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Da relativização da coisa julgada

07/01/2015 às 08:50
Leia nesta página:

Como acreditar que a segunda decisão seja efetivamente mais justa que a primeira e não mais injusta ainda?

A coisa julgada, como é sabido, trata-se da forma técnica e meio jurídico pelo qual uma decisão torna-se definitiva, ou seja, não pode ser modificada por recursos, rediscutida ou alterada. Não se trata propriamente de um instrumento de justiça, mas sim de transmissão da segurança jurídica aos julgados, ao passo que evita o ingresso de novas demandas idênticas, levando ao caos das discussões sem fim.

A coisa julgada material constitui garantia fundamental incrustada no art. 5º, XXXVI, da Carta Magna. Além disto, ganha caráter de cláusula pétrea, conforme dispõe o art. 60, §4º, IV do mesmo diploma legal.

Porém, em certos casos específicos, os tribunais têm relativizado o conceito de coisa julgada em razão da aclamada e almejada: Justiça.

Entra em campo, então, a batalha entre dois valores de imensa importância em nosso ordenamento jurídico: a segurança jurídica x justiça.

Hiroshi Harada, em sua obra, Relativização da coisa julgada. Artigo jurídico disponibilizado no portal Jus Navigandi em 04.2011 expõe que “a coisa julgada material constitui uma garantia fundamental (art. 5º, XXXVI, da CF), protegida em nível de cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV, da CF), sendo elemento estrutural do princípio de acesso ao Judiciário para efetivação do direito (art. 5º, XXXV, da CF) que, por sua vez, é inerente ao Estado Democrático de Direito, nos termos proclamados no art. 1º da Constituição Federal”.

Em tempo, relativizar é retirar o caráter absoluto de algo, tornando-o relativo.

No caso em estudo, relativizar a coisa julgada é retirar sua imutabilidade em prol de eventual grave injustiça ou inconstitucionalidade. Na prática, corresponde à ampliação do rol de aplicação da Ação Rescisória, apresentada nas hipóteses taxativas do art. 485 do Código de Processo Civil, in vebis:

Art. 485 - A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:

I - se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;

II - proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente;

III - resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;

IV - ofender a coisa julgada;

V - violar literal disposição de lei;

VI - se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória;

VII - depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável;

VIII - houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença;

IX - fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa.

§  - Há erro, quando a sentença admitir um fato inexistente, ou quando considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido.

§  - É indispensável, num como noutro caso, que não tenha havido controvérsia, nem pronunciamento judicial sobre o fato.

Neste contexto, parte da doutrina entende que a decisão judicial não pode permanecer imutável quando for injusta ou inconstitucional. Ao passo que nestes casos, poderia ser revista a qualquer tempo por critérios e meios atípicos.

No que tange o parâmetro para “grave injustiça”, muito temos a considerar. Ora, em primeiro lugar, na prática judiciária, a parte vencida poucas vezes se convence de que sua derrota foi justa. Ainda, nem sempre a decisão proferida coincidirá com o ideal de justiça da população.

A justiça é algo que sempre será um ideal a ser alcançado, algo que até hoje nunca fomos capazes de atingir. Ou seja, falar em relativização da coisa julgada utilizando por sustentáculo o conceito de uma decisão injusta, nunca trará a justiça em sua plenitude, ao passo que uma decisão justa aos olhos de alguém, não é necessariamente justa a outro alguém.

E se isto a é verdade, quem definirá melhor o conceito de justiça? A própria teoria da relativização não traz uma ideia formada do que seria justiça. Mesmo porque, não há como limitá-la sem ir de encontro ao princípio da estabilidade das relações jurídicas.

Conforme Luiz Guilherme Marinoni, admitir a ocorrência de uma injustiça será afirmar que o Estado- Juiz errou num julgamento que se cristalizou, e obviamente implica aceitar que o Estado-Juiz pode errar no segundo julgamento, quando a ideia de ‘relativizar’ a coisa julgada não traria qualquer benefício ou situação de justiça”. (MARINONI, Luiz Guilherme. “O princípio da segurança jurídica dos atos jurisdicionais - a questão da relativização  da coisa julgada material”. Relativização da coisa julgada – enfoque crítico. Fredie Didier Jr. (org.). 2 ed. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 163.).

Ora, se houve um primeiro erro, como esperar que o segundo julgamento alcance o ideal acreditado por todos? Como acreditar que  a segunda decisão seja efetivamente mais justa que a primeira e não mais injusta ainda? Assim, abrir um novo julgamento da causa, com exclusivo fundamento de que o anterior foi injusto, mostra-se muito perigoso.

É justamente a par deste entendimento que a questão da relativização envolve tamanha dificuldade, já que a busca incansável pela justiça se choca com o princípio que rege a estabilidade das relações jurídicas – o princípio da segurança jurídica.

Porém, em certos casos específicos, os tribunais já vêm aceitando a relativização. Um exemplo a ser citado ocorreu no julgamento do processo nº 363.889, no qual o Supremo Tribunal Federal concedeu a um jovem o direito a propor nova ação de investigação de paternidade para realizar um exame de DNA, mesmo havendo anterior sentença transitada em julgado.

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Naquela ocasião, o instituto da coisa julgada não fora aplicado de forma imutável, nos termos do art.60, § 4º, IV, da Constituição Federal, aplicando-se a relativização em nome do princípio constitucional da dignidade humana, vez todo indivíduo tem direito de saber se é ou não é o pai biológico de uma criança.

Por tudo isto, entendo que a imutabilidade das decisões judiciais cobertas pela coisa julgada é, em princípio, a regra geral e deve ser respeitada. Porém, excepcionalmente a relativização da coisa julgada é possível à vista da análise de um conjunto de argumentos e sopesada com valores de imperativa relevância, sejam previstos na Constituição Federal ou para resguardar questões sagradas e inerentes à dignidade da vida humana.


REFERÊNCIAS

MARINONI, Luiz Guilherme. “O princípio da segurança jurídica dos atos jurisdicionais (a questão da relativização  da coisa julgada material)”. Relativização da coisa julgada – enfoque crítico. Fredie Didier Jr. (org.). 2 ed. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 163.

HARADA, Hiroshi. Relativização da coisa julgada. Artigo jurídico disponibilizado no portal JusNavigandi em 04.2011.

Relativização da coisa julgada, Google. Disponível em <http://jus. com.br/artigos/18940/relativização-da-coisa-julgada> acesso em 25 de maio de 2014.

DIDIER Jr, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol 2. 5ª ed: jusPodivm, 2010, p. 443.

MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo, 3ª ed: Revista dos Tribunais, p. 447.

Resp nº 1110578/SP, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 21-5-2010; AgRg nº 958.908/RS, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJe de 24-2-2010; EResp nº 435.835/SC, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, Rel. p/ acórdão Min. José Delgado, DJ 4-6-2007; AgRg no Ag. nº 803.662/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, DJ de 19-12-2007.

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Sobre a autora
Ingryd dos Santos Mousse

Pós-graduanda em Direito Processual Civil pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus. Bacharel em Direito pela Universidade Nilton Lins. Atualmente atua como Advogada do escritório jurídico Andrade & Câmara Advogados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOUSSE, Ingryd Santos. Da relativização da coisa julgada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4207, 7 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31616. Acesso em: 20 nov. 2024.

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