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A autonomia contratual da fiança.

Um breve ensaio

01/08/2002 às 00:00
Leia nesta página:

De longa data se verifica rico debate no Judiciário brasileiro sobre os limites da prestação de garantia pessoal, ou fiança. A polêmica é suscitada pela rotina de se inserir, nos contratos de locação, cláusula padrão que impõe a responsabilidade do fiador até a real entrega das chaves, muitas vezes em detrimento do termo final do contrato, quando não à sua revelia, pois comum os ajustes entre locador e locatário ocultos ao conhecimento do fiador. Neste sentido, mesmo não tendo concordado, tácita ou expressamente, com a repactuação locatícia, lhe restava o constrangimento de ser compelido a saldar obrigação fugidia das condições originais a que tinha anuído.

Entretanto, vislumbramos que a fiança, figura contratual plena e independente, sobressai-se àquelas correntes que preferem defini-la como mero acessório da locação, na posição de instituto jurídico submisso a esta. Como que a corroborar nossa interpretação, a Súmula n.º 214 do Superior Tribunal de Justiça, de 02 de outubro de 1998, consagrou o entendimento de que o fiador não pode se responsabilizar por ajuste contratual em que não expressou sua concordância:

"Sumula 214:

O fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu."

No caso que elegemos para ilustrar, de forma prática, esta nossa contribuição aos debates sobre o tema, verificamos, após breve análise, a prorrogação, ainda que tácita, das condições originalmente ajustadas, pois, vencido o prazo de duração do instrumento, ajustado para 12 (doze) meses, continuou o locatário a ocupar o imóvel, sem oposição do locador, e sem que o fiador fosse disso comunicado. Na casuística recolhida sobre o assunto, o entendimento da moderna jurisprudência, extraída do site da OAB/SP, em atendimento aos predicados da Súmula n.º 214 do STJ, é claro e incisivo:

"Ementa: RECURSO ESPECIAL. ALÍNEAS "A" E "C". FIANÇA. CONTRATO PRORROGADO SEM A ANUÊNCIA DOS FIADORES. SÚMULA 214.

1 - O locador perde a garantia da fiança se, inoportunamente, prorroga o contrato por prazo indeterminado sem cientificar o fiador. Súmula 214 do STJ. 2 - Recurso conhecido por ambas as alíneas e provido. Decisão. Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, conhecer do recurso e lhe dar provimento. Participaram do julgamento os Ministros Hamilton Carvalhido e Vicente Leal. Ausentes, por motivo de licença, o Ministro William Patterson e, justificadamente, o Ministro Fontes de Alencar. Acórdão RESP 181212/SP ; RECURSO ESPECIAL(1998/0049713-7) Fonte DJ DATA:06/09/1999 PG: 00141 Relator Min. FERNANDO GONÇALVES (1107) Data da Decisão 19/08/1999 Órgão Julgador STJ T6 - SEXTA TURMA"

Mesmo sendo termo melhor empregado no Direito do Consumidor, que não abrange a locação, o conceito de cláusula abusiva aos poucos sai da seara consumerista e se firma no tradicional Direito Contratual, no sentido de entender exagerada e insidiosa a cláusula que impõe ao fiador a obrigação de responder até a "efetiva entrega das chaves", razão pela qual fazemos coro aos juristas e operadores do Direito que defendem essa interpretação que parece se chocar com o rigor do pacta sunt servanda mas que, em realidade, representa o novo e moderno Direito Contratual brasileiro. Para tanto, destacamos o seguinte precedente jurisprudencial, a corroborar o entendimento já disposto acima, de que a fiança deve se ater aos seus limites convencionais, especialmente os subscritos pelo fiador por ocasião da contratação, e que, sem inovar, consagra a disposição legal que não admite interpretação extensiva da fiança.

"Ementa: CIVIL - RECURSO ESPECIAL - LOCAÇÃO - FIANÇA - EXONERAÇÃO - ART. 1.500 DO CC - CONTRATO POR PRAZO DETERMINADO - RENÚNCIA EXPRESSA.

1 - Não pode o fiador ser responsabilizado perpetuamente por obrigações futuras, resultantes da prorrogação do contrato por prazo determinado, ex vi leges, do qual não anuiu concretamente. Desta forma, pode o fiador, vencido o prazo contratual e por tratar-se de direito disponível, renunciar expressamente de apor sua garantia ao contrato de locação prorrogado.

2 - É impossível a coexistência da cláusula "até a entrega das chaves" com o instituto da prorrogação contratual por força de lei, porquanto, sem anuência do fiador, em virtude de sua renúncia explícita e concreta, cinge-se tal expressão à duração do contrato primitivo, que vigia por tempo determinado.

3 - Ademais, o locador tem o contrato de locação escrito que, apesar de vencido e prorrogado por prazo indeterminado, constitui título executivo extrajudicial.

4 - Precedentes (Resp nºs 45.214/SP, 100.636/SC, 1.756/SP, 61.947/SP, 62.728/RJ, 64.273/SP e 31.565/MG).

5 - Recurso conhecido e provido para, reformando o v. acórdão de origem, julgar procedente a ação, declarando o fiador desonerado da fiança, a partir de sua renúncia expressa, em 03.12.1990, invertendo-se o ônus da sucumbência.

Decisão - Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça em, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, conhecer do recurso e dar-lhe provimento, nos termos acima explicitados. Votaram com o Relator os Srs. Ministros JOSÉ ARNALDO, FELIX FISCHER e GILSON DIPP. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro EDSON VIDIGAL.

Acórdão RESP 121744/RJ ; RECURSO ESPECIAL(1997/0014743-6) Fonte DJ DATA:06/12/1999 PG:00107 Relator(a) Min. JORGE SCARTEZZINI (1113) Data da Decisão 21/09/1999

Orgão Julgador STJ T5 - QUINTA TURMA"

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Os entendimentos jurisprudenciais acima esposados implicam, ao nosso ver, no reconhecimento, ainda que velado, da autonomia da figura contratual da fiança, pois, ao isolar seu núcleo obrigacional – garantia de prestação devida por terceiro – impondo-lhe obrigatoriamente condição resolutiva – cumprimento do prazo ajustado ou novação sem anuência do fiador quando, por exemplo, a locação é prorrogada sem que este seja alertado – a fiança se liberta do conceito de obrigação acessória, ou seja, aquela que existe somente em função de uma obrigação principal, atingindo a doutrina que leciona a manutenção da acessória enquanto subsista a principal.

Por último, ao vedar e combater a perpetuidade da obrigação do fiador em responder pelo afiançado, especialmente quando o contrato foge de suas condições originais, valorizam os magistrados nada mais que os predicados da função social do contrato e da boa-fé contratual, eleitos pelo legislador, nos arts. 421 e 422 do Código Civil de 2002, como principais diretrizes, ao lado de outras já consagradas, do novo Direito Contratual do século XXI, objetivando o contrato, além da circulação de riquezas inter pars e da estabilidade jurídica das convenções negociais, o progresso da sociedade. O velho adágio dar a cada um o que é seu torna-se, de certa forma, preceito de direito objetivo, numa evolução e afirmação que dependerá de todos os operadores do Direito para se consolidar e se efetivar.

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Sobre o autor
Orlando Guimaro Junior

Membro consultor da Comissão de Acompanhamento Legislativo da OAB/SP. Presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/Piracicaba. Pós-graduado em Direito Contratual (PUC/SP). Sócio da Borges Neto e Barbosa de Barros – Sociedade de Advogados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARO JUNIOR, Orlando. A autonomia contratual da fiança.: Um breve ensaio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3158. Acesso em: 26 abr. 2024.

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