Crítica e Resenha - Psicologia Jurídica.

Temas de Psicologia Jurídica - Leila Maria Torraca de Brito

20/09/2014 às 14:37
Leia nesta página:

Estudo baseado no livro “Temas de Psicologia Jurídica” de Leila Maria Torraca de Brito. Nele é possível adquirir uma visão mais amplificada da utilização da Psicologia jurídica dentro da aplicação do Direito.

Os Primórdios da Psicologia Jurídica

O principio subjacente ao Direito moderno é a universalidade do homem nele representado – sujeito da razão, livre e igual aos demais seres humanos. Esse principio, de certa forma, sinaliza a resultante daqueles movimentos que dos detentores da Idade Media ao século XVIII, vão constituindo o ideário liberal da sociedade burguesa.

O Direito moderno de uma forma geral aponta a igualdade dos homens. Visão esta adquirida de forma mais enérgica com a eclosão da grande Revolução. É verdade que esta nova forma de pensar não ocorreu de forma simples e instantânea, ela foi preparada a duras custas e por um período de tempo considerável.

Explicitando melhor esta proposição: encontramos na Idade Media uma visão de mundo holista, totalizante, em que a religião enquanto valor encompassa as demais esferas da vida. A representação de homem nesse mundo era, portanto, subjugada a rede de relações sociais em que cada um estava inserido, ou seja, a identidade pessoal se constituía a partir dos espaços sociais – os estamentos, a família, a comunidade – ocupados por cada um. A identidade, neste sentido, se situava em termos das posições relativas (nobre, servo, pai, filho, artesão...) isto, é, era demarcada pela diferença.

O homem possui, seja pela educação secular ensinada desde os primórdios, seja por uma questão biológica, a necessidade de ser diferente, possuir uma identidade própria, que seja reconhecida e respeitada, por consideração ou por medo.

O processo de fragmentação desse mundo holista relacional – processo especifico das sociedades ocidentais modernas – se constitui com as novas explicações para esferas do mundo humano, explicações que superam o significado exclusivo ate então dado pela religião. Assim, são momentos importantes, nesse longo período de transição, a revolução cientifica de Galileu (a descoberta das leis da natureza pela observação e experimentação, ou seja, não mais a verdade revelada pelas Autoridades da igreja), a expansão do capitalismo – de sua face mercantil para a industrial implicando nova forma de organização do trabalho, agora “racional” – a reforma protestante, principalmente em sua proposição da liberdade da consciência, e por fim, as revoluções políticas que embora ocorrendo em períodos diferentes (a inglesa no século XVII, a americana e a francesa no século XVIII), explicitam uma nova visão de homem: aquele que tem como Direitos naturais a igualdade e a liberdade.

A evolução do Direito este intimamente ligado a evolução da sociedade. Neste ponto me cabe um questionamento: Como poderemos permitir que valores sejam visivelmente considerados elevados dentro de nossa geração e de gerações anteriores, sejam modificados ou ate mesmo eliminados de uma “nova sociedade”? Refiro-me a valores necessários para uma convivência em harmonia e o mínimo de respeito.

O mundo moderno, portanto, surge como quebra da tradição embasada na religião. Neste mundo não há mais posições estáveis, fixas; é um mundo em movimento – seu grande símbolo são exatamente as grandes navegações, rompendo com as amarras que, no universo feudal, cerceavam o homem. TOCQUEVILLE sintetiza brilhantemente esta grande transformação “A aristocracia fizera de todos os cidadãos uma longa cadeia que subia do camponês ao rei; a democracia desfaz a cadeia e poe cada elo a parte” 1977: 387.

Nesta citação é demonstrada a evolução de uma forma de pensamento que mantinha uma sociedade dentro de uma redoma de opressão não permitindo o seu crescimento e evolução.

É bom ressaltar que este processo não ocorreu de forma linear e simples, como a descrição sucinta acima pode dar a entender. As analises sobre este período apontam complexidades e contradições a que não se faz referencia, pois o objetivo, aqui é apontar para uma visão de mundo regularmente associada à sociedade ocidental moderna, cujo eixo central é o individualismo. Ou seja, não mais a perspectiva do homem definido pelas posições que ocupa, mas a presença do individuo, ser moral, independente, autônomo, senhor do livre arbítrio. Este é o sujeito jurídico, o cidadão portador da razão, cuja interação com outros – igualmente indivíduos – não se regula mais por uma ética vinculada à religião e por relações familiares ou de grupos na comunidade tradicional. Senhores da razão, os indivíduos agora se associam, estabelecem contato em sociedade.

A evolução da sociedade e do Direito acontecem de forma cíclica, e as modificações tendem a serem consideradas como se fossem sempre existentes, pois a nossa analise se baseia – na maior parte das vezes – em nossa experiência (o julgamento tendencioso?) e nosso momento, ignorando o contexto histórico.

Esta concepção de individuo, então, se apresenta como uma das redescobertas da natureza humana:

O individuo livre e igual é, portanto, parte da natureza. Uma natureza, porem, desencantada, desligada de qualquer cosmologia religiosa, cujas leis de funcionamento são, por isso, passiveis de serem compreendidas e desvendadas pela razão humana. (...) o individuo-cidadao é sujeito da razão em dois sentidos – porque esta, enquanto homem natural, submetido (sujeito a) razão (pois é compreensível através dela) e ao mesmo tempo sujeita o mundo (e a si próprio) através da razão. Esta, na verdade, será à base de sua autonomia. Livre arbítrio e razão se interligam de forma inextricável (RUSSO, 1997: 13).

O lema da Revolução Francesa sintetiza a resultante deste processo em que as luzes se contrapõem a tradição. Com a razão, o liberalismo e o individualismo se firmam como princípios de organização política e econômica, de organização da vida em sociedade. Entretanto, estes princípios se vêem em contradição com a vida social marcada por profundas desigualdades e injustiças. A afirmação da igualdade – intrínseca a natureza humana redescoberta – produz a necessidade de se pensar nas diferenças existentes.

As alterações ocorridas no cenário mundial a partir de 1740 em especial a Revolução Francesa, mostram a necessidade de se pensar de outra forma da que ate então era pratica, dever-se-ia pensar tornando possível considerar as diferenças dos homens, de cultura.

O romantismo alemão é uma dessas alternativas, ao sublinhar a secularização, uma desigualdade sinalizadora do que é próprio, peculiar de cada um. Engendra-se assimuma concepção de que mesmo garantida à igualdade jurídica, se pode apontar a diferença, situada então, em outro plano na interioridade. SIMMEL (1971) denomina uniqueness (individualismo qualitativa) essa visão romântica, em contraposição a singleness, o individualismo quantitativo, iluminista, baseado no ideário de liberdade e igualdade.

O romantismo alemão acaba por penetrar de uma forma direta na questão do individuo e como o mesmo compõe a sociedade.

Se esta singularidade romântica se apresenta principalmente nas artes (o gênio sendo seu grande símbolo), rapidamente ela se espraira para outras esferas. Como, porem retornar a diferença, sem macular a redescoberta da natureza humana? A biologia fornece a resposta: não mais a diferença centrada nos vínculos comunitários e religiosos presentes na tradição, mas uma diferença que também ela faz parte da natureza. São, portanto dois os entendimentos de natureza: como razão, afirma a igualdade dos homens que lhe propicia construir a vida em sociedade; por outro lado aponta uma desigualdade que se situa aquém da sociedade, que é biológica, pertence ao “organismo humano”.

...

Não é somente esta concepção que decorre da primazia do conhecimento biológico do século XIX. Um dos conceitos que então emerge é o de raça que embora denote a herança de características físicas pertencentes aos diferentes grupos humanos no contexto de reação ao ideário iluminista aproxima-se muito do conceito de povo, acrescentando-se o conceito darwinista de seleção natural, forma-se um caldo propicio não só a afirmação da diferença – biologicamente determinada – como a hierarquização das diferentes raças, justificativa para o domínio ocidental, do homem branco, sobre os povos primitivos.

O surgimento da forma de manter uma “diferença” entre os homens, fruto da necessidade de ser único, exclusivo – através da resposta da Biologia, fez com que a organização da sociedade seja realizada utilizando-se dos conceitos darwinistas, talvez ate mesmo com uma dose de agravamento da diferenciação das classes no novo conceito de sociedade.

Se a biologia procura explicar aquilo que esta aquém da sociedade, é pré-societario, é possível então que explique também os comportamentos humanos. São desta época tanto a frenologia de Galton – interpretação da capacidade humana (caráter, funções intelectuais) através do tamanho e conformação do crânio – quanto à antropologia criminal com Cesare Lombroso argumentando ser a criminalidade um fenômeno hereditário, passível de ser reconhecido pelas características físicas do individuo.

A frenologia surge como uma necessidade de simplificar o controle social através da tipificação dos homens, considerando padrões como sendo a verdade absoluta.

A psiquiatria, sabe sobre a loucura que se instaura a partir da pratica clinica só século XVIII – principalmente com Phillipe Pinel dentro de um espírito Iluminista – adere ao longo do século XIX aos novos tempos – assim como a frenologia fornece justificativa para os tratamentos morais então empregados, as teorias da degenerescência procuram estabelecer ligação entre a loucura  individual e a degeneração racial. A degeneração é então a categoria medico-moral  por excelência, conforme DELGADO:

A degeneração responde a exigência de uma explicação sobre as causas das enfermidades mentais, fornecendo uma chave etiológica capaz de englobar tanto as doenças nitidamente orgânicas como os distúrbios morais. Supera a exigência de identificação da base orgânica da doença alojando as causas numa constituição ora visível, ora invisível e que atravessa gerações. Estabelece (...) uma nova semiologia, dos estigmas, capaz de ver os fatos morais e marcas físicas os sinais da anomalia constitucional. (...) E, principalmente, permite i transito fácil e eficiente de valores e categorias do corpo e da alma, da fisiologia e do comportamento, na clinica e nosologia de alienação (1992 : 80-81).

Se a degeneração tem suficiente valor explicativo da causalidade dos distúrbios morais, ela pode então explicar os atos desviantes da norma social. Na disputa entre os saberes medico e jurídico (cujo primeiro embate relatado provavelmente foi o caso Pierre Riviere) assise-se a uma psiquatrizacao do crime: a verdade jurídica é obtida pelo exame do criminoso (FOUCAULT, 1996), pelo escrutínio de suas motivações e intenções em que o testemunho do ato criminoso e transforma em peca secundaria frente ao conhecimento especializado, que sabe mais sobre as potencialidades de cada um. O Direito Clássico, que se fundamenta na universalidade da razão, compreendendo o crime como decorrente do livre arbítrio do individuo – motivo pelo qual este pode (e deve) ser responsabilizado pelo seu ato delituoso – perde espaço para o Direito Positivo, para o questionamento da autonomia do individuo, de sua capacidade de se autogovernar e de determinar a sua vontade.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

...

Se nos detivermos ate aqui nas inter-relações entre psiquiatria e Direito, é porque este é o terreno inicial da nossa problemática: a psiquiatria, enquanto saber e pratica sobre a loucura, se constitui como disciplina autônoma (dentro do campo maior da medicina) muito antes da Psicologia. Como descrevemos acima, no século XIX a crise da razão – isto é, a necessidade de justificar a desigualdade existente entre os iguais – é acompanhada pela resposta romântica da singularidade, da interioridade. Emerge também o que FOUCAULT (1977) denomina disciplina – o exame, a medida, a analise, a classificação, enfim os diferentes dispositivos organizativo-administrativos que individualizam os homens: “As luzes que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas” (p195).

...

É neste contexto que surgem as ciências humanas, entre elas a Psicologia. Suas fronteiras, ainda tênues situam-se entre a filosofia e a biologia, entre a norma e a função. Se a consciência do individuo, autônomo, dono do livre arbítrio e, portanto capaz de se autogovernar de acordo com as regras do contrato social, é o principio da unidade do individuo, não é, todavia uma totalidade fechada. Nela estão presente diversos processos – sensitivos, perceptivos, emocionais e volitivos – que cabe a Psicologia estudar: Não é como uma simples entidade, mas como uma unidade ordenada de muitos elementos que a mente humana se apresenta (Wundt, apud RIEBER, 1980: 177).

...

Wundt é um dos nomes mais conhecidos da Psicologia, principalmente por sua responsabilidade na criação do primeiro laboratório de Psicologia experimental em 1879 em Leipzig, laboratório que serviu de modelo a muitos outros que posteriormente surgiram em países europeus, EUA e no Brasil. Entretanto é importante ressaltar que para ele, a Psicologia era uma ciência dupla: experimental, na medida em que estuda as atividades mentais inferiores; social ao investigar os processos mentais superiores através da analise dos produtos históricos da mente humana. Este segundo entendimento é comumente esquecido na historia oficial da Psicologia, reduzindo-se a proeminência de Wundt a criação do laboratório e da Psicologia experimental que la iniciou seu desenvolvimento. No jogo de verdades da constituição do saber psicológico, esta foi a vertente vencedora.

...

Assim, a Psicologia inicia a sua trajetória cientifica através do estudo experimental dos processos psicológicos, os elementos da mente. Seu objeto, portanto é bem diferente da psiquiatria – não a loucura e sua imbicacoes com a razão, mas a analise daqueles processos comuns a todo ser humano (o universalismo) procurando estabelecer as condições normais, ideais de seu funcionamento e aquelas outras condições que determinam seu aparecimento diferenciado. Percepção, associação de idéias, memória, motivação, tempo de reação, etc. são múltiplos os processos submetidos à verificação experimental.

...

Com a acumulação desse saber, é possível sair do espaço restrito do laboratório, mantendo-se suas regras de funcionamento. Os testes indicam o prescindir dos instrumentos de que se achavam dotados os laboratórios (mecânicos e elétricos) transformando-se em testes de lápis e papel, cuja facilidade de aplicação – tanto em termos de local quanto em relação à quantidade possível de pessoas testadas ao mesmo tempo – faz com que se tornem a técnica privilegiada de produção dos saberes e praticas psicológicas.

...

É através deste instrumento que a Psicologia se aproxima do Direito, sem deslocar a psiquiatria. Não se trata então aqui da loucura, mas, por exemplo, da fidedignidade do testemunho, questão para qual é importante o conhecimento da percepção, da motivação e emoção, do funcionamento da memória, do mecanismo de aquisição de hábitos, do papel de repressão.

...

FOUCAULT (1996), ao historiar a verdade segundo as formas jurídicas de sua constituição, destaca primeiramente a prova que MIRA y LOPEZ descreve em seu clássico Manual de Psicologia Jurídica (1945), ao comparar os antigos julgamentos persas com os métodos atuais de exame através de diferentes testes – seguida do testemunho daquele que viu e por ultimo o exame, a avaliação psicológica do criminoso. A Psicologia do testemunho, historicamente a primeira grande articulação entre Psicologia e Direito, demonstra a psicologizacao que se encontra em curso: não só o criminoso deve ser examinado, mas também aquele que vê e relata aquilo que viu – que processos internos estarão propiciando ou dificultando a veracidade do seu relato?

...

Entretanto, a psicologizacao não é só do Direito, em sua vertente do Direito positivo. Com ênfase na singularidade e na interioridade, herança do romantismo e a existência de múltiplos e fragmentados possíveis sistemas de ordenação do mundo, o individuo moderno busca cada vez mais dentro de si as certezas e os significados para a sua vida. para isto, recorre ao especialista, ao encarregado do cuidado da subjetividade.

...

A questão que permanece, neste momento de expansão da área de Psicologia jurídica para alem da justiça criminal, envolvendo principalmente família, infância e adolescência, refere-se à maneira como o psicólogo aceitara/atuara frente a este encargo: será estrito ao avaliador da intimidade, aperfeiçoando seus métodos de exame? Ou lembrar-se-á que este sujeito-singular também é um sujeito-cidadao, cujos Direitos e deveres se constituem no espaço publico, território onde perpassam outros discursos e praticas que não o exclusivamente psicológico?

A Psicologia no auxilio do Direito tem a função de penetrar nas questões que formam a psique do homem, não tratando de uma forma positivada, padronizada como a Psiquiatria o faz (não querendo apontar a ineficiência desta, mas mostrando que o ser humano é um ser dotado de experiências e inteligências distintas) englobando desta forma a totalidade verdadeira do individuo.

Fica claro que a Psicologia Jurídica acaba por atuar, seja de maneira natural ou forcada, dentro do campo da saúde mental do individuo, realizando uma analise critica e quantitativa deste. Acredito que uma ação única e exclusivamente “de promover um veredito” não seja a mais adequada, pois desta forma, regredimos a um período em que o individuo não era um individuo.

É bem verdade que a atualidade tem como foco o individuo como ser único e exclusivo, porem estamos vivendo o lado extremo da balança, onde o individuo pode tudo e não deve nada. Esta tarefa de apontar os limites do coerente do individuo e conseqüentemente a sociedade cabem em grande parte a Psicologia e ao Direito.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Rafael Antonio Pinto Ribeiro

Amante da (boa) política. <br>Membro do Observatório de Direito Penal Econômico da Universidade Positivo.<br>Membro integrante do Conselho de Ética e Pesquisa do Instituto de Pesquisas Sociais Econômicas do Paraná

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos