Fui convidado por Daniela Froés da Motta a publicar na minha linha pessoal de uma rede social a frase “Eu digo sim a doação de Órgãos”. Trata-se da brincadeira do desafio, conhecida atualmente pela internet. Gostei muito da iniciativa da minha estimada colega e, por isso, publiquei a dita frase. Contudo, tamanha é a importância do tema colocado em pauta, que nunca é demais tecer algumas linhas sobre algumas questões constantemente veiculadas em associação ao assunto.
São muitos pontos importantes, mas hoje, quero falar sobre a importância do gesto da doação, mesmo porque esse foi o intento principal que começou a brincadeira do desafio da postagem.
Aproveito então para trazer os resultados de uma pesquisa realizada em nosso país, em 2013, divulgada pelo Ministério da Saúde, trouxe o resultado que, nos últimos dez anos, o Brasil dobrou o número de doadores, aumentando números de cirurgias de transplantes antes na faixa de 7.500 para 15.141. Ainda assim, o país não conseguiu atingir a meta proposta pela Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos para o respectivo período de uma taxa de 13,5 doadores por 1 milhão de habitantes. Faltou pouco, é verdade (13,2).
A situação, ainda assim, é preocupante. É até dispensável lembrar a relevância do ato de solidariedade que é a doação de órgãos para alguém que dela precisa. Trata-se, em grande suma, do ato de conceder ao outro a oportunidade de viver, concretizado a ideia nos recomendada de que “amarás ao teu próximo como a ti mesmo”. (BÍBLIA, Mt 22:36-40, 2007.
É pensando na ampla difusão da ideia solidária que se estimula ao cidadão o conhecimento do bem que pode realizar mediante sua permissão de transplante. Em vida, a doação ganha contornos mais restritos, pois a doação estará certamente delimitada ao órgão que for, não prescindível, e sim, tolerável sua ausência. Mas baseado nisso, o que dizer do corpo cuja vida uma vez esvaída, não necessita mais de seus órgãos outrora de grande prestação natural de serviços?
No mundo da busca pela felicidade, mortos não têm vez. Despidos de qualquer chance, as lutas deles se darão em outro plano de existência (para quem crê). Sua matéria, como um traje já bem utilizado, precisa de descanso (ou de uma boa lavagem para que sirva a terceiros). Pensando dessa forma, países europeus (como França, República Tcheca, Hungria, Itália, Portugal, Espanha, Áustria e Bélgica) estabeleceram a prática médica do opting-out, segundo a qual, a menos que o indivíduo declare explicitamente não ser doador, quando de sua morte, será considerado implicitamente a aquiescência para doar. A doação, portanto, é regra ao opting-out, onde se preza pelo consentimento presumido.
A prática tem obtido vasta corrente de adeptos no Brasil, com o fim de sanar a posição deficitária nacional no transplante de órgãos. No Brasil, todavia, vige o opting-out mitigado, ou modificado, onde, não tendo o cidadão deixado sua vontade explícita, será sua família responsável pela decisão. A posição não tem agradado pela volubilidade apresentada pelos parentes do falecido. Philippe Steiner, em seu artigo “A doação de órgãos: a lei, o mercado e as famílias” (in: Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 16, n. 2 pp. 101-128) verificou que para o desfecho decisório favorável à doação de órgãos, faz-se necessário mais do que a força da consciência. Conta-se também com a empatia entre médicos e família, numa troca de atenção mútua: atenção daqueles em lidar humanamente com o contexto delicado do evento morte para lançar o questionamento do transplante, em contrapartida da atenção dos parentes em fugir de sua própria dor para pensar na dor alheia de aguardar numa fila por órgãos. Nessa trêmula balança de valores, qualquer indício eventual de irritabilidade, fadiga demais para refletir ou frustração para aceitar a realidade, emanada por qualquer das partes, pode resvalar numa decisão precipitada.
A partir dessa tela, cai-se facilmente na ideia de imposição do opting-out e consequente reforma do art. 4º da lei n.º 9.434/97, onde se estabelece o necessário consentimento do cônjuge ou parente do falecido ao transplante.
Dessa estatitazação do corpo humano, ainda que falecido, ouso discordar. É falacioso, ressalte-se, acreditar que a presunção da doação de órgão acarrete melhora nos quadros de transplantes do Brasil. Conforme Pesquisa da Johns Hopkins Medicine, fez entrevistas com especialistas em transplante em 13 países europeus com legislação de consentimento presumido e descobriram que, apesar das leis, o processo de doação de órgãos nestes países não difere drasticamente do processo em países como os Estados Unidos, que exigem o consentimento explícito. Eles também descobriram que os Estados Unidos estão em terceiro lugar entre as nações pesquisadas nas taxas de doação de órgãos de pessoas falecidas, com 26,3 doadores falecidos por milhão de habitantes (lembra do 13,2 brasileiro lá em cima?)
E o que fazer?
A doação, ato de solidariedade que o é, está intimamente ligado ao amor ao próximo. E amar exige a abnegação da individualidade em favor do outro, já que amor é concessão, é dar ao outro a si mesmo, incondicionalmente e sem esperar a reciprocidade, ofertando apenas a liberdade. A solidariedade, ainda que um dever de cada ser humano inserido na sociedade, em prol de que esta se mantenha coesa, não está divorciado do direito à liberdade. Esse elo entre dever e direito, inclusive, foi o primeiro a ser registrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, ao dispor em seu artigo inaugural que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.
Sendo assim, uma mera reforma legal não tem o condão de alterar a essência do ser humano, este sim o ponto fulcral ao qual devemos nos concentrar para construir as bases de uma sociedade mais pautada nos valores do respeito e do reconhecimento do outro enquanto sujeito de direito a uma vida tal como aquela idealizada por nós, digna.
Amor não se impõe, ensina-se. Achar que a reforma legal pode trazer essa lição é mais uma forma de apresentação do arremedo cultural que atravessa a história do país sob a crença de que vomitar leis é ofertar a resposta imediata e universal aos problemas que se impõem.
São campanhas de educação primária, familiar e conscientização social os instrumentos capazes de assegurar uma real mudança no perfil do brasileiro, incutindo-o o conhecimento, não precisando que sua ação aguarde a imposição normativa para que haja como uma marionete balançada apenas pelas cordas da lei, mas se impulsione pela vontade autônoma de se solidarizar, sem medo, sem vergonha, sem ignorância.
Agora, para terminar, eu gostaria de desafiar você, leitor, a ser solidário. A amar a si e ao outro. Divulgue, dialogue com seus familiares. Conheça mais sobre o assunto. Alguém espera disso de nós.