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Greve e descontrole

28/03/2015 às 16:21
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Este texto comenta sobre a greve, as percepções da sociedade e seus efeitos sobre o capital e a mídia.

Muito já foi dito sobre greve. E o que vou tratar aqui não é novidade, embora não faça muitas vezes parte das notícias repetidas sobre o tema. O que pretendo abordar vai um pouco além dos prejuízos que o movimento causa ou busca causar ao empregador e à população. O que me interessa neste pequeníssimo texto é trazer a minha visão sobre o efeito secundário da greve sobre os patrões e sobre a parcela mais abastada da sociedade e do risco que isso pode trazer.

Todos sabem que greve é um direito fundamental social, constante do artigo 9o da Constituição federal, direito este exercido de forma coletiva. A conveniência e a oportunidade da deflagração da greve é decidida pelos trabalhadores em assembleia, sempre observando os limites da lei ordinária, no caso lei 7.783/89. Devem os trabalhadores ter uma pauta definida, tendo por objetivo a melhoria de sua condição social.

Pelo fato de ser um direito fundamental social é que a greve deve gerar desconforto. Primeiro para o patrão, em razão dos prejuízos econômicos que ela apresenta, e depois à coletividade com os transtornos, inconvenientes, isso pela impossibilidade ou dificuldade no pagamento das contas bancárias, filas em serviços de atendimento ambulatorial, etc., servindo a própria sociedade como fonte de pressão frente à classe empresária.

É evidente, entretanto, que no Brasil esta forma de pressão não ocorre. Pertencemos a uma sociedade controlada pelo pensamento liberal, pensamento este que se propaga como cultura. Quem nunca chamou um grevista de preguiçoso? Ou quem nunca disse “vão trabalhar seus...? E o fizemos de forma repetida sem conhecermos pauta de reivindicações e a realidade laboral dos grevistas. Nossa ideia do “eu”, da concentração do ego “em mim” e no “meu”, não permite que enxerguemos um pouco adiante. Ora, a reivindicação pode ser justa. Simplesmente não pensamos nisso. Pensamos que vamos ter prejuízos e que os causadores são os grevistas, jamais os patrões, o poder econômico (e a mídia).

Este culto nacional ao capital privado e a desvalorização do trabalho em si é interessante. Mas não quero me alongar neste tema.

O que observei nas três últimas greves que acompanhei não foi nem tanto a pressão social contra os grevistas (chamada pressão social às avessas), mas sim a preocupação do empresariado e do poder econômico (e midiático) com o fato de que, as vezes, a dignidade não tem preço. Ora, no momento em que os trabalhadores se reúnem e param de trabalhar para melhorar a condição salarial de terceirizados, evitar despedidas em massa de colegas de outras empresas ou mesmo para que o pessoal que exerce atividades mais simples (ou mesmo atividades-meio) tenha as mesmas condições de reposição salarial  que os trabalhadores da atividade-fim, o que está em jogo não é o salário ou o econômico tão somente. É a dignidade. É a dignidade da classe trabalhadora. É o objetivo da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, aliás como preceitua a Constituição federal em seu artigo 3o, I, da CF/88.

E o que mais me chamou a atenção nestas episódios de greve é que o que assusta o empresariado, o poder econômico (e a mídia) não é nem tanto o impacto econômico em si, mas sim que não podem pagar de forma direta pela dignidade. De que dignidade faz parte do ser humano e, como tal, nem sempre será objeto de negociação econômica. E isso embaralha a visão do poder econômico. Existir no mundo vivido algo que o capital não pode comprar foge à lógica presente de que tudo em um preço, e desestabiliza quem detém o poder do dinheiro.

E no momento que o movimento de greve retira do empresariado, do poder econômico (e da mídia) a possibilidade de comprar, de pagar, de espezinhar pelo poder do dinheiro, o sistema corre risco. É por isso que há, de forma declarada, pela mídia nacional (e internacional), manifestações fervorosas  contra o movimento de greve, contra os movimentos sociais, contra a inclusão do outro. E é por isso que devemos, sempre que nos deparamos com uma greve (ou com algum movimento reivindicatório) pensar nos efeitos sociais daquele movimento. Deixar de lado “o eu” e o “meu” para pensar no “nós” e no “nosso” e no descontrole que este pensar no “nós” e no “nosso” pode trazer para o modelo desenhado para ser apenas para uns poucos que resolvem suas coisas através do talão de cheque e do cartão de crédito.

 Esta incerteza de que me dei conta pelos últimos movimentos de greve que acompanhei pode ser percebida em outras searas como por exemplo movimentos de reivindicação de terra, de moradia e etc. O caos faz parte do crescimento. A emancipação passa pelo caos e pela desordem. Colocar em risco um modelo centrado apenas no que se pode comprar talvez seja a melhor das saídas para que se possa concretizar os preceitos e fundamentos constantes da Constituição federal. Voltemos nossa essência àquilo que fazem alguns grevistas em algumas situações específicas. Não nos deixemos comprar. Inclusão e justiça não têm preço!

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Sobre o autor
Rafael da Silva Marques

Juiz do Trabalho titular da Quarta Vara do Trabalho de Caxias do Sul; Especialista em direito do trabalho, processo do trabalho e previdenciário pela Unisc;<br>Mestre em Direito pela Unisc; Doutor em Direito pela Universidade de Burgos (UBU), Espanha; Membro da Associação Juízes para a Democracia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES, Rafael Silva. Greve e descontrole. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4287, 28 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32467. Acesso em: 12 out. 2024.

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