Introdução
Edgar Morin (1921), antropólogo, sociólogo, e filósofo francês, dedicado ao estudo do que chama de “pensamento complexo” e sua importância tanto para o ensino quanto para a pesquisa. Neste trabalho pretende-se analisar o que se entende por pensamento complexo e, mesmo que brevemente, a sua aplicação à ciência jurídica, apontando alguns pontos de encontro entre o entendimento de Morin e a ciência jurídica. O objetivo é refletir sobre o contexto atual da ciência jurídica, principalmente à luz do artigo “Da necessidade de um pensamento complexo.”
1 O que é pensamento complexo?
Para compreender o significado de pensamento complexo é necessário, em primeiro lugar, abandonar a ideia de que não há relação entre assuntos que parecem opostos ou separados. O contexto no qual o objeto de estudo está inserido assume contornos ilimitados, pois temas aparentemente inconciliáveis podem apresentar ligações. Precisamos incorporar às reflexões até mesmo as incertezas, pois a evolução não é algo linear ou lógico, e pode ser o resultado de “desvios”, assim como o ser humano é “um produto desviado da história do mundo” (Da necessidade..., p. 08).
O pensamento complexo parte da premissa de que as coisas estão, ou podem estar, relacionadas, mesmo aquelas que parecem impossíveis de se relacionar. Por isso, o conhecimento não pode ignorar (desconsiderar) fatores; pressupõe um exame multidimensional do assunto abordado, buscando pontos de ligação com outras ciências, inclusive. A própria divisão do conhecimento em ciências seria uma face do pensamento disjuntivo – aspecto do pensamento simplificador – que, ao fragmentar determinado conhecimento, isola o que foi separado e oculta possíveis religações.
Assim, o pensamento complexo busca o conhecimento multidimensional, admitindo um princípio de incompletude e incerteza, e buscando a ligação entre os aspectos que são distintos mas que não devem ser isolados uns dos outros, construindo-se então a noção de completude. O objetivo é alcançar um saber não fragmentado, não redutor, ciente de que qualquer conhecimento está inacabado, incompleto, e pode ser questionado e reformulado.
A ideia de complexidade é dada Morin em sua obra “Introdução ao pensamento complexo” (2005, p. 35):
O que é a complexidade? À primeira vista é um fenômeno quantitativo, a extrema quantidade de interações e de interferências entre um número muito grande de unidades. De fato todo sistema auto-organizador (vivo), mesmo o mais simples, combina um número muito grande de unidades da ordem de bilhões, seja de moléculas numa célula, seja de células no organismo [...] Mas a complexidade não compreende apenas quantidades de unidade e interações que desafiam nossas possibilidades de cálculo: ela compreende também incertezas, indeterminações, fenômenos aleatórios. A complexidade num certo sentido sempre tem relação com o acaso.
Morin questiona o que chama de “falsa racionalidade”, “inteligência parcelar, compartimentada, mecânica, disjuntiva, reducionista” porque esta “elimina na casca todas as possibilidades de compreensão e de reflexão, matando assim todas as chances de julgamento corretivo ou de visão a longo termo”, afirmando ainda que o pensamento complexo ‘busca distinguir (mas não separar) e ligar” (Da necessidade..., ps. 14-15), e que “o pensamento complexo é, portanto, essencialmente aquele que trata com a incerteza e consegue conceber a organização. Apto a unir, contratualizar, globalizar, mas ao mesmo tempo a reconhecer o singular, o individual e o concreto (p. 21).
2 Da necessidade de um pensamento complexo
Em seu artigo “Da necessidade de um pensamento complexo” Morin apresenta passos a serem observados na formulação do pensamento complexo. Vejamos alguns desses métodos indicados por Morin.
2.1 Conhecer o contexto
Morin entende ser necessário inicialmente compreendermos o contexto em que são empregadas as palavras. Exemplifica utilizando a palavra “amo-te”, que pode ter sentidos opostos dependendo do contexto em que é empregada: se por uma pessoa apaixonada e sincera, ou se pronunciada por um oportunista sedutor. Por isso afirma que “para conhecer, não podemos isolar uma palavra, uma informação; é necessário ligá-la a um contexto e mobilizar o nosso saber, a nossa cultura, para chegar a um conhecimento apropriado e oportuno da mesma” (p. 01)
Necessário esclarecer que o Morin não estabeleceu o conceito de “cultura” na obra em análise. Ao afirmar que devemos mobilizar “nosso saber, a nossa cultura” para conhecermos adequadamente uma palavra ou informação, significa que demos conhecer o conjunto de costumes e práticas da comunidade onde tal palavra ou informação está inserida, pois um mesmo ato ou palavra possui significados diversos, dependendo desse contexto, da “cultura” de quem o pratica e/ou interpreta.
O conceito de cultura é buscado há décadas pela antropologia, sem que exista até hoje um conceito “universalmente aceito”. Adota-se, assim, neste trabalho, a concepção popular de cultura, como sendo o conjunto de práticas/costumes e crenças de certa comunidade, embora seja um conceito incompleto e até mesmo arbitrário.
A cultura, referida por Morin, é um importante contexto para que sejam compreendidas palavras, expressões e atos, pois esses eventos podem conter significados diversos, dependendo do meio cultural em que ocorrem.
Laraia (2013, p. 10) explica que antes de Cristo já se observava que, apesar da natureza comum, os homens apresentavam hábitos diversos, e que há uma “tendência” das populações que compartilham certos costumes considerarem absurdos os costumes de outras populações. Assim, costumes plenamente aceitos em certos povos são repulsivos ou até proibidos para outros – que consideram tais costumes “desviantes”[1] –, como o sentido do trânsito, o suicídio, a obesidade, o consumo de carne de vaca e de porco, o nudismo, os instrumentos utilizados para a alimentação, o arroto após a refeição etc. Diz que já se acreditou que a localização geográfica e os genes teriam interferência sobre a inteligência dos povos, porém conclui que nem o determinismo geográfico[2] e nem o biológico[3] são capazes de explicar os hábitos dos povos.
Laraia (op. cit., p. 46) afirma ainda que:
O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridas pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções. Estas não são, pois, o produto da ação isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de toda uma comunidade.
Portanto, feitos esses breves apontamentos sobre “cultura”, percebe-se que é necessário conhecermos a cultura de certa comunidade para compreender o significado de certas palavras e atos, pois estes eventos são fortemente influenciados pela cultura.
Além disso, entende-se que o “contexto” mencionado por Morin, diz respeito também ao momento em que determinado ato é praticado, até porque o momento nos remete a uma determinada cultura. Um beijo em público deixou de ser um tabu para se tornar uma banalidade, e seus praticantes, que eram “atrevidos”, agora são pessoas “comuns”. Isso porque os costumes, as culturas, não permanecem imutáveis, e um mesmo ato ou informação poderá comportar significados diversos, dependendo do momento da sua ocorrência. Assim, ao questionar-se sobre determinado comportamento da sociedade brasileira, além de conhecermos a “cultura brasileira” é necessário também sabermos em que momento tal comportamento foi manifestado.[4]
Essa mudança cultural – ou invenção de culturas e tradições – no tempo foi observada por Hobsbawm (1984, ps. 271 e ss.), o qual, ao tratar da produção em massa de tradições na Europa, no período de 1870 a 1914, refere que “os proletários adquiriram o hábito de usar o boné bem rápido, nas últimas décadas do século XIX e na primeira década do século XX, como parte da síndrome característica da ‘cultura operária’ que se delineava então.” Diz ainda que a principal assimilação de práticas culturais ocorreu entre as classes baixas, ou mais tarde, entre um público de massa. E afirma também que (p. 315):
Qualquer levantamento das invenções culturais desse período não pode deixar de observar o desenvolvimento de subculturas e práticas autóctones de classe baixa que nada deviam às classes altas – eram quase certamente derivadas da urbanização e da migração de massas. A cultura do tango em Buenos Aires é um exemplo. É discutível até que ponto elas podem entrar numa análise da invenção das tradições.
O aspecto final e a relação entre “invenção” e “geração espontânea”, planejamento e surgimento. [...] As tradições inventadas tem funções políticas e sociais importantes, e não poderiam ter nascido, nem se firmado se não as pudessem adquirir. Porém, até que ponto elas são manipuláveis?
Portanto, o contexto deve levar em conta, pelo menos, a cultura de quem pratica o ato e/ou o local onde o ato é praticado, ou onde a palavra é proferida, bem como o momento histórico da ocorrência de tal evento. E claro que outros fatores devem ser considerados, pois, de acordo com o pensamento complexo, devemos ligar ao evento todos os fatores que o influenciam, até mesmo aqueles fatores que parecem estar completamente divorciados do evento.
2.2 Conhecer as partes e também o todo
Após frisar a necessidade de conhecermos o contexto, Morin refere, em mais de uma oportunidade, o entendimento de Pascal[5], segundo o qual “não posso conhecer o todo se não conhecer particularmente as partes, e não posso conhecer as partes se não conhecer o todo.” Afirma que nosso pensamento deveria buscar ligar as coisas, ainda que pareçam separadas umas em relação às outras, e adverte que “nosso sistema educativo privilegia a separação em vez de praticar a ligação” (Da necessidade..., p. 02).
Como consequência, é questionada a divisão do conhecimento em disciplinas, na medida em que estas se separam umas em relação às outras, privilegiando o específico em detrimento do conjunto, do contexto. Morin diz que “o método experimental, que permite tirar um “corpo” do seu meio natural e colocá-lo num meio artificial, é útil, mas tem seus limites, pois não podemos estar separados do nosso meio ambiente”, concluindo que “o conhecimento de nós próprios não é possível, se nos isolarmos do meio em que vivemos” (p. 02).
Por isso critica a ciência ocidental, sob o fundamento desta ter sido reducionista, tentando reduzir o conhecimento do conjunto ao conhecimento das partes que o constituem. Afirma (p. 03) que “tal conhecimento ignora o fenômeno mais importante, que podemos qualificar de sistêmico, da palavra sistema, conjunto organizado de partes diferentes, produtor de qualidades que não existiriam se as partes estivessem isoladas umas das outras”, nominando tal fenômeno de “emergências”, e conclui que:
Não podemos, portanto, compreender o ser humano apenas através dos elementos que o constituem. Se observarmos uma sociedade, verificaremos que nela há interações entre os indivíduos, mas essas interações formam um conjunto e a sociedade, como tal, é possuidora de uma língua e de uma cultura que transmite aos indivíduos; essas “emergências sociais” permitem o desenvolvimento destes. É necessário um modo de conhecimento que permita compreender como as organizações, os sistemas, produzem as qualidades fundamentais do nosso mundo. (Da necessidade..., p. 03)
Esse entendimento nos remete ao conceito de interesse público, que não pode ser compreendido como a simples soma dos interesses individuais. O interesse comum representa o interesse do conjunto social, interesse que emerge justamente da vida em comunidade, não podendo ser reduzido à soma dos interesses das pessoas que compõem aquela sociedade. Bobbio (2007, ps. 24-25), abordando o primado do público, diz que:
O primado do público assumiu várias formas segundo os vários modos através dos quais se manifestou, sobretudo no último século, a reação contra a concepção liberal do Estado e se configurou a derrota histórica, embora não definitiva, do Estado mínimo. Ele se funda sobre a contraposição do interesse coletivo ao interesse individual e sobre a necessária subordinação, até à eventual supressão, do segundo ao primeiro, bem como sobre a irredutibilidade do bem comum à soma dos bens individuais, e portanto sobre a crítica de uma das teses mais correntes do utilitarismo elementar. Assume várias formas segundo o diverso modo através do qual é entendido o ente coletivo — a nação, a classe, a comunidade do povo — a favor do qual o indivíduo deve renunciar à própria autonomia. Não que todas as teorias do primado do público sejam histórica e politicamente passíveis de ser postas no mesmo plano, mas a todas elas é comum a idéia que as guia, resolvível no seguinte princípio: o todo vem antes das partes. Trata-se de uma idéia aristotélica e mais tarde, séculos depois, hegeliana (de um Hegel que nesta circunstância cita expressamente Aristóteles); segundo ela, a totalidade tem fins não reduzíveis à soma dos fins dos membros singulares que a compõem e o bem da totalidade, uma vez alcançado, transforma-se no bem das suas partes, ou, com outras palavras, o máximo bem dos sujeitos é o efeito não da perseguição, através do esforço pessoal e do antagonismo, do próprio bem por parte de cada um, mas da contribuição que cada um juntamente com os demais dá solidariamente ao bem comum segundo as regras que a comunidade toda, ou o grupo dirigente que a representa (por simulação ou na realidade), se impôs através de seus órgãos, sejam eles órgãos autocráticos ou órgãos democráticos.
Essa ideia de que a sociedade possui elementos próprios, existentes somente da vida em comunidade, e que não se resumem à soma dos elementos individuais, leva ao questionamento da teoria da causalidade, a concepção de causalidade.
Morin afirma que nossa educação nos habituou a uma concepção linear de causalidade, segundo a qual “temos causas que produzem efeitos” e contrapõe a esta teoria a ideia de causalidade retroativa, consistente “no fato de produtos e efeitos serem necessários ao produtor e ao causador. Examina a relação do ser humano com a sociedade, afirmando que ao mesmo tempo em que somos produtores da sociedade – pois sem indivíduos não haveria sociedade – a sociedade existe com sua cultura, normas, leis e regras, e assim nos produz como indivíduos. Diz, portanto, que “somos produtos e produtores” (p. 04), sendo esta uma visão circular, e não linear. Sobre esse tema, conclui que:
Produzimos a sociedade que nos produz. Ao mesmo tempo, não devemos esquecer que somos não só uma pequena parte de um todo, o todo social, mas que esse todo está no interior de nós próprios, ou seja, temos as regras sociais, a linguagem social, a cultura e normas sociais em nosso interior. Segundo este princípio, não só a parte está no todo como o todo está na parte. Isto acarreta consequências muito importantes porque, se quisermos julgar qualquer coisa, a nossa sociedade ou uma sociedade exterior, a maneira mais ingênua de o fazer é crer (pensar) que temos o ponto de vista verdadeiro e objetivo da sociedade, porque ignoramos que a sociedade está em nós e ignoramos que somos uma pequena parte da sociedade. Esta concepção de pensamento dános uma lição de prudência, de método, de modéstia (p. 05).
Esta reflexão, sob o “ponto de vista” a ser aplicado, pode ser invocada para pensarmos no indigenato, que diz respeito à relação entre os indígenas e as terras por eles ocupadas, relação essa que não pode ser compreendida pelos mesmos institutos do direito civil. O indigenato tem base constitucional:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
(...)
§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
O indigenato não é o mesmo que ocupação da terra pelos índios, pois a ocupação é um tipo de aquisição derivada da propriedade. A relação mantida entre os indígenas e a terra é reconhecida pela CF/88 como um direito originário. Anterior, portanto, aos eventuais títulos de propriedade lavrados sobre essas terras. Os indígenas são os naturais e primeiros donos da terra. A compreensão dessa ideia pressupõe a superação da “verdade” aceita até então, de que a posse e a ocupação só poderiam ser pensadas de acordo com o direito civil.
Silva (207, pp. 869/870), analisando o indigenato, reconhece a inaplicabilidade do instituto da posse civil às terras indígenas. Afirma que “o indigenato não se confunde com a ocupação, com a mera posse. [...] é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é um título adquirido”. E conclui que:
Estas considerações, só por si, mostram que a relação do indígena e suas terras não se rege pelas normas do direito civil. Sua posse extrapola a órbita puramente privada, porque não é e nunca foi uma simples ocupação da terra para explorá-la, mas base de seu habitat, no sentido ecológico de interação do conjunto de elementos naturais e culturais que propiciam o desenvolvimento equilibrado da vida humana. Esse tipo de relação não pode encontrar agasalho nas limitações individualistas do direito privado. Daí a importância do texto constitucional em exame, porque nele se consagra a idéia de permanência, essencial à relação do índio com as terras que habita.
Assim, pensando a nossa comunidade (brasileira), os títulos de posse e propriedade fundados no direito civil são válidos, porém observados os direitos originários dos indígenas sobre as terras por eles tradicionalmente ocupadas.
Segundo Morin os seres humanos têm as mesmas “atitudes cerebrais fundamentais”, demonstrando uma “unidade cerebral”, mas é importante compreender a unidade e também a diversidade, buscando preservar a riqueza da humanidade, ou seja, a diversidade cultural, e resalta que “as diversidades não são só das nações, mas estão também no interior destas; cada província, cada região, tem sua singularidade cultural, a qual deve guardar ciosamente” (Da necessidade..., p. 06).
2.3 Nós e o meio ambiente
Morin diz que somos filhos da natureza viva, que é necessário abandonar a ideia que considerava o ser humano o centro do mundo, mestre e dominador da natureza. E também afirma que “o pensamento complexo conduz-nos a uma série de problemas fundamentais do destino humano, que depende, sobretudo, da nossa capacidade de compreender os nossos problemas essenciais, contextualizando-os, globalizando-os, interligando-os” (pp. 10-11). Esse pensamento nos remete às idéias de antropocentrismo, biocentrismo, e de proteção do meio ambiente, problema universal.
Na visão antropocêntrica, a proteção do meio ambiente ocorre com o objetivo de assegurar o bem estar do ser humano; o meio ambiente é controlado pelo ser humano para que sejam satisfeitas as aspirações deste, que se coloca no centro das preocupações e destinatário final dos proveitos resultantes da proteção do meio ambiente. Já a visão biocentrista tem como fundamento ético-filosófico da tutela ambiental o reconhecimento de que a natureza tem valor próprio, intrínseco, o qual merece ser protegido mesmo desconsiderando-se o ser humano; a natureza não existe apenas para o proveito da espécie humana.
Fensterseifer e Sarlet (2013, pp. 39-43) abordam o que chamam de ética ecológica ao direito constitucional ambiental: a adoção de um antropocentrismo jurídico-constitucional ecológico. Mencionam que a disputa entre “antropocentristas ecológicos (ou moderados)” e “biocentristas (ou ecocentristas)” é expressiva. Defendem “uma abordagem conciliatória e integradora dos valores humanos e ecológicos, como duas facetas de uma mesma identidade jurídico-constitucional.” Prosseguem afirmando que “o objetivo da abordagem jurídica antropocêntrica ecológica é ampliar o quadro de bem-estar humano para além dos espectros liberal e social, inserindo necessariamente a variável ecológica, somada à atribuição de valor intrínseco à Natureza.” E convergem para a ideia de ligação entre fatores, conforme defendia Morin (para quem o pensamento complexo busca distinguir - mas não separar – e ligar), ao afirmarem que:
Para nós, a proteção do ser humano é a proteção da Natureza, e vice-versa. Talvez aí resida uma marca “biocêntrica” na nossa abordagem teórica, porquanto não advogamos qualquer separação entre ser humano e Natureza. Pelo contrário, entendemos vital tal “religação”, identificando o ser humano como mais um elemento na cadeia da vida. Com Lutzenberger, entendemos que “não estamos fora, por cima e contra a Natureza, estamos bem dentro. Somos um pedaço dela.”
2.4 Vencer a especialização?
Morin entende que “a cultura científica e técnica, por causa da sua característica disciplinar e especializada, separa e compartimenta os saberes, tornando cada vez mais difícil a colocação destes num contexto qualquer.” Diz que a especialização deve ser superada porque “extrai um objeto do seu contexto”, rejeitando “os laços e a intercomunicação do objeto com seu meio”; “insere-o no compartimento da disciplina, cujas fronteiras quebram arbitrariamente a sistemicidade (a relação de uma parte com o todo) e a multidimensionalidade dos fenômenos”. Morin chama essa característica de falsa racionalidade (a racionalização abstrata e unidimensional), de “inteligência parcelar, compartimentada, mecânica, disjuntiva, reducionista”, que “quebra o complexo do mundo, produz fragmentos, fraciona os problemas, separa o que é ligado, unidimensionaliza o que é multidimensional” (Da necessidade..., pp. 12-14).
É pertinente questionar até que ponto a especialização deve ser superada. Afinal, seria possível, sem a especialização, o aprofundamento nas diversas áreas do conhecimento? O próprio autor reconhece essa impossibilidade, ao afirmar que “é impossível conhecer tudo do mundo ou captar todas as suas multiformes transformações” (p. 12). Entende-se, portanto, que ao afirmar que a especialização deve ser superada o autor busca, na verdade, evitar que especialização acarrete a desconsideração dos fatores “externos” àquela especialidade.
O Direito Ambiental é fruto de especialização. Nesse sentido é pertinente transcrever o entendimento de Figueiredo (2013, pp. 529-530), demonstrando a importância da especialização, a complexidade de temas envolvidos apenas no tocante à proteção dos recursos hídricos, bem como especializações que devem ser evitadas no intuito de melhor proteção do bem jurídico-ecológico:
O Direito Ambiental, ao cuidar da proteção da qualidade das águas, envereda por uma extensa gama de temas e de questões que se tornaram extremamente intrincados, a partir do momento em que esse elemento abiótico da natureza passou a escassear, transformando-se em mercadoria.
No enfrentamento de questões como escassez de água potável, desertificação do solo, irrigação, ocupação humana de áreas de mananciais de água, cobrança pelo uso da água, usos múltiplos (dessedentação humana e animal, irrigação da agricultura, uso na indústria, navegação, geração de energia), aquíferos, contaminação das águas subterrâneas por agrotóxicos e metais pesados, poluição das águas superficiais, proteção dos rios urbanos, saneamento básico, gestão das águas pluviais, poluição da água do mar, derretimento de geleiras, águas termais, águas minerais, proteção da fauna ictiológica etc., o Direito acaba criando grupos de regras ou princípios de gestão específicos, verdadeiros “subprincípios” destinados a dar completude à legislação que lhes é inerente. Esta complexidade leva alguns autores a defenderem a autonomia desse capítulo do Direito Ambiental, a que chamam de Direito das Águas, Direito Hidráulico ou Direito Hídrico.
Esta complexidade de temas, porém, não é diferente em outras grandes subáreas do Direito Ambiental, como o são as mudanças climáticas, a proteção da diversidade biológica, a qualidade de vida no meio ambiente urbano ou no meio ambiente do trabalho. Se, para cada um destes temas, fôssemos destacá-lo do Direito Ambiental, esse simplesmente deixaria de existir. Retornaríamos à década de 1930, quando os estudos sobre a aplicação do Código de Águas, do primeiro Código Florestal e do Código de Minas, por exemplo, não se comunicavam, eis que não existia ainda uma compreensão do caráter holístico do meio ambiente.
Estamos, assim, diante de uma temática complexa e legislativamente muito desenvolvida, mas não parece adequado afirmar que a proteção da qualidade das águas seja objeto de um ramo diverso do Direito – o que nos levaria à conclusão de que os princípios do Direito Ambiental não se aplicam ao chamado “direito de águas”.
Além disso, referido autor aponta a relação do direito ambiental com outros diversos ramos (especializados) do Direito, tais como (a) Direito Administrativo - licitações sustentáveis -, (b) Direito Processual Civil, Penal e do Trabalho, (c) Direito Urbanístico, (d) Direito Público do Trabalho e da Seguridade Social, (e) Direito Econômico, (f) Direito Penal, (g) Direito Tributário – tributos federais como IPI, IR e ITR; tributos estaduais como ICMS Ecológico e IPVA, e tributos municipais –, (h) Interesse Difuso e Interesse Fazendário, (i) Direito Civil – Direito de propriedade e sua função social, conflitos de vizinhança, influência do Direito Ambiental no novo regime de Responsabilidade Civil, Direito Contratual e Meio Ambiente (op. cit., pp. 115-132).
O Direito ambiental, além de relacionar-se com as diversas disciplinas do Direito, comunica-se com outras diversas áreas do conhecimento, como a antropologia, a agronomia, a história, a biologia, a física, a arqueologia, a química, a engenharia etc. Diante dessa gama de disciplinas que se comunicam com o Direito Ambiental parece impossível vencer a especialização, a dedicação de estudiosos em áreas específicas do conhecimento. Seria inviável que os pesquisadores conhecessem profundamente todas essas nuances do Direito Ambiental, e de outras disciplinas e ciências. O que deve ser evitado é o fechamento de tais disciplinas a novas ideias; essas especializações não podem se julgar “independentes” das demais disciplinas e ciências; são complementares de um conhecimento mais amplo, que deve sempre ser buscado.