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Uma visão hermenêutica comprometida com a cidadania e os direitos humanos:

o início de um debate

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01/02/2001 às 00:00
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5. A CORRUPÇÃO E OS DIREITOS HUMANOS

Os Direitos Humanos já foram perfeitamente conceituados por Louis Henkin(18) como "reivindicações morais e políticas que, no consenso contemporâneo, todo ser humano tem ou deve ter perante sua sociedade ou governo".

Optamos por trazer para o nosso estudo esse conceito, particularmente pela referência que o autor faz ao "consenso contemporâneo", pois parece-nos de essencial importância tal menção, uma vez que os direitos humanos em sua evolução histórica têm se demonstrado mutáveis, e hoje presenciamos dois fenômenos importantes, quais sejam o da sua universalização e multiplicação.

Em breve digressão histórica podemos lembrar que à época da positivação dos direitos humanos, no século XVIII, através da Declaração Francesa de 1789 e a Declaração Americana de 1776, ocorrera um culto às chamadas garantias individuais que se identificavam de um modo geral com a liberdade , fosse esta representada pela liberdade de expressão, liberdade religiosa, ou as chamadas liberdades públicas.

A matriz ideológica desse movimento passou a exigir do Estado uma conduta negativa, qual seja a de abster-se do controle excessivo que antes era imposto pelo Soberano.

"A solução era limitar e controlar o poder do Estado, que deveria se pautar na legalidade e respeitar os direitos fundamentais."(19)

Entretanto, o liberalismo que contagiou aquela época, não persistiria por muito tempo, pois logo o mundo surpreendido pela Primeira Guerra Mundial e pela Crise de 1929 perceberia que em alguns setores da sociedade é imprescindível o controle estatal, razão pela qual aos direitos civis e políticos, se associam também à nova classe dos direitos sociais e econômicos.

Assim foi que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 trouxe em seu texto não só a proteção à liberdade, representada pela proteção aos direitos civis e políticos, mas também valores como trabalho, instrução, saúde, lazer,etc..., representados pela inserção dos direitos sociais, econômicos e culturais.

Entretanto o fenômeno da multiplicação dos direitos humanos não pára por aí, estamos no final deste século testemunhando a importância cada vez maior que os chamados ‘interesses difusos"(20) tem alçado na ordem interna e mundial. Assim, a defesa do meio ambiente, do consumidor, do patrimônio público, etc... passam a ser observados como os próximos bens jurídicos a terem sua proteção ampliada em âmbito internacional.

Desse modo, podemos comemorar o fato de que teoricamente os direitos humanos possuem hoje fundamentação suficiente para que sejam reconhecidos em qualquer parte do globo terrestre, entretanto a empolgação não deve ser tanta, pois como bem ressaltou Norberto Bobbio(21), a prática nem sempre é essa, já que a efetiva proteção àqueles direitos não tem avançado à mesma velocidade que sua teoria.

E aqui estamos para abordar um dos fatos que tem sido a razão de reiteradas violações aos direitos do homem, e que o tem muitas vezes relegado à miséria, à fome, ao analfabetismo, e aos abusos de toda espécie.

A corrupção : essa grande vilã que cria super-orçamentos, sempre deficitários, auxilia a corrosão de nossa economia e é a causa de grande parte do sofrimento de seus cidadãos.

É a corrupção que faz com que nos presídios e penitenciárias de nosso país só sejam detidos aqueles que não podem pagar pela liberdade(22), e mesmo aqueles que ficam, para poder gozar de certas ‘regalias’, como dormir nas poucas camas que restam, devem pagar; é a corrupção que faz com que um preso custe tão caro aos cofres públicos e sobrevivam em condições subumanas, permanecendo em estado de flagrante violação a um de seus mais importantes direitos que é a inviolabilidade do próprio corpo.

Como poderíamos nos iludir que qualquer ser humano se recuperasse em um ambiente como esse ? Como se redimir quando é humilhado a todo instante e tem seu corpo violentado? Como se reeducar se a única linguagem que conhece nesses lugares é a da dor e da violência?

E mais, como se conformar com tal condição, enquanto a parca verba que lhes deveria ser enviada se perde pelos desconhecidos caminhos administrativos?

Todo esse estado de coisas, só ajuda a criar mais delinqüentes, pois "o sentimento de injustiça que um prisioneiro experimenta é uma das coisas que mais podem tornar indomável seu caráter. Quando se vê assim exposto a sofrimentos que a lei não ordenou nem mesmo previu, ele entra num estado habitual de cólera contra tudo o que o cerca; só vê carrascos em todos os agentes da autoridade : não pensa mais ter sido culpado; acusa a própria justiça."(23)

Entretanto, ainda mais perigosa, a corrupção pode levar à morte de seus poucos opositores no Poder, como aconteceu com Pedro Jorge Melo e Silva, Procurador da República assassinado a mando de um ex-major da Polícia Militar de Pernambuco, por ter denunciado os desmandos de um grupo político da região.(24)

A corrupção é também colaboradora do estado de miséria e fome em que se encontram as famílias nordestinas, pois seria hipocrisia acreditarmos que as forças da natureza são as responsáveis pelo destino dessa gente, enquanto sabemos que desde os primeiros anos da Proclamação da República, a cada novo Governo, eram previstas obras para o combate a seca, e cada uma delas ficaram conhecidas pelos desvios de verbas, o que fez com que muitas se iniciassem e sequer fossem concluídas.

A corrupção também é a grande responsável pelos problemas da Previdência Social em nosso país, pois basta termos boa memória e lembrarmos da recente quadrilha formada por uma advogada, um juiz e agentes do INSS, para lembrarmos também dos milhões que eles nos levaram, e das infindáveis filas formadas por nossos idosos para mês a mês receberem a parca aposentadoria, com o qual mal conseguem sobreviver, senão à custa da ajuda e caridade alheia.

Essa prática criminosa facilita ainda a remessa ilegal de valores aos chamados ‘paraísos fiscais’ e assim, aumenta o prejuízo do Fisco em mais algumas cifras.

Por fim, e mais drasticamente que em todos os outros casos, a corrupção atinge as corporações policiais para oferecer caminho livre a uma série infindável de delitos, dentre os quais o pior, pois atinge a todos os países sejam estes subdesenvolvidos ou não: o narcotráfico.(25)

Destarte, por tudo que relatamos, parece-nos que a corrupção consegue por suas diferentes formas, ser a maior responsável pelas lesões aos direitos fundamentais do ser humano, que vão desde o desrespeito a inviolabilidade de seu corpo, à violação ao seu direito ao trabalho, à previdência, à educação, etc...

É aquela a mais nefasta das violações, pois espalha-se silenciosamente pela sociedade nos seus mais diversos setores, e sem nos darmos conta estamos sendo reiteradamente usurpados.

É sem dúvida, como bem lembrou Geraldo Brindeiro(26), a violação de direitos humanos que mais desvirtua a autoridade do Estado em um regime democrático, pois é aquela perpetrada astuciosamente pelos seus próprios agentes.


6. A PROTEÇÃO CONTRA A CORRUPÇÃO E A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL

Os mecanismos de ação contra a corrupção são encontrados na ordem interna da maioria das nações.

No Brasil esse combate está nas mãos da Polícia Civil, do Ministério Público e do Poder Judiciário.

A função da Polícia Civil, também denominada Judiciária, é a de coletar provas e indícios, podendo para isso se utilizar das medidas previstas em lei : perícias, oitiva de testemunhas, corpo de delito, etc.... Concluída essa fase, caberá a um membro do Ministério Público analisar o inquérito e observar se existem elementos suficientes que comprovem a materialidade do crime e sua autoria, devendo em caso positivo denunciar os envolvidos, promovendo a ação penal, que passará a ser presidida, instruída e julgada pelo Poder Judiciário.

Esse é o procedimento comum, que em regra será utilizado na persecução penal para a grande parte das práticas que se conformam ao conceito de corrupção.

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Entretanto a corrupção, sob qualquer um de seus meios, não é uma espécie delituosa como as outras, pois em geral os seus autores são indivíduos dotados de um poder econômico e político especial, de tal modo que sua ação é respaldada por uma estrutura altamente organizada, na qual incluem-se membros da polícia, do Ministério Público e também do Poder Judiciário, que se encarregam de ocultar perfeitamente quaisquer provas ou vestígios.(27)

Desse modo, acreditamos ser extremamente importante um controle mais eficiente desses órgãos, a fim de senão abolir ao menos reduzir a presença desses elementos nocivos em seu corpo. A isto deve-se somar a necessária agilização do procedimento e a facilitação de acesso às provas contra aquela prática, pois a inexistência de uma instrução eficaz tem sido também a grande dificuldade daqueles que verdadeiramente se propõe a combatê-la. Assim, acreditamos que a quebra do sigilo bancário e das comunicações telefônicas, em que pese o fato de estarem respaldados no direito à intimidade do cidadão, deveriam ser ampliadas (nos casos em que houvesse suspeita de corrupção) para se permitir que o Ministério Público, sem mais delongas, pudesse dela se utilizar, sem a necessidade de ‘solicitação’ ao Poder Judiciário, isto porque essa prévia ‘solicitação’ causa verdadeiras batalhas judiciais em torno da questão, levando o processo aos Tribunais Superiores, e em regra acabando por serem usadas como estratégia para a impunidade através da prescrição.

Há ainda que mencionarmos a existência em nosso sistema jurídico das famosas CPI’s (Comissões Parlamentares de Inquéritos) que tem o papel de investigar quaisquer denúncias que a elas sejam levadas e envolvam membros do Poder Legislativo. A fim de exercer com desenvoltura tal função a Constituição Federal, em seu artigo 58, §3º, concedeu às CPI’s "poderes de investigação próprios das autoridades judiciais", não podendo entretanto, decidir ou julgar, devendo após o encerramento dos trabalhos elaborar relatório onde deverão constar todos os dados e informações apurados, os quais serão levados ao Plenário da Casa Legislativa para exame.(28)

Devemos porém, dizer que tanto o procedimento levado adiante pelo Ministério Público, quanto aquele desenvolvido pelas CPI’s tem como efeito primeiro produzir escândalos(29) na mídia e vez ou outra acarretar a perda de mandatos, entretanto as efetivas punições de todos os envolvidos raramente têm ocorrido, pois na maioria das vezes em que se consegue reunir provas suficientes, a morosidade do Judiciário, deliberada ou não pelos seus próprios membros, acaba levando, como já dissemos anteriormente, à prescrição.

Percebemos então que, pelos inúmeros motivos retro-apontados, o sistema brasileiro tem se mostrado inoperante.

Os Códigos Penais de outros países como Venezuela, Uruguai, El Salvador, Paraguai, Panamá, Nicarágua, México, Honduras, Haiti, Guatemala, Equador, Chile, Cuba, Bolívia e Argentina(30), também prevêem os delitos contra la cosa publica , usurpación de atribuiciones y nombramientos ilegales , abusos contra la honestidad ou el cohecho (a corrupção), entretanto em maior ou menor escala suas legislações ainda não são eficazes na erradicação desse mal, principalmente em virtude de uma característica atual desses crimes que é a presença de ramificações em diversos países, o que cria obstáculos à persecução penal, dependente sempre das boas relações entre os Estados envolvidos, bem como de suas normas internas sobre sigilo bancário e fiscal.

Destarte, por essa razão devemos ressaltar a necessidade da cooperação internacional, já consagrada pelo art.1º da Carta da ONU, bem como pela Resolução da Assembléia Geral de 1970 e a Carta de Direito e Deveres de 1974.

A idéia de cooperação internacional sempre esteve associada a moral internacional e ao princípio da solidariedade, entretanto hodiernamente é impossível negar ter se tornado questão de sobrevivência, posto que em nosso mundo globalizado o grau de relacionamento entre os Estados e a complexidade dessas relações faz com que a lesão a um país possa atingir gravemente os outros, não estando nem mesmo as grandes potências livres dessa nociva influência.

Nesse contexto é que as organizações internacionais têm desempenhado o importante papel de intermediar as discussões entre os Estados, auxiliando na escolha dos rumos a serem tomados, no estabelecimento de objetivos comuns, bem como na busca de soluções aos problemas apresentados.

Talvez por isso o Professor Celso D.Albuquerque Mello afirma que "a grande característica do nosso século é o associacionismo internacional."(31)

Entretanto, apesar de vivermos um período em que as grandes discussões se realizam em foro internacional, sob o amparo de organizações empenhadas em encontrar soluções para os problemas que afligem as nações, percebemos que no que se refere a corrupção pouco se avançou, sequer havendo instrumentos que associem a prática daqueles crimes às violações aos direitos humanos. Menciona-se com freqüência um "padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis"(32), entretanto nada se fala daquela conduta que pode frustrar esse e muitos outros direitos, não de um único indivíduo, mas de todo um povo.

Parece-nos que em âmbito supranacional também se cultiva a forte preocupação com os ‘sintomas’ muito mais do que com as causas da ‘doença’, atacando-se apenas o seu aspecto visível.

Resta-nos portanto, confiar nos Tratados de extradição e na colaboração entre as polícias dos diversos países no que se refere à tentativa de condenar corruptos e corruptores ‘globalizados’, o que é muito pouco quando lidamos com um crime de tão extensas proporções.


CONCLUSÃO

"A afirmação política de um mundo comum confiável requer que ele seja erigido por uma geração e planejado apenas para a vida. Deve ter uma certa permanência e durabilidade, transcendendo, conseqüentemente, a existência individual dos homens."Celso Lafer(33)

Ao final de nosso estudo sobre a corrupção e sua repercussão como elemento violador dos direitos humanos, tivemos a oportunidade de verificar que essa conduta criminosa cresce alarmantemente em nossa nação, fruto do contexto histórico de exploração em que crescemos, bem como pela difundida crença na impunidade, na ilegalidade consentida, amparada por uma ordem jurídica ineficiente.

Entretanto, observamos também que a corrupção não tem sido exclusividade de países subdesenvolvidos como o nosso, isto porque essa prática criminosa tem se tornado cada vez mais organizada, se valendo de alta tecnologia e ligações com o narcotráfico em diversos países.

Apesar dessa constatação, com um certo pesar concluímos que não há ainda em âmbito internacional organismos que se dediquem a articular, em conjunto com a comunidade supranacional, modos de combate aos delitos contra a Administração Pública. Não havendo portanto, um discurso único para extirpar esses crimes, estando a proteção resumida aos instrumentos internos de cada país e a uma cooperação casuística e voluntariosa entre as nações.

Portanto, cremos que há muito a fazer nesse sentido, e o melhor começo será sem dúvida alguma darmos publicidade ao problema, expô-lo, discuti-lo amplamente, para que possamos suscitar a indignação coletiva e os nossos cidadãos possam repensar suas posturas diante daquilo que é patrimônio público e interesse de todos.

Assim e somente assim, unindo uma postura crítica à medidas de ordem pragmática, poderemos alterar os rumos globais de nossa civilização, orientando-a para a sedimentação de valores coletivos duradouros, sadios, que venham a reduzir as grandes desigualdades que ainda testemunhamos e mudar a vida das próximas gerações.

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Sobre a autora
Alessandra Moraes Teixeira

advogada em São Paulo (SP), professora da UNIC e UNIP, mestranda em Direito pela UNESP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, Alessandra Moraes. Uma visão hermenêutica comprometida com a cidadania e os direitos humanos:: o início de um debate. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 49, 1 fev. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32. Acesso em: 28 mar. 2024.

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