Federativo, diz que a descentralização foi uma das principais características do processo de democratização no Brasil. Coerente com o espírito da época, a Constituinte de 1988 aprovou significativa redistribuição de recursos, competências e responsabilidades para os governos subnacionais. Desde então, só iria se acentuar a tendência – anterior à própria Constituição – de transferir atribuições do governo federal para Estados e Municípios. A descentralização dizia respeito, em grande medida, às políticas sociais, terreno em que o ímpeto centralizador dos governos autoritários se fizera sentir em sua plenitude.


3. PACTO FEDERATIVO

3.1. Impasse

A descentralização dos poderes da União e a transferência dos serviços públicos para os Estados e Municípios começaram como um grande trunfo para a democratização do Brasil. O município está no final desse gargalo tributário; veio recebendo progressivamente responsabilidades vindas do Estado e da União, porém os recursos para tal não vieram na mesma proporção.

As receitas arrecadadas pela União, e parcela dessas receitas, são repassadas para os Estados, DF e Municípios, como mecanismos de amenização das desigualdades regionais, com o objetivo de promover o equilíbrio socioeconômico entre Estados e Municípios.

No Brasil, existe um movimento formado por Chefes do Poder Executivo Municipal, denominado Frente Nacional de Prefeitos (FNP), que tem por objetivo principal resgatar o princípio da autonomia municipal e reconstruir o Pacto Federativo, pois embora constem na Carta Magna, não são plenamente respeitados.

Missão: A FNP é a única entidade municipalista nacional a ser dirigida exclusivamente prefeitos e prefeitas em efetivo exercício de mandatos. Pluripartidária, sua atuação é em prol dos municípios brasileiros. [...] Sua missão institucional é zelar pela autonomia municipal, pelo aperfeiçoamento da legislação que trata de matéria de interesse local e pela participação dos municípios nas decisões da federação. Para isso, a FNP adota no âmbito dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, medidas coletivas em sua defesa. A entidade também tem como objetivo promover a participação ativa dos entes locais nas questões urbanas e na interlocução ampla e democrática com os três poderes no âmbito estadual e federal, e com a sociedade civil organizada.

(Texto adaptado do site da FNP)

O então senador Jorge Viana (PT), em 12 de março de 2013, subiu à tribuna para alertar para os riscos de um eventual impasse em torno do pacto federativo. Ele temia que isso pudesse representar um desequilíbrio perigoso entre regiões do país. O senador petista estava preocupado com a possibilidade de que projetos pudessem atravancar o desenvolvimento regional, como o que unifica gradualmente as alíquotas interestaduais do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). “Se isso não for bem feito, nós teremos mais prejuízos para os estados do Norte e Nordeste”, alertou. “Se a unificação do ICMS não for bem feita, se ela não levar em conta [...] um fundo financeiro de compensação para os Estados, o Brasil pode aprofundar as desigualdades regionais”.

A Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado discutia, à época, o projeto que unificava as alíquotas do ICMS. Falava-se que a unificação das alíquotas interestaduais do ICMS nas operações e prestações realizadas nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e no Espírito Santo, destinadas às regiões Sul e Sudeste, seria fixada em 11% em 2014, com redução de um ponto percentual por ano, até chegar a 4% em 2025. Para as operações realizadas nas regiões Sul e Sudeste com destino às demais, partir-se-ia de 6% em 2014 para atingir 4% já em 2016.

O então vice-presidente do Senado, Viana comentou que havia risco de o país assistir a um conflito ainda maior do que aquele que colocou Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Paulo em oposição aos demais estados, por conta das regras que redefinem a distribuição dos royalties do petróleo. “Se não tivermos cuidado, vamos ter Norte e Nordeste numa situação de penúria”, alertou. “Estamos apreciando algo que, se não for bem conduzido com harmonia, com equilíbrio, podemos ter novamente, em vez de ter o fortalecimento da Federação, um enfraquecimento da Federação. E o enfraquecimento da Federação é sinônimo de enfraquecimento do país”.

Jorge Viana comentou que o desenvolvimento do país é desigual e que parte da Constituição prevê mecanismos justamente para diminuir as desigualdades. “Temos, hoje, no Sul e no Sudeste, a base da atividade industrial produtiva brasileira, e, no resto do país, os consumidores”, disse, ressaltando que há quem queira manter essa situação. “Mas isso significa aprofundar o desequilíbrio, as desigualdades regionais. E é essa a oportunidade que nós estamos vivendo hoje.”


4. ROYALTIES

A palavra Royalty ou Royalties deriva da palavra inglesa Royal, que designa tudo aquilo que pertence ou é relativo ao rei, monarca ou nobre. O termo royalties era usado na antiguidade para designar os valores pagos por terceiros ao rei ou nobre, a título de compensação, pela extração de recursos naturais existentes em suas terras. No caso brasileiro, os royalties são, basicamente, uma compensação financeira paga à União, Estados e Municípios pela exploração de recursos minerais (como petróleo ou gás natural) ou outros bens públicos.

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A história do pagamento de royalties inicia-se no Brasil em outubro de 1953, com a Lei 2.004, que criou a Petrobrás. Estabeleceu-se naquele momento que 5% sobre o valor da produção terrestre de petróleo e gás natural seriam pagos aos estados e territórios onde fosse feita a lavra. Nessa época, os royalties não incidiam sobre a produção offshore (no mar), pois esta era inexistente. Em 1957, a Lei 3.257 incluiu os municípios no rateio, cabendo 1% daqueles 5% para os municípios em cujo território se realizasse a lavra.

Com o Decreto-Lei 523, de 1969, foi expandida a cobrança de royalties sobre a produção offshore; contudo, estados e municípios não eram contemplados inicialmente. Com a Lei 7.453 de dezembro de 1985, considerou-se que o petróleo e o gás natural extraídos da plataforma continental também estariam sujeitos a royalties, no mesmo percentual de 5%, dos quais 1,5% destinaram-se aos estados confrontantes com os poços produtores, 1,5% aos municípios também confrontantes, 1% ao Ministério da Marinha, e 1% constituiria um fundo especial (FE) que seria distribuído entre todos os estados e municípios da federação.

Temos quatro justificativas ou princípios relativos ao pagamento dos royalties:

  • Royalty como compensação pelos impactos ambientais causados pela atividade extrativa.

  • Royalty como compensação às esferas subnacionais pelo aumento da demanda por serviços públicos decorrente da atividade.

  • Royalty como mecanismo de promoção de justiça intergeracional (compensar gerações futuras).

  • Royalty como recurso para o período pós-esgotamento das reservas (promover reconversão produtiva).


5. ICMS

O artigo 155 da Constituição Federal de 1988 traz as linhas mestras atinentes ao ICMS. Trata-se de imposto estadual (e distrital) que incide sobre a circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação.

O ICMS substituiu o anterior ICM (Imposto sobre Circulação de Mercadorias), bem como o mais antigo IVC (Imposto sobre Vendas e Consignações). A competência para a cobrança de tal imposto é dos Estados e do Distrito Federal (CF, artigo 155, inciso II).

O texto constitucional afirma que o ICMS é não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas operações anteriores, assemelhando-se nesse ponto ao IPI. Dessa forma, o texto constitucional outorga ao contribuinte o direito de compensar o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado ou DF. Fica claro, pois, que o direito de crédito tem como fonte primária a própria Constituição.

Observa-se que a apuração do saldo devedor ou credor, através da diferença entre o imposto relativo às saídas e o correspondente às entradas de mercadorias, surge tão somente como uma técnica especial de tributação que assegura ao contribuinte o princípio da não cumulatividade. Assim, o crédito de ICMS nasce com a operação mercantil tributada anterior, sendo, em tese, irrelevante o fato de o tributo correspondente ter sido efetivamente “pago” pelo promovente da operação anterior (embora a legislação infraconstitucional possa criar regras sobre isso).

No que diz respeito às isenções, incentivos e demais benefícios fiscais, estes só podem ser concedidos e revogados pelos Estados e DF mediante convênios celebrados no âmbito do CONFAZ, segundo o disposto em lei complementar, conforme estabelece o inciso XII, alínea ‘g’, do § 2° do artigo 155 da Constituição Federal de 1988.

O ICMS é um tributo indireto e regressivo. Indireto porque seu ônus econômico é transferido ao longo da cadeia produtiva até o consumidor final, estando embutido no preço do produto ou serviço. Regressivo porque, proporcionalmente, quem ganha menos paga mais, já que todos pagam a mesma alíquota sobre o consumo, independentemente da capacidade contributiva (diferente do Imposto de Renda, que é direto e progressivo).

O ICMS é a grande fonte de receita própria do Distrito Federal e dos Estados, com alíquotas internas que variam (na média, 17%, mas podendo ir de 7% a mais de 30% dependendo do produto e do estado). Cada estado da Federação tem liberdade para adotar regras próprias, respeitados os requisitos mínimos fixados na Constituição Federal e na lei complementar (atualmente a LC 87/96 - Lei Kandir). O ICMS é o imposto estadual mais importante porque representa a mais expressiva fonte de receita tributária própria, podendo chegar a 90% do total arrecadado em alguns entes. Os recursos arrecadados destinam-se ao atendimento de exigências sociais e melhoria dos serviços públicos, tais como educação, saúde e segurança.

O ICMS é também um imposto seletivo (ou deveria ser), ou seja, a alíquota não é igual para todas as mercadorias, incidindo mais sobre alguns produtos (supérfluos) e menos sobre outros (essenciais). O grau de incidência ou a isenção depende da essencialidade atribuída à mercadoria.


6. LEI KANDIR (LC 87/1996)

A Lei Kandir, Lei Complementar brasileira nº 87, entrou em vigor em 13 de setembro de 1996. Dispõe sobre o imposto dos Estados e do Distrito Federal nas operações relativas à circulação de mercadorias e serviços (ICMS). A Lei Kandir isenta do tributo ICMS os produtos e serviços destinados à exportação. A lei "pega emprestado" o nome de seu autor, o ex-deputado federal e então Ministro do Planejamento, Antônio Kandir.

Considerando o ICMS, a LEI COMPLEMENTAR Nº 87 (1996), em seu Art. 3º, estabelece que o imposto não incide sobre:

II - operações e prestações que destinem ao exterior mercadorias, inclusive produtos primários e produtos industrializados semi-elaborados, ou serviços;

Parágrafo único. Equipara-se às operações de que trata o inciso II a saída de mercadoria realizada com o fim específico de exportação para o exterior, destinada a:

I - empresa comercial exportadora, inclusive tradings ou outro estabelecimento da mesma empresa;

II - armazém alfandegado ou entreposto aduaneiro.

6.1. O ICMS Antes da Lei Kandir

O Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) é o principal tributo de competência estadual e está previsto no art. 155, II, da Constituição Federal de 1988 (CF/88).

O texto original da CF/88 estabelecia imunidade do ICMS nas exportações apenas para produtos industrializados e delegava à lei complementar competência para desonerar os produtos semielaborados que especificasse. A Lei Complementar nº 65, de 15 de abril de 1991, preencheu essa lacuna e definiu como produtos semielaborados, sujeitos ao pagamento do imposto nas operações de exportação, aqueles que resultassem de matéria-prima de origem animal, vegetal ou mineral quando não exportada in natura, cuja matéria-prima não tivesse sofrido processo modificador da natureza química originária, ou cujo custo da matéria-prima representasse mais de 60% do custo total do produto.

Assim, a exportação de uma série de produtos semielaborados e de todos os produtos primários era tributada pelo ICMS, o que, segundo expressiva parcela dos estudiosos da questão fiscal, diminuiria a competitividade dos produtos nacionais.

Essa visão ganhou maior dimensão com a implementação do Plano Real, uma vez que a balança comercial brasileira passou a ser deficitária. O superávit comercial de US$ 10,4bilhões, em 1994, transformou−se em déficits de US$ 3,4 bilhões e US$ 5,6 bilhões em 1995 e 1996, respectivamente.

Diante dessas circunstâncias, o Deputado Antonio Kandir apresentou o PLP nº 95/1996, que foi aprovado pelo Congresso Nacional durante sua gestão como Ministro do Planejamento do Governo Fernando Henrique Cardoso, e transformou-se na chamada “Lei Kandir” (Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996), substituindo o Decreto-Lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968, diploma legal que estabelecia, até então, as principais regras de cobrança do ICMS.

Kume & Piani (1997) consideram que esse diploma legal implementou uma espécie de “desvalorização fiscal”, com o objetivo de restabelecer o equilíbrio de longo prazo das contas externas, em alternativa à desvalorização nominal da taxa de câmbio.

6.2. O ICMS Depois da Lei Kandir

Mesmo antes da LC nº 87/96 (que isentou de ICMS as exportações de bens primários e semimanufaturados), já eram pletóricos os incentivos fiscais e os subsídios às exportações de manufaturados e às importações de insumos. Esses subsídios, enormemente aumentados desde o início dos anos 70, favoreceram empresas industriais, muitas delas transnacionais.

Os subsídios à exportação de manufaturados e as isenções à dos básicos podem ser vistos como o oposto de uma política econômica que vise valorizar bens produzidos no Brasil, evitar o rápido esgotamento de matérias-primas estratégicas e gerar receitas públicas.

Sob a LC nº 87/96, os Estados perderam a arrecadação do ICMS sobre exportações e deveriam ser ressarcidos pela União, mas esse ressarcimento ocorre com atraso e de forma considerada insuficiente por muitos Estados. Além de ser afetado por outros problemas fiscais, o poder público fica com menos recursos próprios para investir nas infraestruturas econômica e social.

Na realidade, argumenta-se que os incentivos e subsídios às exportações sobre produtos em que o Brasil tem grande vantagem comparativa significam transferir receita para os importadores e consumidores no exterior, e para os tesouros públicos de países estrangeiros que taxam as importações.

Ao amparo da legislação vigente, grandes tradings estrangeiras do agronegócio (como Cargill, Monsanto, ADM, Bunge e Dreyfus) nada recolhem de ICMS no país ao exportar, anualmente, dezenas de milhões de toneladas de grãos e outros produtos. O mesmo ocorre com os minérios: somente a Vale exporta, por ano, centenas de milhões de toneladas de minério de ferro.

Aprovada, a “Lei Kandir” acarretou significativas alterações na legislação do tributo. Talvez a mais importante tenha sido a completa desoneração das operações que destinassem mercadorias ao exterior, alcançando inclusive produtos primários e produtos industrializados semielaborados (art. 3º, II). Ademais, a LC nº 87/96 garantiu aos exportadores o aproveitamento integral do crédito de imposto relativo aos insumos utilizados nas mercadorias exportadas (art. 21, § 2º).

Vale notar que, nesse aspecto, a “Lei Kandir” foi posteriormente “constitucionalizada” pela Emenda Constitucional nº 42/2003, que alterou o art. 155, § 2º, X, “a”, para conceder imunidade do ICMS para toda e qualquer operação de exportação e garantir ao exportador o aproveitamento do respectivo crédito.

A LC nº 87/96 trouxe ainda outras modificações importantes no regime de créditos do imposto. Por exemplo, autorizou o aproveitamento dos créditos relativos: à aquisição de produtos destinados ao ativo permanente da empresa (art. 20, § 5º) e à utilização de energia elétrica e de serviços de comunicação (art. 33, II). A versão original da Lei previa ainda o aproveitamento de crédito de mercadorias destinadas ao uso ou consumo pelo estabelecimento, regra cuja eficácia tem sido constantemente postergada.

6.3. Críticas à Lei Kandir

As exportações brasileiras atingiram patamares elevados nas décadas seguintes à Lei Kandir (ex: US$ 160 bilhões em2007, US$ 160 bilhões em2007, US$ 200 bilhões em 2008). Contudo, desde os anos 90, com a desindustrialização relativa, cresceu a participação conjunta dos produtos básicos (primários), dos semimanufaturados e das commodities industrializadas (com baixo valor agregado) na pauta exportadora, constituindo uma parcela significativa (ex: 60% em alguns períodos).

Se esse conjunto de exportações pagasse ICMS na alíquota média de 15%, a arrecadação adicional seria de dezenas de bilhões de reais por ano. Argumenta-se que a renúncia fiscal favorece interesses estrangeiros, já que produtos como etanol, café solúvel, suco de laranja e minérios com poucas etapas de industrialização são classificados como manufaturados para fins estatísticos, mas se beneficiam da desoneração.

Critica-se também o esgotamento acelerado dos recursos naturais do país (solos agrícolas com monoculturas e uso intensivo de insumos; jazidas minerais estratégicas) para exportação a preços relativamente baixos, sem a devida internalização dos custos ambientais e sociais. Além disso, dado o descompasso entre demanda mundial e oferta de alimentos e matérias-primas, vender esses bens em enormes quantidades e com baixa tributação significaria abrir mão de potenciais ganhos futuros com a valorização desses recursos.

O que precede não resume todas as perdas associadas à exploração dos recursos naturais do Brasil, pois há também o problema do descaminho e contrabando de minérios estratégicos, pedras preciosas e metais. Outra forma de perda ocorre sob o manto das próprias exportações oficiais, pela dificuldade de controle sobre as quantidades e os preços declarados na documentação, problema agravado pela eliminação da valoração aduaneira em acordos internacionais como os da OMC.

Sem gerar proporcionalmente renda e emprego qualificado no país, dilapidam-se recursos insubstituíveis. Os lucros da exportação concentram-se em grandes empresas, muitas transnacionais, alimentando ativos no exterior e no mercado financeiro brasileiro.

De uma maneira geral, a “Lei Kandir” foi inicialmente bem recebida por parte dos estudiosos, pois alinhava-se a dois preceitos da teoria tributária: evitar a exportação de tributos (princípio do destino) e adequar o ICMS ao modelo do imposto sobre valor agregado (IVA), pela ampliação do crédito.

Todavia, não são poucas as ressalvas feitas à “Lei Kandir”. Os Estados exportadores são os mais prejudicados. Concordamos com Kume & Piani (1997) em relação a um segundo aspecto fiscal adverso da “Lei Kandir”: alguns Estados eram fortemente dependentes das receitas de ICMS sobre as exportações de produtos primários e semielaborados, destacando-se entre eles Pará (14,4% da receita de ICMS na época), Amapá (9,5%), Maranhão (7,8%), Pernambuco (7,7%) e Espírito Santo (7,2%).

Como a fixação das compensações financeiras não é realizada de forma estritamente técnica e transparente, esses Estados podem se ver em situação pior do que os demais. Durante o processo de elaboração do orçamento federal, podem ser estabelecidos acordos políticos que resultem em valores de compensação aquém do necessário, esvaziando a rubrica orçamentária destinada a esse fim.

Pior ainda, nem mesmo entre os Estados os critérios do rateio das compensações são transparentes. Pellegrini (2006) mostra que a divisão dos recursos da “Lei Kandir” e do “Auxílio Financeiro” não obedece a critérios puramente técnicos. Há discrepâncias significativas entre a participação dos Estados nas transferências recebidas da União e a participação nas exportações desoneradas. Segundo o autor, os “coeficientes foram definidos por consenso entre os Estados, sem a participação da União. Não é fácil explicar tais escolhas, pois uma variedade de fatores técnicos e políticos devem ter atuado durante as negociações”.

Os recursos repassados aos Estados e Municípios dificilmente chegam a compensar integralmente a perda ou a facilitar o ressarcimento aos contribuintes exportadores. A interface entre as secretarias de Fazenda e os contribuintes do ICMS é sempre muito complicada. Pellegrini (2006) afirma que os Estados “recorreram a procedimentos infralegais e administrativos para restringir a possibilidade de utilização do crédito tributário [acumulado pelos exportadores]. Tal postura, algumas vezes combinada coletivamente no âmbito do Confaz, serve também para pressionar a União a elevar a compensação”.

Há muitos anos o sistema tributário nacional carece de uma reforma profunda e clara que vise a simplificar tanto a cobrança como a regulamentação dos tributos. A Constituição de 1988 reformou amplamente o papel do Estado, mas criou um sistema de financiamento de recursos por vezes insuficiente para as demandas definidas, principalmente pela incompatibilidade entre a repartição de receitas e a atribuição de competências delegadas aos entes federados. Desse modo, o Governo federal, pós-Constituição de 1988, deparando-se com a incapacidade de recursos para financiar a máquina e as demandas sociais, recorreu à criação de tributos não compartilhados, principalmente em forma de contribuições (CSLL, PIS/COFINS, CPMF), justamente para não ter que dividir o fruto da arrecadação com as demais unidades da Federação. Os estados e municípios, que haviam conseguido aparente independência financeira com o aumento das transferências de receitas da União pós-1988 (via FPE e FPM), passaram a sofrer, posteriormente, certa deterioração de suas receitas próprias e transferidas, ao mesmo tempo em que passaram a assumir mais responsabilidades (como nas municipalizações de saúde e educação).

Nesse contexto, em 1996, os estados sofreram um duro golpe com a implantação da Lei Kandir e a perda de arrecadação de ICMS sobre as exportações. Somando-se a estes fatores, observa-se em âmbito nacional o acirramento da competição tributária, mais conhecida como “guerra fiscal”, fazendo com que os estados entrem numa batalha para manter ou aumentar suas receitas com a atração de novos investimentos, acirrando ainda mais o conflito federativo.

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Sobre o autor
Enzio Rodrigo Oliveira Neves

Aluno do curso de Bacharel em Direito da Faculdade Estácio FAP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Artigo apresentado como requisito de avaliação da disciplina monografia, na Faculdade Estácio FAP.

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