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Cidadania tutelada

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19. Já se faz necessário encerrar esse nosso "dizer" sobre a "cidadania", e fazê-lo tentando uma síntese de nosso pensamento e uma sua justificação última.

Entendemos que a ordem social não é imposta aos homens como a ordem natural, e nos mesmos termos. Se esta última nós buscamos "conhecê-la" para ajustar-nos a suas leis ou usarmos essas leis em nosso proveito, a primeira nos cabe "construí-la", o que envolve um fazer "com sentido" e "com significação", donde a necessidade de "compreendê-la". Em que pese essa diversidade, não desprezível, ambas as ordens nos "submetem", pelo que se fala, inclusive, em "segunda natureza", quando se menciona a ordem social.

No tocante à primeira natureza (ordem natural) o nosso conhecimento é impotente para modificar a realidade e se inadequado esse conhecimento, nosso comportamento pessoal e social é que sofre as conseqüências, em termos de resultados, permanecendo a realidade sendo o que é. Por exemplo: os homens acreditaram ser a Terra plana. Esse "conhecimento" não fez a Terra plana, mas limitou o horizonte dos homens por muitos séculos. Já no tocante à segunda natureza, também nosso "prescrever" é impotente para conformá-la, como é impotente o nosso "descrevê-la´ ´, visto como o sentido e a significação lhe são inerentes e transcendem o cognitivo. Assim, o nosso "dizer" sobre ela afeta-a quase nulamente, e se não no mesmo grau absoluto, como ocorre no tocante à primeira natureza, de modo acentuado, a ponto de não gerar conseqüências relevantes e duradouras.

Nesses termos, o "prescrever" jurídico, ainda quando privilegiadamente sancionado, é alienador e desfuncional quando formalizado sem atendimento à realidade social que busca ordenar, em termos de eliminação impositiva de conflitos, ou de desencorajamento de resistência.

A par disso, tão presente quanto essas "duas naturezas" e tão e "dominador" quando elas, o poder, máxime em sua expressão macro - o poder político, a que está associado ineliminavelmente o direito.

O poder não e uma substância, algo que se detém, mas uma relação, que corno todas as relações sociais institucionalizadas se fazem representar pelos homens, mediante sua incorporação em papéis, e se tornam mortas se não vivificadas na conduta humana real. Destarte, também aqui, o dizer sobre o "poder", inclusive o poder político, é de todo impotente para direcioná-lo, determiná-lo ou lhe por limites. Assim sendo, as "instituições políticas" como as demais, somente "são" na medida em que efetivamente são representadas, quotidianamente, por atores sociais que internalizaram seus respectivos papéis.

A cidadania é uma dessas realidades insuscetíveis de serem plasmadas a partir do "discurso" sobre elas, e só se consubstanciam quando representadas efetivamente por atores sociais reais. A cidadania é uma das expressões do poder político, é o poder de controle do governado sobre seus governantes, e esse poder não pode resultar, jamais, do "dizer" sobre ele, como visto, mas de sua existência e inequívoca, como fato, no conviver político quotidiano, institucionalizado, substancialmente, não apenas formalmente (inadequado falar-se de "instituição" do ponto de vista estritamente formal).

Somente se pode falar de cidadania, em sua plenitude, quando a todo indivíduo, por força dos seus vínculos com determinado Estado, são assegurados direitos de participação (políticos) direitos de autodeterminação (direitos civis) direitos a prestações que favoreçam a igualdade substancial entre todos (direitos sociais) e tais direitos sejam garantidos, institucionalmente, de modo eficaz.

Essa "cidadania plena" é mais um "ethos" que uma realidade, donde poder-se falar em "gradações" de cidadania, mais ou menos restritas, mais ou menos tuteladas.

Cidadania tutelada seria aquela formalmente reconhecida mas substancialmente enfraquecida pelo acentuado grau de incapacitação da vontade do governado levada a cabo pelos governantes.

Não só incapacitações "diretas", juridicamente institucionalizadas, mas principalmente as incapacitações indiretas, mascaradas "ideologicamente" e que resultam do "não saber" e do "depender" dos indivíduos.

A Cidadania institucionalizada formalmente pela Constituição de 1988 foi uma forma acentuada de "cidadania tutelada" porquanto, o enunciada formalmente de um modo superabundante, organizou-se o poder político de molde a não sofrer nenhum tipo de controle social efetivo em condições de limitá-lo, fiscalizá-lo ou direcioná-lo.

Mais grave, ainda. Nossa sociedade "fragmentária", por força se do impasse político havido quando da fase constituinte, encontrou um terreno favorável para institucionalizar um "arquipélagos", de autonomias, estando hoje o chamado cidadão brasileiro, em verdade, ao sabor do jogo das paixões e da necessidade de afirmação de um sem número de segmentos corporativos, que buscam "mostrar serviço" de modo anárquico e desfuncional, pretendendo com isso justificar os privilégios que se atribuíram.

Porque a cidadania plena, efetiva, jamais pode ser dada ou outorgada, mas só é alcançável pela luta e pelo empenho dos próprios indivíduos interessados, todo esse "paternalismo" institucional desmobiliza, enfraquece a efetiva construção, entre nós, de uma democracia a partir das bases, vale dizer, uma democracia real.

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Faz-se urgente abdicar a "intellegentsia", comprometida com interesses corporativos, de seu discurso "progressista" hipócrita, enfrentando-se a dura realidade de que sem abolição de privilégios não há cidadania e tais privilégios não podem ser legitimados nem mesmo com o "compromisso moral" dos privilegiados de exercitarem seus privilégios "em estado de santidade cívica", podendo o povo brasileiro confiar que, sendo Deus brasileiro, construiremos do nossa democracia sem necessidade de emancipar-se o povo, organizarem-se os indivíduos, eliminarmos todos os senhores padrinhos, salvadores, profetas e guias, carismáticos ou não.


20. Gostaria de concluir com duas narrativas simbólicas recolhidas do passado.

OVÍDIO, poeta latino, nas suas "Metamorfoses reescreveu a versão da mitologia grega sobre Pigmalião, rei que se apaixonara por uma estátua, e fê-lo um escultor que modela, com suas mãos de gênio, a estátua da mulher que para ele encamava o ideal da beleza feminina, e o faz com tanto empenho e tanta perfeição que termina por se apaixonar perdidamente por ela. Vênus, tocada por tanto amor, intercede em favor de Pigmalião e dá vida à estátua. E Galatéia - o nome dado à mulher nascida da escultura - fez-se símbolo de tudo quanto tem na força do amor a sua fonte de vida.

Ao lado desse episódio, recordarei um outro, não mitológico, mas anedótico, que se afirma ocorrido nos dias do renascimento europeu. Conta-se que MIGUEL ÂNGELO, ao terminar de esculpir o seu "Moisés", sentiu a obra tão perfeita que, num impulso incontido, fustigou-a, imprecando: "Fala, por Deus!"

Duas atitudes que parecem opostas. Aqui, MIGUEL ÂNGELO admira a si próprio na sua obra. Quer que Moisés fale não para que se revista da condição humana e assuma sua autonomia corno tal, sim para que possa testemunhar-lhe o gênio, seja o sacramento do seu criador. Exalta-se MIGUEL ÂNGELO na sua própria obra, que permanecerá estátua "que fala", mas apenas estátua, algo criado por ele e dele dependente.

Com Pigmalião, tudo é diferente. Ele quer a vida para a sua estátua a fim de que seja plenamente mulher na plenitude da beleza que seu amor nela infundiu. Quer vê-la viva para poder amá-la, dar-se a ela em plenitude, o que só será possível libertando-a da "servidão da pedra esculpida". Não quer vê-la falante, para que proclame o gênio de seu criador, mas viva para fazê-la objeto do seu culto amoroso.

Podemos ser politicamente, para os outros, em nosso empenho "revolucionários" ou em nosso compromisso "progressistas" MIGUEL ÂNGELO ou Pigmalião. Os MIGUEL ÂNGELO paternalistas e populistas, justificando-se pelo compromisso de serem os "advogados do povo", os seus "salvadores", os seus "protetores, guias e arautos". Os Pigmalião, ao contrário, sabem que não podem emancipar ninguém se não liberam o outro de toda dependência, se não lhe conferem vida própria, plenamente, e fazem-no para que possam vê-los "trazidos à vida" para fazê-los objeto do seu amor.

Infelizmente muitos sabemos e queremos ser MIGUEL ÂNGELO (o orgulho satisfeito) mas poucos queremos e quase nenhum de nós sabe ser Pigmalião (a renúncia prazerosa). E isso é possível, não só em termos individuais, (insuficiente) mas por igual em termos político-institucionais, se nos convencermos algum dia de que há realmente "uma espécie humana" e a sobrevivência só estará assegurada quando alcançar os "homens" não a mim apenas e aos meus comparsas.


Notas

1 A vida do espírito - O pensar, o querer, o agir - Ed. Relume- Dumari / UFRJ, pg. 37.

2 PETER L. BERGER e THOMAS LUCKMANN - A construção social da realidade - Ed. Vozes, Cap. II.

3 CORNELIUS CASTORIADIS - O mundo fragmentado - Encruzilhada do labirinto - pgs. 122/23.

4 BERGER e LUCKMANN - ob. loc. cit., e ZIGMUNT BAUMAN, Por uma soeiologia critica - pgs. 110. e segs.

5 Castoriadis - ob. cit. pg. 126.

6 GERARD LEBRUN - O que é o poder? - Ed. Brasiliense, pg. 21.

7 Ver, por exemplo, DIOGO FIGUEIREDO MOREIRA NETO, Direito da participação política - Ed. Renovar, pg. 21. e segs.

8 ADAM PRZERWORSKI, Ama a incerteza e serás democrata, Novos Estudos Cebrap, nº 9, julho de 1984, pgs. 36. e segs.

9 Droit, Constitutionel et Institutions Politiques, 7ª ed. pgs. 172. e segs ANDRE HAURIOU et JEAN CIQUEL.

10 Com abordagem mais abrangente, nosso trabalho sobre a legitimação extraordinária dos Sindicatos, publicado no Vol. 6. dos ´´Estudos Jurídicos´´ do IEJ.

11 ERNST FORSTHOFF - El. Estado Social - Ed. Centro de Estudios constitucionales - pg. 46.12. Cultura e democracia - o discurso competente e outras falas - Ed. Contemporânea - pgs. 11/13.

13 Pobreza política - Ed. Cortez / Autores Associados, pg. 18.

14 FORSTHOFF, ob. cit. pgs. 47. e segs.

15 Soberania popular como procedimento Novos Estudos Cebrap, n., pgs. 107. e segs.

16 Apud. KARL LARENZ, Metodologia da ciência do direito - Ed. Fundação Calouste Gulbenkian - pgs. 130/131 e EUGÊNIO RAUL ZAFFARONI. Em busca das penas perdidas, Ed. Revan, pgs. 193/194.

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Sobre o autor
José Joaquim Calmon de Passos

Falecido em 18 de outubro de 2008. Foi advogado e consultor jurídico em Salvador (BA), coordenador da Especialização em Direito Processual da Universidade Salvador (UNIFACS), professor catedrático de Direito Processual da Universidade Federal da Bahia (aposentado)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PASSOS, José Joaquim Calmon. Cidadania tutelada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. -335, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3196. Acesso em: 23 nov. 2024.

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