Um estudo hermenêutico da obra O círculo de giz caucasiano, de Bertold Brecht

30/09/2014 às 10:33
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Uma breve análise do livro "O circulo de giz caucasiano", de Bertold Brecht, onde serão abordadas concepções a respeito da Hermenêutica Jurídica, desde seu surgimento e primeiras correntes doutrinárias até os estudos interpretativos atualmente aplicados.

RESUMO

Será exposta, neste Artigo Científico, de forma clara, uma breve análise do livro O circulo de giz caucasiano, de Bertold Brecht. Nele serão abordadas concepções a respeito da Hermenêutica Jurídica, desde seu surgimento e primeiras correntes doutrinárias até os estudos interpretativos atualmente aplicados pelos operadores do Direito. Este trabalho também terá como ênfase, através da análise dos processos de interpretação existentes, avaliar o caso jurídico apresentado na obra de Brecht, tendo como relevância a ordem de teorizar os estudos e pesquisas de acadêmicos em Direito e áreas afins. A obra analisada trata de questões vitais sobre a aplicação prática do Direito, não apenas no emprego autônomo da norma, mas no engajamento dos fatos sociais que desencadearam no equitativo exercício da justiça e, assim, perpetraram um reverso na trama caucasiana.

PALAVRAS-CHAVE: Hermenêutica Jurídica; Correntes; Interpretação; Justiça.


[1] Acadêmica de Hermenêutica Jurídica, do curso de Bacharelado em Direito, no âmbito da Faculdade AGES, Paripiranga (BA), 2010.2.

INTRODUÇÃO

Neste artigo será realizada uma sucinta análise da Hermenêutica Jurídica, seu histórico, do que trata e seus fundamentos teóricos, tendo como base a obra O círculo de giz caucasiano, de autoria do escritor alemão Bertold Brecht.

            Eugen Bertold Friedrich Brecht ([1898]-[1956]) foi um importante dramaturgo, poeta e encenador alemão do século XX. Seus trabalhos artísticos e teóricos, durante os anos [1954] e [1955], influenciaram profundamente o teatro contemporâneo. Como artista, seus trabalhos, concentraram-se na crítica ao desenvolvimento das relações humanas no sistema capitalista. Algumas de suas principais obras são: Um homem é um homem, em que o autor faz crescer a ideia do homem como um ser transformável, Mãe coragem e seus filhos, sobre a Guerra dos Trinta Anos, escrita no exílio, no começo da Segunda Guerra Mundial,  A vida de Galileu [1] e O círculo de giz caucasiano, peça escrita pelo dramaturgo que foi convertida em livro somente após sua morte e traduzida em vários idiomas.

            Nessa perspectiva, este trabalho traça um sucinto diagnóstico acerca da obra supracitada com o objetivo de refletir as questões nela tratadas que comungam com as observadas nos estudos hermenêuticos, como também expor ponderações elaboradas por teóricos a respeito de temáticas referentes a essa ciência que são importantes para a sua compreensão prática.

1 UMA LEITURA DE O CÍRCULO DE GIZ CAUCASIANO

            A obra consiste em uma peça de teatro, situada na época da Revolução Russa. Bertold Brecht, seu autor, conta a história de uma disputa por um vale fértil. O mote acontece durante a guerra na Geórgia, em que alguns camponeses fugindo deixaram para trás um vale, que quando desocupado foi logo invadido e defendido por outro grupo de camponeses, que cuidaram do local e inclusive trataram de melhorar, criando um sistema de irrigação. A questão é que após a guerra os antigos donos da terra retornaram e encontraram-na ocupada. Daí surgiu o questionamento: quem seriam os legítimos donos da terra, os antigos ou os novos? Sentados para discutir isso, alguém sugere ser assistida uma peça onde também se ilustra uma disputa.

A peça consiste na narrativa de um antigo drama chinês, a história de Gruscha Vaschnadze, criada de um reino invadido, cujo governador é morto e sua esposa tem de fugir deixando para trás seu filho. Grucha, que tem um coração bom, vendo aquela criança abandonada pela mãe e jurada de morte pelos inimigos de seu pai, fica com ela, fugindo incansavelmente daqueles que a procuram a fim de matá-la.

Passados alguns anos, Grucha e Miguel, o filho-herdeiro, são encontrados pelos guardas enviados por Natela Abaschvíli, a legítima mãe do garoto, e a partir daí entra na história, o Juiz Azdak, que se faz passar por defensor das convenções e da moral corrente e que foi designado para decidir o futuro da criança. A decisão pautava-se na seguinte questão: com quem deveria ficar o menino, com a mãe natural que o havia abandonado ainda bebê ou com a criada que teve compaixão dele a ponto de arriscar sua vida para protegê-lo?

            O juiz, então, recorrendo à sabedoria do rei Salomão, que governou Israel no século X a.C., traça com giz um círculo no chão e, em seu interior, coloca a criança, dispondo que ambas as mulheres (a mãe e a criada) deveriam segurar cada uma delas em uma das mãos da criança e aquela que conseguisse retirá-la do interior do círculo ficaria com ela. A criada, por amar o menino e não querer vê-lo machucado desiste de puxá-lo, perdendo assim, a disputa. No entanto, o juiz, sabiamente, concede a Grucha a guarda de Miguel por enxergar o amor dela para com ele e considerá-la a pessoa mais adequada para cuidar de uma criança.

2 HERMENÊUTICA JURÍDICA: UMA BREVE ANÁLISE

            A palavra hermenêutica é derivada, etimologicamente, do verbo grego hermeneuein, que significa interpretar, declarar, anunciar. Muitos autores associam o termo a Hermes, o deus grego mensageiro do Olimpo, que levava as notícias enviadas pelos deuses aos homens. Hermes seria o deus, na mitologia grega, capaz de transformar tudo o que a mente humana não compreendesse a fim de que o significado das coisas pudesse ser alcançado. Ele seria um "deus intérprete", na medida em que era a entidade sobrenatural dotada de capacidade de traduzir e decifrar o incompreensível para os homens.

Inicialmente, a hermenêutica esteve relacionada à interpretação de textos religiosos, como da Sagrada Escritura, “[...] sendo aplicada desde a época dos patriarcas do judaísmo, passando pela teologia medieval e a Reforma, até a teologia moderna” (MACIEL, 2010). Na Grécia antiga, a hermenêutica estava voltada para a transmissão de uma mensagem, entendida muito mais como uma técnica, com a função de anunciar, esclarecer, traduzir algo que não estava claro. Ali foi discutida principalmente por Platão e Aristóteles. Porém, foram os romanos, admiradores da cultura clássica, que passaram o conceito de hermenêutica para a interpretatio, principalmente devido ao trabalho dos prudentes, que não se contentavam em entender o texto da lei, mas buscavam compreender o seu significado nos efeitos práticos produzidos na vida das pessoas, formando a jurisprudência (juris prudente). Segundo José Fábio Maciel,

essa forma de pensar (interpretar) tipicamente romana retorna ao centro dos estudos jurídicos a partir do resgate do Corpus Iuris Civilis, de Justiniano, no séc. XII. Coube à denominada Escola dos Glosadores primeiramente estudar essa fenomenal copilação levada a cabo por Justiniano no séc. VI (Idem).

A Hermenêutica Jurídica que se conhece hoje diz respeito à atividade que permeia todo o exercício dos operadores do Direito, principalmente, a atuação do magistrado, que é o responsável pela função de “dizer o direito”, ou seja, de aplicar a norma jurídica ao caso concreto.

Segundo Alessandra Moraes Teixeira (2010), no século XIX, em virtude do surgimento das grandes codificações surgiram as denominadas Escolas de Interpretação ou Sistemas Hermenêuticos que são correntes de pensamento que procuram estabelecer a forma “ideal” de relacionamento entre a norma jurídica e seu aplicador, na tentativa de se determinar quais seriam as interpretações possíveis e qual o grau de liberdade a ser conferida ao seu intérprete. Essas Escolas são divididas por alguns autores em duas vertentes: as que seguem as chamadas teorias subjetivas, que são aquelas que buscam interpretar e aplicar a norma conforme a vontade do legislador (mens legislatoris) e as que professam as teorias objetivas, que buscam interpretar a lei por ela mesma, abstraindo-se a figura do legislador. Entretanto, percebe-se que há, hoje, a necessidade de superar essas ideias isoladamente, estabelecendo um elo entre esses pontos de vista a fim de se chegar a um resultado adequado às novas exigências sociais.

Inúmeras foram as correntes que se destacaram nesse tipo de estudo, no entanto, aqui serão abordadas apenas quatro, quais sejam, a Escola da Exegese ou Dogmática, a Escola Histórico-Evolutiva, a Escola da Livre Investigação Científica e a Escola do Direito Livre.

A Escola da Exegese teve como principais colaboradores Alexandre Duranton (1783-1866), Charles Aubry (1803-1883), Frédéric Charles Rau (1807-1877), dentre outros. Essa escola teve como ideia principal o fato de que o intérprete deve buscar apenas reconhecer na norma jurídica a vontade do legislador, isto é, o que este quis dizer ao elaborar a lei. A Exegese não leva em conta a constante evolução social e o quanto a sociedade mudou desde a elaboração da norma. Por essa razão, o método utilizado por seus defensores é sempre o gramatical ou literal, pois para eles as palavras carregam a vontade originária do legislador.

Como afirma Teixeira, “a ascensão da Escola da Exegese no início do século XIX é explicável pelo momento histórico, pois não podemos nos esquecer que ela surge com o código de Napoleão que como qualquer Código, foi inicialmente considerado obra irretocável [...]” (2010, p. 06). Porém, atualmente, essa corrente é relegada a um valor meramente histórico, por defender princípios bastante rígidos e intolerantes.

A Escola Histórico-Evolutiva desenvolveu-se no fim do século XIX quando foi verificada a necessidade de adaptação das normas aos novos tempos. Os teóricos simpatizantes dessa escola, ao contrário dos exegetas, buscam basear-se na vontade autônoma da própria lei (mens legis), extraída pelo aplicador do Direito. Contudo, é preciso ressaltar que assim como a Escola Dogmática essa corrente não admitia que o sistema fosse omisso, ou seja, o intérprete não tem qualquer poder integrador (suprimir lacunas), devendo apenas manter-se no âmbito do texto legal. Essa corrente doutrinária teve como principais pensadores: Savigny, Philipp Heck, Max Rumelin e Soll.

Ao final do século XIX, surge na França a Escola da Livre Investigação Científica do Direito, criada por François Geny. Essa escola trouxe um importante diferencial em relação às duas correntes anteriores, que foi aceitar outras fontes que não a lei, admitindo que quando houver lacuna esta deve ser preenchida, isto é, integrada. Vale destacar que ela, como a Exegese, busca a mens legislatoris, ou seja, a vontade do legislador, ficando o intérprete incumbido de não contrariar o texto legal, apenas explicá-lo ou integrá-lo (completá-lo), quando for necessário.

A Escola do Direito Livre é uma corrente interpretativa que nasceu “na Alemanha em 1903, tendo como marco a conferência apresentada por Eugen Ehrlich sobre ‘A luta pela ciência do Direito’, e terá a sua consagração com o manifesto por um ‘Movimento do Direito Livre de Herman Kantorowicz’, em 1906” (SOARES, 2010). Para ela, o único objetivo do Direito é a Justiça e, portanto, havendo ou não uma lei escrita, o magistrado está autorizado a se nortear por essa finalidade maior. De acordo com Teixeira (2010), “a grande máxima alardeada por essa escola é ‘fiat justitia, pereat mundus’ (‘faça-se justiça, ainda que o mundo pereça’)” (p. 08). Assim, seus teóricos defendem até mesmo a decisão “contra legem” nos casos em que o juiz achar necessário. Essa escola foi muito criticada por seu caráter radical no que se refere à excessiva liberdade que é conferida ao juiz, colocando sobre ele a responsabilidade de realizar justiça, o que pode fazer com que este se deixe levar por sentimentalismos e intuições de ordem subjetiva e não por argumentos consistentes, o que abalaria os princípios jurídicos e ameaçaria a ordem jurídica.

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3 COMO SE DÁ UM PROCESSO INTERPRETATIVO?

No momento em que o juiz está diante de um processo e precisa prolatar a sua decisão, isto é, dar a sua sentença ao caso, ele precisa proceder um processo interpretativo, seja para decifrar o caso sub judice, seja para compreender a norma a ser aplicada a ele. A interpretação consiste na fixação de uma determinada relação jurídica, mediante a percepção clara e exata da norma estabelecida pelo legislador. Segundo Miguel Reale, “[...] é um momento de intersubjetividade: o ato interpretativo do juiz, procurando captar e trazer a ele o ato de outrem, no sentido de se apoderar de um significado objetivamente válido” (REALE apud DINIZ, 2010, p. 431).

Nesse sentido, o magistrado durante a sua atuação para encontrar a solução do conflito existente no mundo dos fatos, aplica a norma jurídica, mas para isso deve buscar o sentido das normas. Como afirma Tércio Sampaio Ferraz Júnior, este procura “a determinação do sentido das normas, o correto entendimento do significado dos seus textos e intenções, tendo em vista decibilidade de conflitos constitui a tarefa da dogmática hermenêutica” (FERRAZ JR., 2001, p. 252).

De acordo com Maria Helena Diniz, “a hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar [...]” (DINIZ, 2010, p. 431), é ela que “[...] contém regras bem ordenadas que fixam os critérios e princípios que deverão nortear a interpretação” (Idem). No entanto, muitos autores cometem um grave erro ao tomar os conceitos de interpretação e hermenêutica e usarem-nos como sinônimos, pois a hermenêutica é a ciência que estuda o processo interpretativo e não pode ser confundida com a própria arte de interpretar.

Atualmente, a aplicação do Direito pode ser concebida por meio de três processos, são eles: subsunção, integração ou correção. A subsunção é a aplicação de uma norma geral ao caso individual, ou seja, consiste na utilização de uma norma específica ao caso concreto. A integração é utilizada quando o órgão judicante não encontra norma aplicável ao caso concreto por haver lacuna, assim, este aplica não as leis, mas outras normas, como a analogia (que é o método de interpretação que consiste em aplicar a um caso não previsto pelo legislador, uma norma que rege caso símili ad símile, isto é, análogo, semelhante), os costumes (prática social reiterada e considerada obrigatória), os princípios gerais do Direito (que são preceitos gerais e abstratos de Direito que decorrem do próprio fundamento da legislação positiva, constituindo os pressupostos lógicos necessários das normas legislativas) ou a equidade (que é aplicação ideal da norma ao caso concreto, ou mais, é a justiça aplicada ao caso particular), que estão dispostos nos artigos 4º e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) [2]. Já a correção ocorre quando o magistrado após verificar que não pode subsumir o fato a nenhuma norma específica, por haver incoerência no sistema, ante ao que se chama antinomia, isto é, a existência de várias soluções incompatíveis, deve fazer uma interpretação corretiva.

Vale ressaltar que na aplicação do Direito por subsunção, o magistrado pode encontrar alguns dos problemas inerentes à aplicação dessa técnica, que podem ser: a falta de informação a respeito do caso em análise ou a indeterminação semântica dos conceitos normativos, isto é, vaguidades ou ambiguidades existentes nos conceitos gerais contidos na norma a ser aplicada.

Na fundamentação de sua decisão, o juiz necessita utilizar técnicas interpretativas cuja função é orientar a tarefa de interpretação, desvendando as várias possibilidades de aplicação da norma. Existem cinco técnicas, são elas: a gramatical, a sistemática, a lógica, a teleológica e a histórica. A técnica gramatical consiste em fixar-se na literalidade da norma, isto é, o intérprete, no caso o magistrado, fica preso ao que o dispositivo legal diz. Nesse sentido, Maria Helena Diniz afirma que na utilização desse processo interpretativo verifica-se o sentido dos vocábulos presentes no texto normativo, ou seja, sua correspondência com a realidade que eles designam (Ibidem, p. 438-439). O método lógico busca descobrir o sentido da lei sem qualquer elemento externo senão a própria norma e sua racionalidade, pretende, como afirma Diniz, “[...] desvendar o sentido e o alcance da norma, estudando-a por meios de raciocínios lógicos, analisando os períodos da lei e combinando-os entre si, com o escopo de atingir perfeita compatibilidade” (op. cit., p. 439). O processo sistemático considera, como o próprio nome diz, o sistema ao qual a norma jurídica se enquadra frente ao caso concreto, consiste em não interpretar os dispositivos isoladamente, mas os integrando a outros sistemas do ordenamento jurídico. A técnica interpretativa histórica objetiva encontrar o sentido da norma pela reconstituição de seu conteúdo original, assim, o intérprete buscará a chamada occasio legis, isto é, o momento de produção da norma. Esse método baseia-se na concepção de Maria Helena “[...] na averiguação dos antecedentes da norma [...] desde o projeto de lei, sua justificativa ou exposição de motivos, emendas, aprovação e promulgação, ou as circunstancias fáticas que lhe deram origem [...]” (op. cit., p. 441). E, por fim, o processo sociológico ou teleológico, que consiste na busca pela finalidade social da norma jurídica, segundo Alessandra Moraes Teixeira, “a aplicação deste método baseia-se no fato de que o direito não é um fim em si mesmo, mas representa um instrumento para satisfação de interesses coletivos, um mecanismo para a realização de necessidades de ordem pratica” (TEIXEIRA, 2010, p. 13).

Os efeitos advindos da interpretação, que nada mais é que o resultado a que chegou o magistrado na sua busca em desvendar o sentido e o alcance do texto normativo podem ser declarativo, quando houver correspondência entre a expressão linguístico-legal e a vontade da lei (voluntas legis), isto é, o sentido da norma condiz com a sua letra de modo que o intérprete (o magistrado) declara somente o que o enunciado normativo contém, os parâmetros que depreendem de sua letra, na mais e nada menos, extensivo, quando há a expansão do alcance normativo da lei aplicável ao caso concreto, e também pode ser restritivo, quando a interpretação limita-se a incidência do comando normativo, reduzindo o campo da norma e possibilitando a aplicação razoável e justa da norma de modo que corresponda à sua conexão de sentido.

4 ANÁLISE HERMENÊUTICA DO CASO APRESENTADO NA OBRA BRECHTIANA

            Azdak, o leigo juiz da trama de Bertold Brecht, é definido por Roland Barthes em seu diagnóstico acerca de O círculo de giz caucasiano como “[...] um trapaceiro sutil e simpático, feito juiz por uma inversão de situação” (BARTHES apud BRECHT, 2002, p. 206). É eleito pelos Couraceiros para ser juiz daquela província por não haver até então pessoa adequada para o cargo. Azdak é um juiz fora do comum, “[...] profere vereditos saborosos, inesperados, de profundo bom senso, mas sem nenhuma base na legalidade” (Idem).

No entanto, é justamente ele quem teve a penosa função de decidir com quem deveria ficar o pequeno Miguel, com a mãe natural que o abandonou ainda bebê e que agora reclama sua posse a fim de receber a herança de seu falecido esposo ou com a pobre Grucha, mãe de criação, que salvou sua vida e cuidou dele até então. Para isso, Azdak escutou ambas as mulheres perante Tribunal, porém achou mais cabível pô-las à prova a fim de dar o veredito de qual delas ficaria com a criança. Traçou com giz um circulo no chão e pôs o menino no centro, ordenou que as mulheres (querelante e querelada) agarrassem cada qual uma das mãos dele para que puxasse cada uma de seu lado o menino, aquela que conseguisse tirá-lo de dentro do círculo seria tida como a verdadeira mãe da criança. Porém, Grucha que sempre demonstrou maior afeto pelo menino não quis subjugá-lo à prova, por medo de machucá-lo, perdendo assim, a disputa. Mas para a surpresa de todos, Azdak concedeu, sabiamente, a guarda de Miguel a Grucha por entender que somente uma verdadeira mãe, mesmo que apenas de coração, ama a ponto de abdicar sua chance de ficar com ele para não vê-lo sofrer.

            O veredito de Azdak não foi formulado segundo princípios legais, mas baseado no que poderia ser avaliado como ilegalidade. No entanto, se este não tivesse assim decidido, a justiça não sobreviria, seria comprimida, esmagada pelo Direito formal dos homens, como afirma Barthes:

[...] numa sociedade má, onde o direito formal não passa de uma hipocrisia a serviço dos poderosos, apenas um juiz trapaceiro pode tornar justa a justiça. O personagem de Azdak explicita brilhantemente a ideia de que à noção de Justiça eterna e mistificadora se opõe uma justiça concreta, adaptada às próprias contradições da História (Ibidem, p. 208).

            A decisão do caso da guarda de Miguel foi feita, baseando-se nos métodos adotadas para a aplicação do Direito nos dias atuais, pelo método de integração, tendo como base a equidade como elemento de adaptação da norma ao caso concreto. De acordo com Maria Helena Diniz, “apresenta-se a equidade como a capacidade que a norma tem de atenuar o seu rigor, adaptando-se ao caso sub judice [...]. A equidade seria uma válvula de segurança que possibilita aliviar a tensão e a antinomia entre a norma e a realidade, a revolta dos fatos contra os códigos” (DINIZ, 2010, p. 482).

No episódio explicitado em O círculo de giz caucasiano deveria, certamente, haver uma norma legal aplicável ao caso sub judice que foi deixada de lado e, tão pouco foi citada, para ser utilizada a decisão mais justa conforme os fatos e a realidade a qual se encontravam os personagens. Dessa maneira, Azdak buscou acima de tudo fazer cumprir o ideal de justiça, mesmo havendo preceito legal diferente, o que remete à posição doutrinária dos adeptos da Escola do Direito Livre (faça-se a justiça, mesmo que o mundo pereça). Segundo Vicente Ráo, na aplicação da equidade o magistrado deve, “[…] entre várias soluções possíveis […] preferir a mais humana, por ser a que melhor atende à justiça” (RÁO, 1941, p. 371 apud DINIZ, 2010, p. 483).

            Em sua função interpretativa, a equidade aparece, neste caso, na aplicação do método teleológico, que requer a valoração do Direito a fim de que o órgão jurisdicional possa acompanhar as vicissitudes da realidade concreta. Na concepção de Alessandra Teixeira (2010), o processo teleológico é a busca pelo sentido da norma por meio do conhecimento da finalidade que esta pretende atingir na sociedade, é por essa razão que alguns autores o denominam de método sociológico. No uso desse mecanismo o intérprete sempre deverá buscar o “para quê” da norma e aplicá-la de maneira que esta alcance seu ideal.

            O efeito sucedido a partir desse processo interpretativo foi extensivo, pois houve a expansão do alcance normativo da lei aplicável ao caso concreto. Nesse caso, o legislador ao elaborar a norma colocou um sentido menos abrangente do que o necessário a ela, assim, coube ao magistrado corrigir esse defeito, ampliando o alcance do texto normativo, a fim de que ela possa cumprir veemente os seus objetivos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da leitura da obra O círculo de giz caucasiano percebe-se que o autor ao emendar em sua peça principal uma outra peça interna, mas nem por isso menos importante, pelo contrário, modifica o olhar do leitor em meio a obra como um todo. Brecht, por meio de sua escrita que por sinal é bastante didática e clara, busca levantar questionamentos pertinentes à problemática abordada, estabelecendo elos discursivos com aquilo que ele mesmo acha importante salientar, como a bondade, o amor, a busca da justiça, a não aceitação das imposições, pontos que se tornam fundamentais para a compreensão de questões centrais não apenas na época em que sua obra foi escrita, mas também em tempos hodiernos.

Nesse sentido, a lição retirada desse conto de fonte chinesa e cheia de ressonâncias bíblicas, como diz o prólogo do livro, serve não somente aos camponeses dos colcoses que disputam o vale fértil, mas também a todos aqueles que buscam a promoção da justiça, pois traz em consonância valores éticos e morais que despertam nos leitores questionamentos tendenciosos a respeito da justa aplicação do Direito em harmonia com a realidade dos fatos sociais e não apenas no exercício concreto das leis.

6 REFERÊNCIAS

BRECHT, Bertold. O círculo de giz caucasiano. [trad. Manuel Bandeira]. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2002.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 2010.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

MACIEL, José Fábio R. História da Hermenêutica Jurídica. Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=1011>. Acesso em: 29 set. 2010.

SOARES, Clodovil M. As Teorias do Direito e Interpretação. Disponível em: <http://clodovilsoares.files.wordpress.com/2008/07/teorias-do-direito-e-interpretacao-tema-2.ppt.>. Acesso em 29 set. 2010.

TEIXEIRA, Alessandra Moraes. Introdução ao Estudo do Direito II. Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/24574657/resumo-introducao-ao-estudo-do-direito-hermen


[1] Conteúdo disponível no endereço eletrônico: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht>.

[2] Conceitos extraídos do Dicionário Jurídico, de  Wagner Veneziani Costa e Marcelo Aquaroli, 9ª Ed., 2007.

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Sobre a autora
Mylena Maria Moura Gomes

Graduanda do 10º Período do Curso de Direito da Faculdade Ciências Humanas e Sociais - Faculdade AGES e estagiária de Direito do Ministério Público do Estado da Bahia (Promotoria Regional de Euclides da Cunha - BA)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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