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Função social do processo

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II

A crise como sinal de nossos tempo - um lugar comum. Falar em crise não importa pessimismo, nem conotação negativa. Antes de ser uma manifestação patológica é inerente ao próprio processo histórico ( como a febre no organismo?) - Toynebee - desafio, resposta. Os chineses - wei-ji - perigo, oportunidade - Marilyn Fergusson - nossa patologia é nossa oportunidade.

Características da crise atual - sua extensão planetária - sua profundidade - sua extensão - todo o saber, todo o planeta, todo o conviver.

Onde suas matrizes? O que marcou a modernidade e hoje fragilizou-se - a crença na supremacia da razão e no potencial da liberdade. As duas grandes utopias que gerou - a da emancipação pela razão e a do progresso pela atuação da liberdade esclarecida; em face da natureza, a ciência; em face do semelhante, a lei; em relação a nós próprios, o tribunal de nossa consciência.

Tudo isso ruiu. A razão, de emancipadora se fez instrumental e opressora - a ciência e a técnica a serviço da dominação da natureza e do homem - fez-se racionalidade técnica.

A ciência moderna e sua relação ditatorial com seu objeto; dogmatiza sua visão da natureza e naturaliza os processos sociais, atribuindo à dinâmica da historia um funcionamento sistêmico, regido por leis abstratas e imutáveis; desprezamos o maktub oriental mas forjamos o nosso.

A desmistificação dessa racionalidade. Marx e Freud - condicionamentos sociais; Max Weber -razão substancial (fins e valores) razão instrumental (meios e fins). Foucault - inter-relacionamento entre poder e saber - a mentira da objetividade da ciência e sua neutralidade; Horkheimer, Adorno e Marcuse - o lado repressivo da razão.

O desespero e o desencanto pos-modernista Lyotard - o dissenso(paralogia) na raiz da interação social; a inútil procura de universais; tudo é fragmentário, permanentemente aberto e permanentemente instável.

O mito do progresso. Saint-Simon - a lei suprema do progresso do espírito humano tudo arrasta - tudo que resta fazer é obedecer a esta lei.

Natural se projetasse esse entendimento ao social - a natureza sugere aos homens, em cada época, a forma adequada de governo e as instituições necessárias a cada corpo social. Estavam postas as matrizes da nacionalidade técnica e da ideologia tecnocracia e seu proje5to de "servidão humana".

Seus descaminhos se fizeram evidentes mesmo para o homem comum - a prevalência do ter sobre o ser - a fragmentação do homem como ser pessoal - o crescente dirigismo estatal e seu paroxismo nos totalitarismo de direita e de esquerda - fragilização da sociedade - ambas conseqüências da lógica interna do capitalismo.

Antes sempre se produziu para atender a necessidades postas pelos homens (integrantes do grupo) hoje se produz para lucrar - lucra-se para reinvestir - reinveste-se para produzir novos lucros, donde o induzimento de necessidades para gerar consumo - passamos a consumir para atender a necessidades dos produtores.

Essa lógica interna imperiosa gerou o capitalismo tardio - marcado pela crescente e indispensável intervenção do estado.

a) manutenção e ampliação da infra-estrutura ( transportes, saneamento, saúde etc.);

b) investimento direto em empresas de alto custo e baixa rentabilidade (espacial, atômica, aérea etc);

c) criação de grandes centros de pesquisa com socialização de altos custos no desenvolvimento de tecnologias fundamentais para a manutenção da reprodução ampliada.

A ciência e a tecnologia assumem o papel de verdadeiras forças produtivas e o estado passa a dispor desses instrumentos - assume o papel de promotor do progresso.

Na medida em que esse esforço logra êxito, busca legitimar-se pelo desempenho - nasce a ideologia tenocrática.

O papel da ideologia - impedir a tematização dos fundamentos do poder. Tradicionalmente, as normas são legitimas (não discutíveis) porque fundadas em visões do mundo que historicamente se sucediam - inclusive a do direito natural de a da justa troca derivou ( fundamento do liberalismo). Agora é diferente: não há normas, há regras, suprime-se o problema; o poder é legítimo não por obedecer a normas legítimas, sim por atender a regras técnicas; delas não se exige que sejam justas, sim que sejam eficientes (eficazes); não há o que legitimar - a lógica das coisas sendo o que é, não pode ser alterada por decisões políticas a despolitização das massas - a dominação burocrática - decisões (políticas) pelos experts - os sacerdotes da nova religião.


III

A ciência e a prática do direito não podiam colocar-se a salvo desse desmoronamento. Na década de 50 a "crise do direito" - certo consenso "antipositivista". Na década de 60 - a crise da "compreensão do direito". Nesse particular, só dissenso.

  • os marxistas - crise da filosofia do direito burguês, sem condições de oferecer uma teoria de legitimação do exercício do poder, nem uma teoria da direção desse mesmo exercício

  • o atraso da ciência jurídica, incapaz de dar uma resposta nova em face da mudança de paradigma e crescente complexidade da sociedade e a falta de consenso no tocante a problemas fundamentais, gerando sobrecarga à metodologia jurídica (democracia, direitos fundamentais, Estado)

  • a crise do Estado liberal em transição para o Estado Social, cedendo espaço a uma doutrina centrada na solução de conflitos em favor de uma engenharia social, fugindo-se do direito legal para o dinâmico direito judicial, tudo isso agravado pelo confronto ideológico

Mas se a crise do direito se insere na crise da modernidade, ela tem suas notas específicas

As idéias do iluminismo eram origem a uma mentalidade marcada

a) por uma nova consciência do tempo (consciência histórica que rompe com o tradicionalismo de continuidades naturalmente dadas)

b)um novo conceito de prática política (sua compreensão sob o signo da autodeterminação e da autorealização)

c) uma nova representação do que seria legitimação ( o discurso racional como base de legitimação de todo domínio político

Sendo a nacionalidade e a liberdade inerentes à condição humana - igualdade de todos os homens - a soberania do "povo" - dimensão política da totalidade - a vontade geral como expressão dessa soberania - os óbices da democracia direta - a democracia representativa - os inputs (formação de opinião) - os mandatários - os outputs (decisões) - a lei -sua racionalidade e generalidade

Um passo para a identificação direito = lei = Estado = ciência jurídica - dogmática

O positivismo jurídico se instalava no trono; na sua raiz, o que foi antes desvendado - razão instrumental, racionalidade técnica, ideologia tecnocracia.

Se esse paradigma está em crise, estão em crise os paradigmas do direito.

As mudanças na física. A ordem intrínseca e a harmonia de um cosmos obediente a uma lei (mecanicismo newtoniano) foram substituídas por um labirinto impenetrável que só se torna transponível graças as indicações fornecidas pelos cientistas e a descoberta da "ordem objetiva" foi substituída pela imposição de uma ordem ilegível sobre uma diversidade sem sentido.

As mudanças na economia - Peter Druck - não há mais teorias - administram-se problemas cujas soluções geram outros problemas. As mudanças políticas - do Estado liberal para o Estado social, sem que se tenha formulado uma teoria política pertinente.

Tudo isso leva a que tenhamos um dissenso "critico" convivendo com uma prática dogmática ou um discurso "emancipador" seguido de uma prática tecnocrática, por conseguinte autoritária, de dominação.

Qual o prejuízo básico derivado dessa ambigüidade ? Permanecemos acreditando seja o direito uma instância autônoma, subsistente por si mesma e capaz de conformar o social - reduzir o pluralismo social, a permanente conflituosidade da sociedade a uma unidade formal, equilibrar antagonismos a harmonizar interesses mediante um processo de construção de categorias conceituais, princípios gerais, ficções retóricas que depurariam as instituições jurídicas de quaisquer antinomias ou lacunas.

Repele-se o ético, o social, o econômico, o político para o espaço do meta-jurídico ou com um discurso "emancipador" se coloca tudo isso no espaço sub-jurídico.

Na postura nova permanece o prejuízo antigo - o encobrimento da dimensão política do jurídico, seu ineliminável comprometimento com o poder.

À dominação velha sucede uma dominação nova - que é um retrocesso - da lei para o julgador - de todo deslegitimado.

O jurista se propõe uma tarefa emancipadora que não pode cumprir. É o que tentaremos justificar.


IV

Impossível pensar algo que diz respeito ao homem sem pensar, antes, sobre o próprio homem as colocações sobre natureza e cultura, produto etc. A relação do homem com seu ambiente caracteriza-se pela abertura para o mundo. O homem vai além do estritamente biológico. O mundo fechado dos animais não humanos - estruturas determinadas pelo equipamento biológico - há um meio que o condiciona e ao qual ele se condiciona.

os animais são um corpo - o homem é um corpo, mas por outro lado ele tem um corpo - ele experimenta a si próprio como uma entidade que não é igual a seu corpo mas que ele tem, ao contrário, esse corpo ao seu dispor. -a ordem social não faz parte da natureza, não deriva portanto das leis da natureza - quais seus fundamentos básicos ? necessidades, desejos, escassez etc; os indivíduos são feitos, ao mesmo tempo que eles fazem e refazem, pela sociedade cada vez instituída; num sentido eles são a sociedade.

Os dois pelos irredutíveis são o imaginário radical instituinte - o campo de criação do social - histórico - de um lado, e a psique singular de outro lado. A partir da psique, a sociedade instituída faz a cada vez indivíduos - que como tais não podem fazer mais nada a não ser a sociedade que os faz.

O requisito mínimo para que o processo de sublimação (a heteronomia) possa desenvolver-se é que a instituição ofereça à psique sentido - isso é obtido pela "doutrinação", a paideia, família, classe, idade, ritos, escola, mitos, leis etc.

A instituição da sociedade exerce um infra poder radical sobre todos os indivíduos produzidos por ela - é um poder de Ninguém e não localizável.

Se definirmos como poder (a definição de Cator) - é imediato que o maior poder concebível é o de pre-formar alguém, de tal modo, que por si mesmo ele faça o que queríamos que fizesse, sem nenhuma necessidade de dominação ou de poder explícito para levá-lo a ...... Da mesma forma é imediato que isso cria para o sujeito submetido a essa formação, ao mesmo tempo corpo social, a aparência da mais completa espontaneidade e a realidade da mais total heteronomia social.

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Mas a sociedade não consegue nunca exercer o seu poder de forma absoluta. É sempre possível a "transformação" ou a hiper lenta alteração dos modos de fazer e representar sociais.

Há um sem número de defesas sociais - mas o fato de que podem fracassar, e em certo sentido fracassam sempre, o fato de que pode haver crime, litígio violento insolúvel, calamidade natural, guerra etc é um dos revezes do poder explícito.

Há sempre e haverá sempre uma dimensão da instituição da sociedade encarregada dessa função essencial: restabelecer a ordem, garantir a vida e a operação da sociedade contra todos e contra tudo o que atual ou potencialmente, a coloca em perigo.

O poder legislativo e o poder executivo podem ficar dissimulados nas instituições (no costume e na interiorização de normas hipoteticamente eternas) mas um poder de julgar e um poder de governar devem estar implicitamente presentes sob uma forma qualquer, uma vez que haja sociedade.

Não basta o monopólio da palavra legítima, nem o monopólio da significação válida, indispensável o monopólio da violência. O poder explícito -instâncias que podem emitir injunções sancionáveis - é ineliminável de qualquer sociedade. As sociedades sem Estado não são sociedades sem poder.

O político não se confunde com a instituição do conjunto da sociedade. Os macro-poderes, econômico, político e ideologico. O Poder4 econoimico organzia a produção mediante a atribuição da propreidade de certos bens o que permite induzir o trabalho do outro. O poder ideológico institui o consenso, induz o conformismo e oferece a legitimação) O poder político organiza a coerção, assegura ao restabelecimento da ordem, quando fracassam os dois macro-poderes. O meio pelo qual se articulam no corpo social é o Direito O direito não é o ponto de partida, é o encerramento, o fechamento. E por que ele é isso ?

O futuro e sua incerteza - o papel do compromisso - o direito pressupõe um compromisso pactuado, sua previsão é essencial. Ou teriamos ao caos, que opera com o puro arbítrio - a produção do direito mais a partir da sociedade e mais a partir do poder instituído.

Não há o específico do direito, como há do econômico ou do político. O jurista opera com a matéria prima que o social lhe proporciona.

O processo de produção do direito e a música

O homem experimenta a natureza da mesma maneira dual e equívoca que o escultor encontra a massa disforme da pedra : ela está diante dele complacente e convidativa, esperando pelo momento de absorver e encarnar suas idéias criadoras - mas sua disposição para se entregar é altamente seletiva; de fato, a pedra fez a sua própria escolha, muito antes que o escultor pegasse no cinzele. Dir-se-ia que a pedra classificou as ideais do escultor em atingíveis e inatingíveis, razoáveis e não razoáveis. Para ser livre, para agir, o escultor deve tomar conhecimento dos limites da sua liberdade: deve aprender a ler o mapa de sua liberdade traçado sobre os veios da pedra ( Zygmunt Baumann)

A sociedade é uma segunda natureza e a ordem social opera aproximadamente como a ordem natural. Se o jurista esquece que a sociedade já fez sua própria escolha antes que o jurista elaborasse suas leis, suas normas, seus sistemas e suas teorias ele apenas violentará inutilmente a pedra e nenhuma obra de arte produzirá

O desvario de nossos legisladores e juristas dos últimos tempos. Nossa ordem jurídica não nos informa nem nos conforma - ela nos deforma - os juristas do ar condicionado.

Só pela via política há transformação e só pela transformação individual se chega à transformação social e política. Não é a ordem jurídica que emancipa, sim a conversão que a rebeldia persistente, o estranhamento audacioso e lúcido, a ruptura consumada é que move montanhas Não somos nem o futuro nem a revolução

Quando outros pretendem emancipar-nos ou nos propomos emancipar alguém, o que estamos fazendo em verdade é manter a dependência e a dominação, Não somos nem o futuro nem a revolução

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Sobre o autor
José Joaquim Calmon de Passos

Falecido em 18 de outubro de 2008. Foi advogado e consultor jurídico em Salvador (BA), coordenador da Especialização em Direito Processual da Universidade Salvador (UNIFACS), professor catedrático de Direito Processual da Universidade Federal da Bahia (aposentado)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PASSOS, José Joaquim Calmon. Função social do processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. -335, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3198. Acesso em: 19 abr. 2024.

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