3 DA CAPITAL DO ESTADO
Theotonio Negrão assim se manifesta sobre o art. 109, §2º, da Constituição Federal:
Tratando-se de ação contra a União Federal [...] pode a ação ser aforada na Capital do Estado ou do Território em que for domiciliado o autor; [...] ou onde esteja situada a coisa ou no Distrito Federal[13].
O citado jurista é claro ao afirmar que é possível a interposição de ação na capital do Estado de domicílio do autor. Isso porque, ao se referir a ‘seção judiciária’, a Constituição se refere a todo o Estado, e não somente à subseção judiciária de domicílio do autor.
A Lei Federal 5.010 de 1966 assim determina:
Art. 3° Cada um dos Estados e Territórios, bem como o Distrito Federal, constituirá uma Seção Judiciária, tendo por sede a respectiva Capital.
Referida norma, recepcionada pelo atual texto magno, estabelece que cada Estado da Federação é uma Seção Judiciária, tendo sede na respectiva Capital.
Trata-se de fundamento à interpretação no sentido de que o termo ‘seção judiciária’ (artigo 109, §2º, da CF) corresponde a todo o Estado e não apenas ao local de domicílio do autor.
A lei que trata da Justiça Federal é de 1966, enquanto que a Constituição Federal foi promulgada em 1988. Logo, se o constituinte originário tivesse a intenção de restringir as opções de foro daqueles que demandam em face da União Federal, o teria feito de forma expressa, utilizando a expressão ‘subseção judiciária’.
A Advocacia-Geral da União, responsável pela representação judicial da União Federal, reconhece a possibilidade de aforamento de ações nas capitais dos Estados (sede da Seção Judiciária): “Súmula Nº 23/2006: É facultado a autor domiciliado em cidade do interior o aforamento de ação contra a União também na sede da respectiva Seção Judiciária (capital do Estado-membro)”.
A referida súmula reflete o entendimento jurisprudencial sobre a matéria:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO POPULAR AJUIZADA EM FACE DA UNIÃO. LEI 4.717/65. POSSIBILIDADE DE PROPOSITURA DA AÇÃO NO FORO DO DOMICÍLIO DO AUTOR. APLICAÇÃO DOS ARTS. 99, I, DO CPC, E 109, §2º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. Não havendo dúvidas quanto à competência da Justiça Federal para processar e julgar a ação popular proposta em face da União, cabe, no presente conflito, determinar o foro competente para tanto: se o de Brasília (local em que se consumou o ato danoso), ou do Rio de Janeiro (domicílio do autor). [...] 7. Nos termos do inciso I do art. 99 do CPC, para as causas em que a União for ré, é competente o foro da Capital do Estado. Esse dispositivo, todavia, deve ser interpretado em conformidade com o § 2º do art. 109 da Constituição Federal, de modo que, em tal caso, "poderá o autor propor a ação no foro de seu domicílio, no foro do local do ato ou fato, no foro da situação do bem ou no foro do Distrito Federal" (PIZZOL, Patrícia Miranda. "Código de Processo Civil Interpretado", Coordenador Antônio Carlos Marcato, São Paulo: Editora Atlas, 2004, p. 269). Trata-se, assim, de competência concorrente, ou seja, a ação pode ser ajuizada em quaisquer desses foros. 8. Na hipótese dos autos, portanto, em que a ação popular foi proposta contra a União, não há que se falar em incompetência, seja relativa, seja absoluta, do Juízo Federal do domicílio do demandante. 9. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo da 10ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado do Rio de Janeiro[14].
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. CAUSAS INTENTADAS CONTRA A UNIÃO FEDERAL. COMPETÊNCIA: ARTIGO 109, §2º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PROPOSITURA DE AÇÃO. FORO. Ação judicial contra a União Federal. Competência. Autor domiciliado em cidade do interior. Possibilidade de sua proposição também na capital do Estado. Faculdade que lhe foi conferida pelo artigo 109, § 2º, da Constituição da República. Consequência: remessa dos autos ao Juízo da 12ª Vara Federal de Porto Alegre, foro eleito pela recorrente. Vícios no julgado. Inexistência. Embargos de declaração rejeitados[15].
PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. COMPETÊNCIA TERRITORIAL. EXEGESE DO ARTIGO 109, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. O Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que a expressão "seção judiciária" do § 2º do artigo 109 da Constituição Federal, também engloba a expressão "capital do Estado", podendo o autor ajuizar a ação contra a União tanto na vara federal da capital, quanto na vara federal da comarca onde tiver domicílio. 2. A divergência jurisprudencial, a par de não ter sido demonstrada na forma regimental, não restou configurada porquanto o aresto paradigma não guarda similitude fática com a hipótese em exame, sendo imprescindível para a caracterização do dissídio que os acórdãos confrontados tenham sido proferidos em situações fáticas semelhantes, o que não se evidencia no caso dos autos. 3. Recurso provido parcialmente[16].
Diante do exposto, parecia que a questão estava definitivamente encerrada. Afinal, desde 2006, existe Súmula da própria Advocacia-Geral da União reconhecendo a possibilidade de interposição de ação contra a União Federal na Capital do Estado em que é domiciliado o autor.
Mas, em 2009, a orientação foi rompida pelo seguinte julgado do STF:
COMPETÊNCIA – JUSTIÇA FEDERAL – AÇÃO CONTRA A UNIÃO. O rol de situações contempladas no §2º do artigo 109 da Carta Federal, a ensejar a escolha pelo autor de ação contra a União, é exaustivo. Descabe conclusão que não se afine com o que previsto constitucionalmente, por exemplo, a possibilidade de a ação ser ajuizada na capital do Estado
[...]
Na espécie, fixou-se competência à margem da previsão constitucional. Esta última viabiliza o ajuizamento da ação contra a União na seção judiciária em que domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda, onde estiver situada a coisa ou, ainda, no Distrito Federal - §2º do artigo 109 da Carta Federal. A Corte de Origem acabou por criar mais uma opção ao fixar a competência da Seção Judiciária Federal de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, apesar de a autora da ação ter domicílio no Município de São Borja. Provejo o extraordinário para restabelecer a decisão do Juízo. Fica definida, assim, a competência da seção judiciária localizada na comarca de domicílio da autora[17].
O estudo do acórdão revela que o STF limitou-se a afirmar que o artigo 109, §2º, da Constituição Federal não poderia ser interpretado de forma a incluir a Capital do Estado como uma das opções de foro. Vale dizer, o STF fez uma interpretação restritiva do termo ‘seção judiciária’.
Quanto ao referido julgado, é importante ressaltar um aspecto. Como dito, o STF limitou-se a interpretar de forma restritiva o termo ‘seção judiciária’. Não analisou um importante argumento para determinação da competência das ações intentadas em face da União Federal.
Quando houve a promulgação da Constituição Federal, em 1988, o processo de interiorização da Justiça Federal ainda era muito pequeno. Portanto, é possível afirmar que, ao elaborar o artigo 109, §2º, da CF, o constituinte originário pretendeu possibilitar a escolha do autor pela interposição de ação em face da União na Capital do Estado, de forma a facilitar ainda mais o acesso à prestação jurisdicional.
Passados 20 anos da promulgação da Constituição de 1988, a situação fática mudou por completo. Houve um intenso processo de interiorização e, sobretudo com a criação dos Juizados Especiais Federais, o acesso à justiça restou facilitado.
Não haveria, portanto, permanência de base fática para manter uma interpretação que possibilitasse a competência concorrente para interposição de ação na Capital do Estado, ou no domicílio do autor.
Há mais. Como dito, a Justiça Federal busca, cada vez mais, o processo de interiorização, com a inauguração de Varas Federais em diversas cidades do interior do Brasil.
O escopo da interiorização é, de forma imediata, facilitar o acesso do jurisdicionado ao Poder Judiciário, bem como aproximar o julgador dos fatos, de forma a possibilitar a melhor prestação jurisdicional em termos qualitativos e quantitativos.
O entendimento de que o autor é livre para escolher pela interposição de ação em face da União Federal na Capital do Estado, gera o risco de esvaziamento das Varas Federais inauguradas no interior e um acúmulo de processos na Capital, em franco prejuízo à eficácia da prestação jurisdicional.
No caso em comento, é possível sustentar a impossibilidade de interposição de ação contra a União Federal na Capital do Estado, na medida em que haveria prejuízo ao Princípio Constitucional da Eficiência, instituído pelo Artigo 37 da Constituição Federal.
Apesar de inegável o direito individual de amplo acesso ao Poder Judiciário, não se pode falar em direito absoluto. Referido direito individual precisa ser harmonizado com as demais normas e princípios constitucionais.
Em uma interpretação harmônica entre o direito individual de amplo acesso ao Judiciário e o Princípio da Eficácia (artigo 37 da Constituição Federal), é plenamente possível restringir a interpretação do artigo 109, §2º, da CF, de forma a excluir a opção do autor em interpor ação na Capital.
Essa tese foi acolhida em julgado recente do Tribunal Regional Federal da Segunda Região:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. PROCESSUAL CIVIL. JUÍZO FEDERAL DA CAPITAL E JUÍZO FEDERAL DO INTERIOR. AÇÃO EM FACE DA UNIÃO FEDERAL. CRITÉRIO FUNCIONAL. DOMICÍLIO DO AUTOR. PRECEDENTE. 1 - Com a interiorização da Justiça Federal, houve maior facilitação de acesso do jurisdicionado à prestação jurisdicional. A divisão da Seção Judiciária em várias localidades atendeu à exigência de se prestar jurisdição de maneira mais ágil e fácil, com base em imperativo de ordem pública. Daí o critério ser o funcional, tal como se verificou no âmbito das Justiças Estaduais em determinadas Comarcas com a institucionalização dos Foros Regionais ou Varas Distritais. 2 - O Juízo Federal da 15ª Vara do Rio de Janeiro é incompetente para processar e julgar a ação de rito ordinário, vez que o domicílio da parte autora é abrangido pelas Varas Federais de Duque de Caxias, as quais afiguram-se como uma parcela do foro da Seção Judiciária do Estado do Rio de Janeiro, desmembrada para fins funcionais e originando, via de consequência, competência absoluta. 3 - Não se trata de Seções Judiciárias distintas, mas de uma única Seção Judiciária subdividida em Subseções Judiciárias, daí porque não incide à hipótese o artigo 109 da Constituição da República. 4 - Conflito de competência conhecido, declarando-se competente o Juízo suscitante[18].
Note-se que esse entendimento não demanda qualquer modificação do texto constitucional, para substituir a expressão ‘seção judiciária’ por ‘subseção judiciária’. Isso porque estamos diante do fenômeno da mutação constitucional, que foi assim definida pelo próprio STF:
A INTERPRETAÇÃO JUDICIAL COMO INSTRUMENTO DE MUTAÇÃO INFORMAL DA CONSTITUIÇÃO. - A questão dos processos informais de mutação constitucional e o papel do Poder Judiciário: a interpretação judicial como instrumento juridicamente idôneo de mudança informal da Constituição. A legitimidade da adequação, mediante interpretação do Poder Judiciário, da própria Constituição da República, se e quando imperioso compatibilizá-la, mediante exegese atualizadora, com as novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam, em seus múltiplos e complexos aspectos, a sociedade contemporânea[19].
A interpretação exposta é exatamente o caso de mutação constitucional. É possível uma nova leitura do artigo 109, §2º, da CF/88, em função da alteração completa da situação fática.
Com o entendimento exarado pelo STF em 2009, parecia existir uma mudança de orientação da Corte Suprema. Contudo, em julgamentos posteriores, foi retomado o entendimento original:
Agravo regimental no recurso extraordinário. Ações propostas contra a União. Competência. Justiça Federal. 1. A jurisprudência desta Corte firmou entendimento no sentido de que a parte autora pode optar pelo ajuizamento da ação contra a União na capital do Estado-membro, mesmo quando instalada Vara da Justiça Federal no município do mesmo Estado em que domiciliada. 2. Agravo regimental não provido
[...]
O referido precedente discute, “à luz do art. 109, § 2º, da Constituição Federal, os critérios de aplicação desse dispositivo — que trata da competência territorial de causas ajuizadas contra a União — e a extensão, ou não, da regra nele prevista aos demais entes da administração indireta federal, como autarquias e fundações, permitindo-se que elas sejam demandadas fora de suas sedes ou em localidades que não possuem agência ou sucursal”.
Já o caso ora em análise diz respeito à faculdade da parte autora poder optar pelo ajuizamento de ação contra a União na capital de seu Estado, mesmo quando houver Vara da Justiça Federal instalada no local de seu domicílio.
Conforme asseverado na decisão agravada, o acórdão recorrido está em sintonia com a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal, que reconhece tal possibilidade. Nesse sentido, destaco trecho da fundamentação da decisão proferida pelo Ministro Ricardo Lewandowski, no julgamento do RE nº 599.188/PR, DJe de 9/5/11
[...]
Ressalte-se, ademais, que o art. 109, § 2º, da Constituição deixou exclusivamente a critério do autor a escolha do juízo no qual pretende propor a demanda, dentre aqueles nele previstos, sem estabelecer nenhuma ressalva quanto a essa opção[20].
Verifica-se, portanto, que o entendimento que prevalece no STF é aquele que permite, a critério do autor, a interposição de ação em face da União Federal na Capital do Estado em que possui domicílio, ou na Vara Federal de seu domicílio.
Por fim, ante o exposto, entende-se que seria primordial que o STF, diante do fenômeno da mutação constitucional, realizasse nova leitura do artigo 109, §2º, da CF/88, de modo a estabelecer interpretação consoante a realidade atual.
4 CONCLUSÃO
A jurisdição é função própria e exclusiva do Poder Judiciário. Trata-se da aplicação do direito objetivo na composição dos conflitos de interesses que ocorrem na sociedade.
Competência, por sua vez, é a distribuição da jurisdição entre os diversos órgãos titulares da função jurisdicional. A competência tem como objeto, primordialmente, a delimitação da jurisdição entre os diversos órgãos do Poder Judiciário (detentor da função jurisdicional).
Dentre os diversos critérios para fixação da competência, merece destaque a competência de foro. Foro é o local onde o juiz exerce as suas funções, é a unidade territorial sobre a qual se exerce o poder jurisdicional.
A competência para ações interpostas em face da União Federal está disposta no artigo 109 da Constituição Federal. Referido dispositivo determina a competência absoluta da Justiça Federal para julgamento das ações interpostas em face da União Federal.
O §1º e o §2º do artigo 109 da Constituição Federal aplicam-se, somente, à União Federal e não às Autarquias ou Fundações Federais.
O artigo 109, §2º, da Constituição Federal, arrola, expressamente, os foros competentes para ações interpostas em face da União Federal. Na hipótese em que o autor está domiciliado em cidade do interior de Estado, existem as seguintes opções: (i) foro do domicílio do autor, (ii) Distrito Federal, (iii) onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda e (iv) onde esteja situada a coisa.
Segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal, a escolha do foro cabe exclusivamente ao autor da ação. Trata-se de foro concorrente.
A Súmula 23 da Advocacia-Geral da União e a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal garantem, a critério do autor, a interposição de ação contra a União Federal também na Capital do Estado. Para tanto, irrelevante se o autor é domiciliado em cidade que é sede de Vara Federal.