A agressão como única medida de Justiça

23/09/2014 às 11:32
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Não é preciso ser muito perspicaz para perceber que evoluímos pouco desde Platão.

Platão resumiu bem a problemática da justiça em seu livro a República. Numa discussão com Sócrates, o sofista Trasímaco afirma que o justo é aquilo que o governante diz ser justo e que a justiça é a conveniência do mais forte. Sócrates discorda dele sustentando a tese de que a justiça exige que o próprio governante se sujeite ao império da Lei, pois caso contrário ele provocaria a ruína da cidade. Sob os argumentos de ambos pode-se ver claramente que Trasímaco acredita na virtude da desigualdade expressada na Lei e Sócrates, ao contrário dele, afirma que a justiça é a virtude que iguala os homens sujeitando-os à mesma Lei.

Justiça, diziam os romanos, é atribuir a cada qual o que é seu (suum cuique tribuere). Os cristãos acreditam que “O justo viverá pela fé” (Romanos 1:17). O problema com estes dois princípios é evidente. Roma era capaz de atribuir uma coisa ao cidadão romano, outra às gentes conquistadas e quase nada ao escravo. Nem todos partilham a mesma fé e a medida de justiça do cristão não é incapaz de se aplicar aos que tem outra religião.

A Revolução Francesa tentou equiparar todos os homens, mas foi incapaz de suprimir todas as distinções. (Art.1.º Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum). Inspirado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão elaborada pelos revolucionários franceses, o Direito Internacional moderno tentou equiparar todos os homens independente de raça, credo, religião, sexo, situação econômica, etc...

“1 - Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

2 - Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.”

As distinções entre os homens, porém, continuaram inevitáveis, pois há Estados que assinaram a Declaração Universal dos Direitos do Homem e não a cumprem (Arábia Saudita e Israel, por exemplo). Dentro da própria ONU há Estados que tem mais direitos que outros (o poder de veto das potências que tem acento permanente no Conselho de Segurança).

Vinte e cinco séculos de civilização ocidental se passaram desde que Platão escreveu seu diálogo. Mas continuamos empacados no mesmo problema. A desigualdade continua sendo a fonte da injustiça e os poderosos (aqueles que comandam soldados e aqueles que portam armas frente a uma população desarmada) se recusam a se sujeitar a Lei como se a força fosse a única regra válida. A crença na legitimidade da agressão praticada contra o desigual, que quase sempre é considerado também um ser inferior, explica tanto o bombardeio norte-americano na Síria quanto a brutal execução do camelô por um PM em São Paulo.

A propósito de combater o ISIS, o governo dos EUA julgou ter o direito de violar o espaço aéreo de outro país despejando bombas inclusive sobre sírios inocentes. Sob o pretexto de conter o camelô, um PM o matou como se ele fosse um inseto. Mas se alguém revidasse com base na Lei de Talião, tanto os governantes norte-americanos quanto os comandantes da PM paulista ficariam chocados.

Aqueles que presumem ter o direito de ferir sem ser feridos, de matar sem ser mortos, não são guiados pela Lei ou pela justiça e sim pela fé na superioridade de sua missão. Aos olhos deles a inferioridade dos inimigos que eles combatem é manifesta. As vítimas inocentes dos soldados norte-americanos e dos PMs brasileiros são apenas detalhes. Quem confunde agressão com justiça não pode cometer o erro de humanizar sua vítima. Por isto estes assassinatos são sempre descritos como danos colaterais e os assassinos aparecem no discurso como agentes da civilização que cumpriram seu dever. Durante os Julgamentos de Nuremberg, entretanto, vários nazistas que alegaram que tinham apenas cumprido seu dever foram condenados e enforcados.

O dever de matar tem que ser civilizado pelo discurso nos EUA e em São Paulo. Caso contrário a questão da justiça teria que ser debatida por aqueles que noticiam tanto os ataques dos EUA aos outros países quanto os homicídios cometidos pela PM nas ruas paulistas. A fé na desigualdade entre os homens é sempre preservada, portanto, no discurso jornalístico. A Lei Internacional que iguala todos os homens é esquecida e a brutalidade segue sendo a única medida da justiça como se o justo fosse realmente uma conveniência do mais forte. Até que alguém revide com força suficiente. 

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Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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